Friday, October 31, 2025

NO DORSO DE CETIM

 




"Esta noite, a lua voga com mais preguiça;
Como uma beldade, encostada às almofadas, 
Que distraída e ao de leve acaricia
Antes de adormecer o contorno dos seios,

No dorso de cetim das brandas avalanches,
Moribunda, ela entrega-se aos longos delíquios 
E passeia os olhos pelas brancas visões
Que sobrem ao azul do céu como florações

Quando neste globo, em seu langor ocioso, 
Ela deixa escapar uma furtiva lágrima, 
Um poeta clemente, inimigo do sono, 

Na cova da mão apanha a lágrima pálida, 
De irisados reflexos qual lasca de opala, 
E esconde-a no peito para que o sol não veja."



Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, pp. 151; 153. 

Ô RAFRAÎCHISSANTES TÉNÈBRES!

 



"Debaixo de uma luz anémica,
Corre, dança e à toa se torce
A Vida, impudente e berrante.
Assim, logo que no horizonte

A lúbrica noite desponta,
Tudo acalmando, mesmo a fome,
Tudo apagando, mesmo o opróbrio,
O Poeta comenta: «Enfim!

«Meu espírito e minhas vértebras
Pedem com ardor o repouso;
Com as minhas ideias fúnebres,

«Vou estender-me sob os céus,
E espojar-me nos vossos véus,
Ó trevas sempre refrescantes!»"



Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 281.

Thursday, October 30, 2025

SOBRE AS FONTES

 


"De repente fiquei a saber muito sobre as fontes, 
essas incompreensíveis árvores de vidro sem montes.
Poderia delas como das próprias lágrimas falar
que, depois de coisas grandiosas sonhar, 
desperdicei um dia e não voltei a lembrar. 

Terei eu esquecido que as mãos do céu de então
acodem a muitas coisas e à confusão?
Não vi eu sempre grandezas nunca envelhecidas
na ascensão de antigos parques cheios de vida, 
antes dos fins de tarde suaves e cheios de expectativa
em pálidos cantos erguendo-se e vindos de raparigas desconhecidas
transbordando das melodias
tornando-se reais e como todos os dias
reflectissem em tanques abertos de águas frias?"



Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 131. 

Wednesday, October 29, 2025

LUZ NOVA



 "Acende a luz nova. E desabrocha
como uma flor vermelha na seara
Num cavalo de vento e de palavras
despenteia os cabelos da tristeza


Vem ter comigo à hora dos lilazes
quando todas as fontes se enamoram
dos cântaros vidrados de poente
e os seduzem com motetes de água


Se vieres pelo trilho das gaivotas
ainda entontecido de mar alto
encontrarás na terra do meu corpo
as sementes da tua eternidade."



Rosa Lobato de Faria, Poemas Escolhidos e Dispersos, 2.ª ed., Lisboa: Roma Editora, 1997, p. 88.

Tuesday, October 28, 2025

UM SOM DE ÁGUA OU DE BRONZE

 




"Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa..."



Eugénio de Castro, "A Sombra do Quadrante", in Antologia, selec. Albano Martins, Lisboa: IN-CM, 1987, p. 219.

Monday, October 27, 2025

A ESPERA


 

"Quanto mais impelia a vontade a fim de apreender aquela recordação, era maior a forma maliciosa e escorregadia como ela recuava - como uma medusa brilhando incerta no estrato mais profundo da consciência e, ainda assim, longe de se poder agarrar, de se poder apanhar. Fitava em vão cada um dos objetos que se encontravam no local; é certo que não conhecia alguns deles, como por exemplo a caixa registadora automática tintilante e aquele revestimento castanho de parede de falso palissandro, tudo isso deve ter sido colocado mais tarde. Mas sem dúvida que estive ali há vinte anos ou mais, justamente ali ficou perdurado, oculto no invisível como o prego na madeira, algo do meu eu, já encoberto há muito tempo."

 

Stefan Zweig, Mendel dos Livros, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 37. 

Sunday, October 26, 2025

COMO LÂMPADAS QUE OFUSCAM


 

"Nós somos um centro de relações mas tão volúveis
que se dispersam e se confundem 
como lâmpadas que ofuscam e se apagam
sem que vejamos as figuras coerentes

Mas no poema a hesitação procura
as simetrias claras as vivas evidências
do mundo o tronco da indolente segurança
que é a invenção de um enlace de água e fogo

É na distância que ele cria a semelhança
com o seu ouvido verde com a sua língua verde
e o mundo poderá ser o pressentimento da sua iminência
que não sendo nada é a sua surpreendente possibilidade

Quer seja uma pedra de pálpebras ou uma lua côncava
é o seu silêncio que ilumina as palavras
e as faz estremecer como se fossem folhas
de uma oscilação entre o ser e o não ser."


António Ramos Rosa, Deambulações Oblíquas, Lisboa: Quetzal, 2001, p.19. 

Saturday, October 25, 2025

MARAVILHAS E BELEZAS

 



"Crer e amar - é a única religião verdadeira; crer e amar - a única poesia verdadeira: uma não está sem a outra. O poeta de ambas se inspira: mas não há escrito humano que possa chegar a mais do que a reflectir palidamente os divinos clarões que delas reverberam.
Que veja alguém romper a aurora, nascer o Sol, abrir a flor do casulo, ondear a seara com o vento; agitar-se o mar na tempestade, trovejar no céu a tormenta, espreguiçar-se o arroio pelo prado, morrer o justo no seu leito, o criminoso no patíbulo, o soldado na batalha, sorrir a criança no seu primeiro sorriso nos braços da mãe, nascer o amor verdadeiro nos olhos da mulher, gemer a dor no coração do pai que perdeu o filho, estrelar-se o firmamento azul por noite serena - que as contemple alguém, essas ou outras das imensas maravilhas e belezas de que está cheio o Universo, e que são o culto, a religião, a poesia dos que crêem - e vejam depois se há Homeros que lhas possam dizer à alma com a mesma força, com a mesma graça!"


Almeida Garrett, Helena, col. Obras Completas, vol. II, Lisboa: Círculo de Leitores, 1984, pp.289-290.

A NOITE PRINCIPIA A DESCER (para a memória de Jorge Guimarães)

 




"A noite principia a descer. Nela o que se perde? De início
a luz, mas também a sombra. Depois escutamos pelas veias
o murmúrio do sangue, uma despedida, quem se aproxima
para estar mais longe ao chegar. É assim uma recordação,
sabiam-na talvez aqueles que morreram quando connosco
atravessavam desde o início os mesmos caminhos. Cerramos
devagar os olhos para nos vermos e depois perguntamos
o que somos agora e quem nos vem acompanhar. A resposta
esquecemo-la. Nós para os mortos somos os que morreram."


Fernando Guimarães, Sobre a Voz, Porto: Afrontamento, 2024, p. 64.

Friday, October 24, 2025

A PAIXÃO

 


"Com o tempo, a paixão das grandes viagens apaga-se, a menos que tenhamos viajado tanto tempo que nos tornemos estranhos à pátria. O círculo estreita-se cada vez mais, aproximando-se pouco a pouco do lar. - Não podendo afastar-me muito nesse Outono, formara o projecto de uma simples viagem a Meaux."


Gerard de Nerval, As Noites de Outubro - contos realistas e fantásticos, trad. António Gonçalves e Isabel Vieira, Lisboa: Vega, s.d., p. 17. 

VIDA PARADA

 



"Esta vida parada, horrivelmente fria,
Esta pobre existência tão vazia
De cânticos de amor e vozes de carinho,
Da música dos beijos, da ventura,
Dum milagroso abraço de esperança,
Como dói, como fere, como cansa!...

Antes viver ansiada,
Fremente de paixão,
Crucificada,
Na chama rubra dum cruel ciúme!
Antes sentir a cada instante,
A cada hora,
O sangue cachoar, como se fora
A lava de um vulcão!
Antes sentir o coração sangrando
E a alma enfebrecida,
Antes chorar, sofrer, amar, viver...

- Viver, viver, intensamente a Vida!"


Alice de Azevedo, Rosal sem Primavera, Porto: Empresa de Publicidade do Norte, 1963, pp. 111-112.

Thursday, October 23, 2025

CONTROLO

 


"Se a arte
não for insubmissa
se não permanecer
desobediente
e não escapar ao controlo
é o quê?

Se a arte
não for insurrecta
se não permanecer
pedra viva escaldante
é o quê
a arte
se não disser Eu Sou?"


Isabel de Sá, O real arrasa tudo, Porto: Porto Editora, 2019, p. 36.

Wednesday, October 22, 2025

DA BANCADA




"o coração
máquina de estrangular o mundo
salta do peito ébrio

avança
a passos
intensos
assiste da bancada
ao espectáculo
intimista
da
queda
imóvel
do
poema
áfono"


Rosa Oliveira, Tardio, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 82.

Tuesday, October 21, 2025

O PROFUNDO SONO

 




"Eu quero uma licença de dormir
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes."


Adélia Prado, Bagagem, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 32.

Monday, October 20, 2025

DISTANTE


 

"Na ideologia que acompanha as fotos, animais são sempre os observados. O fato de que podem nos observar perdeu todo o significado. Eles são os objetos de nosso conhecimento sempre crescente. O que sabemos sobre eles é um índice de nosso poder; e assim é um índice do que nos separa deles. Quanto mais sabemos, mais distantes eles ficam."


John Berger, Sobre o olhar, trad. Lya Luft. Amadora: Editorial Gustavo Gili, 2003, p. 22. 

Sunday, October 19, 2025

NÃO ESQUEÇAS




"Não esqueças que na cruz está a madeira,
os seus veios, o cerne, os nós. Antes do sangue
e do suor foi através dela que passou a seiva
para que o dia a aquecesse, mas deram-lhe
a noite, o sofrimento. É assim que a vês. Sabes
que veio de um bosque, foi uma semente. Procurou
a terra e a água. Atravessou as estações, a luz do sol
e a brancura que existe na neve. Depois cresceu
para que uma cruz seja também um bosque."


Fernando Guimarães, Sobre a Voz, Porto: Afrontamento, 2024, p. 129.

Saturday, October 18, 2025

PERTURBAÇÃO

 




"Perturbas-me, silêncio!
A tua voz é um mundo misterioso,
Estranho e comovente,
Que penetra a minha alma,
E se abraça ao meu corpo,
Impressionantemente!

Um mundo onde eu escuto o som alucinante
De biliões de vozes sofredoras,
Sufocadas na dor da incompreensão,
Sem paz e sem guarida;
As vozes recalcadas, já sem voz,
De todos os vencidos desta vida!...

- Vozes que também são o próprio eco
Do meu amargurado coração!"


Alice de Azevedo, Rosal sem Primavera, Porto: Empresa de Publicidade do Norte, 1963, pp. 63-64
.

METÁFORAS

 


"A primeira metáfora foi animal porque a relação essencial entre homem e animal foi metafórica. Dentro dessa relação, o que os dois termos - homem e animal - partilhavam de comum revelou o que os diferenciava. E vice-versa."


John Berger, Sobre o olhar, trad. Lya Luft. Amadora: Editorial Gustavo Gili, 2003, p. 15. 

Friday, October 17, 2025

PRECIOSO

 



"Foi tudo precioso, o silêncio flutuou
e deteve-se perto de servir um mal-entendido, 
criado no tosco, um pedreiro da memória, 
um cavalheiro sedutor. Pousa a bandeja, 
essa cabeça sangrenta não vale a tua dança,
senta-te no meu colo. Vou rezar para que não te
dêem trabalho que te estrague os olhos, 
as mãos, nem azede o pudor de te sentires
estranha. Mais um pouco. As chávenas
estão sujas, o serão tropeçou em frase, que
suspensa a meio, parece poupar as feridas
que sangra; quem a poderá escrever
que se sinta arredado de ser cúmplice, 
um estranho que não olhaste e tal
desamparo, por ser precioso, afundou em júbilo?"



José Alberto Oliveira, O Que Vai Acontecer?, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 9. 

Tuesday, October 14, 2025

BELEZA SEM PAR

 



"Entrega sempre a tua beleza sem par
sem calcular e sem falar.
Tu calas-te. Ela diz-te: eu sou.
E chega em mil sentidos a pairar,
chega finalmente a cada um que ousou."


Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 73.

Monday, October 13, 2025

MÃOS DE ARQUITECTO

 



"Todos têm bocas cansadas do canto
e claras almas sem bordo.
E uma saudade (como depois do pecado)
muitas vezes os atravessa em sonho. 

Todos uns com os outros parecidos;
no jardim de Deus estão calados noite e dia, 
como muitos, muitos intervalos reunidos
na sua força e melodia. 

Apenas quando suas asas abrem, tantas,
são o despertar de um vento:
como se Deus passasse com suas amplas
mãos de arquitecto pelas páginas de dentro
do obscuro livro do início lento."



Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 29. 

Sunday, October 12, 2025

DE INFINITAS SAUDADES

 




"De infinitas saudades sobem nos montes
acções finitas como pequenas fontes,
que se inclinam a seu tempo a tremer.
Mas aquelas que mais se calam, sem o nosso saber,
as nossas forças joviais - mostram-se de par em par
nestas lágrimas a dançar."



Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 45.

UMA LÁGRIMA NAS ROSAS (para a memória de Diane Keaton)





"Se é lícita uma lágrima nas rosas,
Com que, ó noite de Abril, nos ris coroada,
Dos mártires da Pátria libertada
Uma lágrima às sombras generosas!

Seus sepulcros dão palmas gloriosas;
Heróis herdaram sua nobre espada;
E hecatombe de tigres lhe é voada
De dia a dia às cinzas sequiosas.

Mas no Elíseo onde estão, hoje pensando
Que um dia mais que o céu por Lísia passa,
Saudoso se reúne o egrégio bando.

Murmuram longo viva à jovem Graça,
E involuntária lágrima escapando
Do néctar entre as mãos lhe turba a taça."




António Feliciano de Castilho, in Poesia Romântica Portuguesa, org. Álvaro Manuel Machado, Lisboa: IN-CM, 1982, pp. 114-115.

Friday, October 10, 2025

SABEDORIA

 




" - O senhor não faz uma alta ideia de nós - contestei vagamente irritado. - Se o senhor explicasse, talvez compreendêssemos.
- Não se trata disso, nem quis ofendê-los. Pelo contrário. É que não lhes poderia dar uma explicação lógica - a única que os senhores e a imensa maioria dos homens são capazes de entender. Os senhores vivem num universo lógico que os determina e condiciona. Num universo de causa e efeito, com leis aparentemente rigorosas e exactas. - Calou-se e depois dum certo esforço prosseguiu: - Eu não; vivo num universo ilógico - e acrescentou com um certo orgulho: - Num universo em parte criado por mim. Os senhores são, ao que parece, pessoas instruídas, mas a vossa sabedoria vem dos livros. Também já tive essa espécie de sabedoria (sou, ou antes, fui, engenheiro), mas agora tenho tentado esquecê-la, porque é inimiga da autêntica, da verdadeira. A minha sabedoria vem do Cosmos - e ninguém pode possuir as duas ao mesmo tempo."



Domingos Monteiro, «A Casa Circular», in Histórias do Mês de Outubro, col. Obras de Domingos Monteiro, vol. IV, Lisboa: IN-CM, 2002, p. 65.

Thursday, October 9, 2025

PRECES

 



"As preces parecem existir, 
apesar de tudo.
Fecho os olhos e antecipo:
o que será deste meu corpo
alheio quando tudo enfim arder.
Talvez me transforme num besouro luminoso
e os lábios se confundam com a relva espantada
num dia supremamente inútil. 
Ou os braços se convertam em voo calculado
sobre as suspensas colinas da manhã. 
Talvez este rosto se dissolva na chuva absorta
ou flutue por entre um arquipélago de nuvens, 
velejando em câmara lenta. 

Aquilo que for
será o que tiver de ser. 
Fico feliz."


Ricardo Gil Soeiro, Pirilampos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 27. 

Tuesday, October 7, 2025

A ESCURIDÃO DE PORTAS REFLECTIDAS

 



"Poças de chuva no cimento
fronteiro à garagem.
O brilho espasmódico à superfície

é o espelho de uma eternidade
contrafeita e em processo
que já não devolve o nosso olhar,

como se o coração do mundo
se tivesse subtraído à atenção dispersa.
Eis a escuridão de portas reflectidas

em manchas líquidas que o sol
devorará em breve,
material pobre de lâminas de alumínio

transposto para uma percepção agitada
pela origem das coisas.
Aproximamo-nos de uma revelação

que não se cumpre.
No limite da nossa entrega
somos por tal virtude abandonados.

A origem das coisas é a origem do medo."



Luís Quintais, Nocturama, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 153.

Monday, October 6, 2025

VIAGEM NA VIDA


 "A poesia não converte. Não salva. Não se substitui à fé, por isso no paraíso de um Dante que escolheu a esperança, guia não será mais Virgílio, mas Beatriz, a teologia. A poesia simplesmente acompanha na busca da fé, e eventualmente na experiência dela, caso seja encontrada, levando para aquela outra viagem na vida, para aquela forma de ver a vida, que é abdicar de todas as ilusões que nos anestesiam como álibis (como dizia Pasolini, com a mansidão infernal dos poetas desesperados), de todas as fáceis pacificações, de todos os satisfeitos contentamentos, de todos os otimismos baratos. O poeta não está em paz com o mundo, ele é o não satisfeito com o estado das coisas."


Teresa Bartolomei, O poeta no inferno - de Dante a Jorie Graham: a «outra viagem» da poesia, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2021, p. 31. 

Sunday, October 5, 2025

MONARQUIA


 

"Andam a dizer mal da Monarquia,
Mas sem razão, falemos a verdade;
Porque aos bons ninguém dá mais garantia
Nem pune aos maus com mais severidade.

Nunca paixões de certa qualidade
Prevaleceram contra o que cumpria, 
Nem consta que inspirasse a iniquidade
Despacho, lei, decreto ou portaria!

Há setecentos anos simplesmente
Que este sistema nos governa, e vêde
Comércio, indústria,  tudo florescente.

Os caminhos de ferro é uma rede!
E quanto a instrução, toda esta gente
Faz riscos de carvão numa parede."



João de Deus, Campo de Flores, Tomo II, coord. Teófilo Braga, 9.ª edição, Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 11. 

Saturday, October 4, 2025

A GOELA DO LOBO

 


"E, quando todo o povo lá estava reunido, São Francisco levantou-se e pregou, dizendo-lhes entre outras coisas como, por causa dos pecados deles, Deus permitia tais flagelos, e quanto o fogo do inferno, que tem de durar eternamente para os condenados, é mais temível do que a raiva do lobo, que só pode matar o corpo: «Como é, pois, de temer a goela do inferno quando a goela de um pequeno animal assusta e faz tremer uma tal multidão. Virai-vos para Deus, meus bem-amados, fazer penitência pelos vossos pecados, e Deus vos livrará do lobo no presente e do fogo do inferno no futuro.»"


Florilégio, trad. M.F. Gonçalves de Azevedo, Lisboa: Estampa, 1991, p. 82. 

Friday, October 3, 2025

GRANDEZA

 



"Quanto à poesia, que os últimos elementos minerais das viagens rolem para o esquecimento dos mares.
O espaço não contém nenhum bem para o homem. Há escritores que falam das lições da paisagem, fingem acreditar que as pedras e o céu se entregam a uma mímica que faz deles professores. Em contrapartida, os homens podem imitar as atitudes e as virtudes morais de uma cidade, de um território, de uma zona de vegetação; serenidade, inteligência, grandeza, desespero, voluptuosidade.
Mas os viajantes sérios têm feito pouco desta retórica: as viagens de Montaigne são secas, as de Descartes despidas de tudo, apenas se interessam pelos homens."


Paul Nizan, Aden-Arábia, trad. José Borrego, Lisboa: Editorial Estampa, 1991, p. 135.

Thursday, October 2, 2025

ABISMAR-SE



 "O sol abismou-se. O vento esfria as águas e acumula, um pouco por toda a parte, uma noite densa e profunda. Breu cerrado, sem estrelas nem lua."


Luísa Dacosta, A-Ver-O-Mar: crónicas, Porto: Figueirinhas, 1980, p. 73.