Monday, February 24, 2020

BRAÇOS




"A Natureza nem sempre pode esperar 
que a História compreenda as razões
por que se lança sem reservas nos 
braços do futuro. Então, a superfície 
da página rompe-se, os montes 
tremem e a linguagem reserva-se 
a ousadia de um último discurso. 
Dita a palavra, bandos de pássaros
atropelam-se no cérebro, indiferentes
às ideias que no pensamento desarrumam. 
Aves estranhas, que se alimentam 
de vento, enquanto lá fora alguns
homens esperam pela brisa
que os há de conduzir a climas
que só a violência dos caçadores
conserva imunes. Nada sabem
do futuro. Inseguros, ausentam
-se do presente para esquecer 
monumentos a deuses que só
a aridez da palavra mantém 
insepultos. Caberia o poema 
nas fichas do destino? Ou 
aperceber-se-ia no movimento
das figuras que dentro de si, 
enquanto sonha, permanecem 
ocultas? Os acidentes
da natureza sucedem-se 
interiormente e é pela 
mesquinhez das palavras
que o abrigue dos ventos 
que, por onde quer que siga, 
lhe varrem os sentidos."


Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos, 100 Cabeças, 2019. 

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