Monday, May 31, 2010

BALANÇO MENSAL 05



"
O Pobrezinho
(chorando)

Só tu, estrela, me conheces
Em minha dor, minha aflição!
Só tu não dormes, não esqueces...
Só tu ouviste as minhas preces...
Bendita, estrela, o teu clarão!"


Guerra Junqueiro, Os Simples, Lisboa: Biblioteca Ulisseia, 2000, p. 56.

Saturday, May 29, 2010

DÉCIMA SEGUNDA E ÚLTIMA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



“É nesse momento que κρίσίς e κρίτίκή se acercam: na profundidade do acto de diagnóstico do que poderá ter sido um julgamento do gosto após a longa incubação da doença. Cabe à τέκνη expandir o que esteve reprimido, libertar o que a contingência quis manter na aparência do completo, a decifração dos sintomas que acompanham as convulsões e circunvoluções. O crítico entra humildemente nesses instantes de crise com as palmas das mãos abertas e firmes para tomar a nova pulsação: recolhe-as e remete-se ao silêncio quando o paciente se afirma capaz de aceitar a cura.”


João B. de Lemos, Arte e Crítica, Porto: ed. do autor, p. 2.

Wednesday, May 26, 2010

DÉCIMA PRIMEIRA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



"É este sentido geral de apreciação desfavorável, ou de julgamento negativo, que persistiu até aos nossos dias, e de tal modo lhe é inerente uma conotação de destruição que não raras vezes na crítica literária a palavra crítica é substituída por apreciação, ou se a faz anteceder de palavras como análise, para esbater, ou pelo menos compensar com uma noção de rigor, a ideia de subjectivismo que à crítica é julgado inerente.
Se crítica no seu sentido geral se desenvolveu e fixou enquanto censura, o que se pode afirmar é que a evolução do sentido especializado de crítica se fixou em qualidades que gravitam em torno de dois conceitos englobantes: gosto e cultura (no sentido de se ser culto). É assim que exercer um discurso crítico é tido como exercitação de um discurso padrão de cultura, e como tal de gosto, numa justificação mútua e de algum modo tautológica. A actividade de discriminação que o crítico, a partir deste estatuto intersubjectivo da crítica, pode exercer sobre as obras que entretanto crítica surge legitimada, sancionada e confirmada pela noção judicativa que se foi formando da crítica. Daqui até à receita, por parte do crítico, de regras de composição aos escritores vai um passo de anão. Daqui até à destruição de autores que se não enquadram nos esquemas de gosto do crítico vai uma distância milimétrica. (...)
Tornou-se inevitável, portanto, a preocupação da crítica moderna em evitar os duvidosos atalhos que a crítica inspirada por um humanismo subjectivista percorreu, e que em boa parte ainda percorre (mesmo que se apresente numa diferente paisagem verbal e conceptual). Por outro lado, é compreensível que a busca de uma metodologia rigorosa se tornasse também a preocupação dominante em qualquer investigação ou crítica da literatura. Não admira, por isso, que tenha surgido como que um contrapoder a esse tipo de crítica que levou (leva) o próprio subjectivismo a transformar-se em dogma estético, i.e., uma crítica que tenta alcançar a objectividade total dos elementos de composição textual cuja especificidade é facilmente identificável com uma forma vazia de substância subjectiva, ou seja, com a zona das formas."


Manuel Frias Martins, "Crítica vs. Crítica", in Sombras e Transparências da Literatura, Lisboa: IN-CM, 1983, pp. 16-17; 18.

Tuesday, May 25, 2010

DÉCIMA PREMISSA PARA T.S.G PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



"A clareza cognitiva (classificatória) é uma reflexão, um equivalente intelectual da certeza do comportamental. Ocorrem e desaparecem juntas. Constatamos num lampejo como estão ligadas quando desembarcamos num país estrangeiro, quando ouvimos uma lingua estrangeira, quando observamos uma conduta que nos é estranha. Os problemas hermenêuticos que então enfrentamos oferecem um primeiro vislumbre da impressionante paralisia comportamental que se segue ao fracasso da capacidade classificatória. Compreender, como sugeriu Wittgenstein, é saber como prosseguir. É por isso que os problemas hermenêuticos (que surgem quando o significado não é irreflectidamente evidente, quando tomamos consciência de que as palavras e significado não são a mesma coisa, de que existe um problema de significado) são vividos como irritantes. Problemas hermenêuticos não resolvidos significam incerteza sobre como uma situação deve ser lida e que reacção deve produzir os resultados desejados. Na melhor das hipóteses, a incerteza produz confusão e desconforto. Na pior, carrega um senso de perigo."


Zygmunt Bauman, Modernidade e Ambivalência, trad. Marcus Penchel, Lisboa: Relógio D'Água, 2007, p. 67.

Monday, May 24, 2010

NONA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



"Estar dentro do cânone é estar protegido do desgaste normal, ser merecedor de um número infinitamente grande de possíveis relações internas e segredos, ser tratado como um heterocosmos, uma Tora em miniatura. É adquirir propriedades mágicas e ocultas que são de facto muito antigas. Sir Thomas Browne descreveu o mundo como um «manuscrito público e universal», uma descrição pretensiosa da noção de Santo Agostinho do mundo como um poema, visível e acessível a todos, apesar de as suas correspondências estarem vedadas a todas as mentes, excepto às mais perspicazes. Baudelaire deu à ideia uma formulação moderna forte num soneto famoso. A equação é ambivalente: se o mundo é um livro, reunido, quando visto pelo prisma certo, num único volume, então o livro é um mundo capaz de ser desfolhado num universo. Todas as discórdias se podem converter em concórdias, quer no céu, quer nas páginas. Para o livro, ou o mundo, o tempo pára; apenas os observadores, os intérpretes, são mutáveis e se encontram sujeitos ao atrito temporal.
Estes intérpretes devem estar vigilantes e ser zelosos, pois conservar uma obra canónica, mantê-la num estado de modernidade intemporal, é empresa delicada e infindável. Por isso o cânone, apesar de não ser hermético, é difícil de penetrar."


Frank Kermode, Formas de Atenção, trad. Maria Georgina Segurado, Lisboa: Ed. 70, p. 89.

Sunday, May 23, 2010

OITAVA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



"- Mas voltando ao nosso quid. Condeno in limine o título Gaitinha do Capador...
- Ainda não compreendi porquê. Não é assim que o nosso bom povo - como dizem os sábios da Academia e os deputados de S. Bento - chama ao instrumentinho de beiços, de tubos desiguais, feito de lata ou de cana, com que são convidadas as donas - vira-vira, vira-vi - a capar os animais, favorecendo-lhes o crescimento, com preservá-los das turbulências do vício sexual? Porque não hei-de empregar o vocábulo, se é corrente, se é o único corrente?
- Está relegado ao lazareto!
- Que critério de falsa decência, santo Deus! Ainda nisto se vê a psicose da obscenidade que atormentava os frades ou os pregadores, que foram os primeiros a mexer no léxico. Sempre queria que me dissessem se a imagem da realidade pode limpar-se do que tem de sujo a própria realidade. Se em vez de Gaitinha do Capador, empregasse Gaitinha do Castrador, a operação ficava em si mais ensaboada? Não vejo como a pudicícia verbal possa expungir da ideia o que comporta de torpe ou freudiano. Porque há-de ser nestes actos da vida rural mais decente castrar do que capar?
- Convencionou-se... Há que respeitar as convenções que encerram às vezes o mel venusino, que adoça a vida, e têm a força estática de montanhas.
- Pelo que me diz respeito, peço licença para discordar. Gaitinha do Capador dá, com a cromática verbal, a simplez e, acima de tudo, a modelação rústica dos meus versos. Por isso emprego a denominação, e por nada deste mundo a modificarei. Nunca reparou para um capador a tocar a sua gaitinha, por um dia de sol, em pleno dédalo da aldeia? Realiza-se ali a anastomose da natureza com a prática a efectuar que nem a de Cristo com a Eucaristia.
Mário Delorme riu do espalhafatoso da comparação e pronunciou com plácida e contemporizante doçura:
- Sempre com ideias ímpares este Graziel !
- Ímpares? E as pares? Que é isso, senhor professor! (...) Mas Vossa Excelência deu-se ao incómodo de matutar sobre o título de Gaitinha do Capador... noto-o com desvanescimento...
- Não tinha que matutar. E com franqueza lhe digo, o título provocou-me uma má disposição que se não dissipou com a leitura. Porque não lhe chamou antes Flautinha de Pã? Hem? Repare que nome tão gracioso que me acudiu!... Não gosta? E Siringe do Fauno? Não é mais bonito?
- Confirma-se que esteve a meditar no título e, por dedução, na minha ervilhaca... Agradeço-lhe muito, mas crismá-lo nem a pedido do Cerejeira. E que me diz dos versos?
- Devo dizer-lhe, antes de ir mais longe, que não me repugna a poesia moderna, mormente a abstracta, para que se podem encontrar duas, três ou mais explicações subjectivas.
- Ao gosto do freguês?
- Ao gosto das almas poéticas, hipersensíveis. Agora se o meu antigo discípulo, que eu tanto aprecio pela inteligência aguda e original, embora me tenha dado o grande desgosto de me obrigar a tomar uma atitude severa, quis fazer livre-versismo, porque conservou a rima?
- Precisamente porque sou partidário do livre-versismo. Se o não fosse, teria abstraído da rima.
- Não alcanço.
- É fácil de alcançar. A ideia de liberdade tanto implica saltar todas as barreiras convencionais, como só duas, como só uma. Deitei todas ao vazadoiro, menos a rima.
- A odiosa rima?
- Para não ficar a odiosa prosa. Eu aspiro a que os meus soem como as campainhas das vacas, as garridas catedrais, como as cortinas venezianas de tubos sonoros às portas dos barbeiros.
- E isso é poesia?
- E é poesia essa especulação acefálica, apodética, cata-vêntica onde o astro super-realista parece ter voltado ao caos do verbo?
- Abre os horizontes da imaginação...
- O meu ideal era não fazer mais que virelais. Mas a simplicidade que exige não é compatível com o nosso eu de complexos, muito mais depois de roçar os calções nas bancadas duma faculdade portuguesa. Mas parto de duas ou três ideias elementares, cândidas como a de Branca Flor entre os anões, glosadas ao som da gaitinha de beiços, tangida por um Sileno de aldeia.
- Estou a redescobrir o meu antigo aluno... Como a índole de um homem é menos inflexa que o aço!"


Aquilino Ribeiro, "O professor intemerato e A Gaitinha do Capador", in Casa do Escorpião, Lisboa: Bertrand Editora, 1985, pp. 130-132.

Saturday, May 22, 2010

SÉTIMA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA

"L'expérience esthétique est amputée de sa fonction sociale primaire précisément si la relation du public à l'oeuvre d'art reste enfermée dans le cercle vicieux que renvoie de l'expérience de l'oeuvre à l'expérience de soi en inversement, et si elle ne s'ouvre pas sur cette expérience de l'autre qui s'accomplit depuis toujours, dans l'expérience artistique, au niveau de l'identification esthétique spontanée qui touche, qui bouleverse, qui fait admirer, pleurer ou rire par sympathie, et que seul le snobisme peut considérer comme vulgaire.
C'est précisément dans ces phénomènes d'identification, et non au stade ultérieur d'une réflexivité esthétique affranchie d'eux, que l'art transmet des normes d'action - et cela d'une manière qui ménage à l'homme une marge de liberté entre l'impératif des prescriptions juridiques et la contrainte socialisante insensiblement excercée pas les institutions."


Hans Robert Jauss, "Petite apologie de l'expérience esthétique", in Pour une esthétique de la réception, trad. Claude Maillard, Paris: Gallimard, 1998, pp. 161-162.

Friday, May 21, 2010

SEXTA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



"O autor indica o ponto em que, na obra, uma vida é posta em jogo. Posta em jogo, não expressa; posta em jogo, não satisfeita: por isso, o autor não pode senão permanecer na obra, insatisfeito e não dito. Ele é o ilegível que torna possível a leitura, o vazio lendário de que provém a escrita e o discurso. O gesto do autor manifesta-se na obra à qual dá vida, como uma presença incongruente e estranha, exactamente como, segundo os teóricos da «comedia dell'arte", o laço de Arlequim interrompe constantemente os acontecimentos que se vão desenrolando no palco e, obstinadamente, desfaz a sua trama. E, porém, exactamente como, segundo esses mesmos teóricos, o laço deve o seu nome ao facto de, como um nó, voltar a reatar o fio que afrouxou e desatou, também o gesto do autor garante a vida da obra unicamente através da presença irredutível de uma margem inexpressiva. Tal como o mimo no seu mutismo, tal como o Arlequim com o seu laço, o autor volta incessantemente a encerrar-se no pó que ele próprio criou. E, como em certos livros velhos que reproduzem, ao lado da página de rosto, o retrato ou a fotografia do autor, nós tentamos, em vão, decifrar nessas feições enigmáticas as razões e o sentido da obra, também o gesto do autor hesita no umbral da obra como o exergo arrogante que pretende, ironicamente, possuir o seu inconfessável segredo."


Giorgio Agamben, "O autor como gesto", in Profanações, trad. Luísa Feijó, Lisboa: Cotovia, 2005, pp. 96-97.

Thursday, May 20, 2010

QUINTA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA


"É que, se interpretar é julgar, o julgamento é o lugar do próprio efémero, pois não saberemos como realizar tal acção, nem poderemos julgar tudo e para sempre. Assim, desde as origens estóicas e talmúdicas, a hermenêutica tornou-se na ciência do instável, ou seja, a ciência que inclui a ausência das suas próprias bases científicas: instabilidade e ausência estas que se reflectem na actual crítica literária.
Por isso, só se pode ler, como se se soubesse ler; só se pode entender, se não desejarmos entender tudo; só se pode julgar, como se não fizéssemos um juízo. Colocados que estamos em tal situação, que sentido poderá fazer, hoje, a actividade crítica, se não o sentido da própria ausência de sentido, que caracteriza a epistemologia deslizante deste fim de século?
Mas tal situação, para a qual a própria palavra crise já não parece ser suficiente, não será, por outro lado, um indício ou sintoma duma já imparável mudança de paradigma nas funções da relação dos homens consigo próprios e, por isso, da linguagem com a própria linguagem?"

E. M. de Melo e Castro, "A Crítica e os limites do literário", in Voos da Fénix Crítica, Lisboa: Cosmos Edições, 1995, pp. 23-24.

Wednesday, May 19, 2010

QUARTA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



"O destino da literatura, e da arte, está hoje dependente da nossa capacidade de prescindirmos de a adorar (de a rodear de um culto), sem que isso implique um menor respeito; muito pelo contrário, só podemos respeitar verdadeiramente aquilo que não é da ordem da necessidade, como o é o deus que se adora. O eterno da obra literária não é da ordem da transcendência, não corresponde a um tempo anterior ou posterior ao tempo do mundo - só no mundo, na contingência, há o eterno, o perpétuo transcender-se das marcas inapagáveis. Dizer "contingência" implica dizer "relação", que é em si o movimento de transcender-se. Tanto a ideia de imanência do sentido como a da sua transcendência falham esse imprevisível da relação pelo qual algo não é idêntico, mas é eterno.
Há textos face aos quais todas as estratégias de leitura se revelam insuficientes. E isso é inseparável do facto de, nessa mesma leitura, elas serem sujeitas a alterações, inflexões ou desvios. É isso que define uma relação, o não estar determinada de fora, mas valer como tal, na sua complexidade. Admiti-lo é admitir que é a própria relação que faz vacilar a distinção entre leituras correctas e leituras erróneas e que o segredo ou vazio que suspende a apropriação ou uso desse tipo de textos (a que chamamos literatura) é uma força activa, desencadeadora do sentir-pensar."


Silvina Rodrigues Lopes, "A Literatura como Experiência", in Literatura, Defesa do Atrito, Lisboa: Vendaval, 2003, pp. 18-19.

Tuesday, May 18, 2010

TERCEIRA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA

"On sait qu'un commentaire est autre chose qu' une critique qui distribue les ombres et les lumières. Le commentaire part de l'idée que le texte dont il traite est classique; il part donc en quelque sorte d' un préjugé. Il se distingue encore de la critique en ne s' intéressant qu' à la beauté et au contenu positif de son texte. Or, c'est un geste très dialectique de recourir en même temps une forme autoritaire, pour rendre hommage à une poésie qui, non seulement n'a rien d' archaïque, mais encore tient tête à ce qui aujourd'hui fait autorité.
Ce geste rejoint une vieille maxime dialectique: surmonter les difficultés en les accumulant. La difficulté qu'il s'agit ici de surmonter est celle de lire aujourd'hui de la poésie. Et s'il était possible de parer à cette dificulté en lisant un tel texte tout à fait comme s'il avait été souvent mis à l'épreuve et chargé de pensée, en un mot comme un texte classique? Et si, par ailleurs, prenant le taureau par les cornes et ayant conscience du fait particulier qui correspond très exactement à la difficulté de lire aujourd'hui de la poésie - si on partait donc d'un recueil de poésie actuelle pour lire des poèmes comme des textes classiques?"


Walter Benjamin, "Commentaires de quelques poèmes de Brecht", in Oeuvres III, trad. Rainer Rochlitz, Paris: Gallimard, 2000, pp. 226-227.

Monday, May 17, 2010

SEGUNDA PREMISSA PARA T.S.G. PARA O SEU TEXTO SOBRE CRÍTICA



"Um dos erros mais graves, porque dos mais vulgares, e tanto mais vulgar porque se appoia na vaidade, que é a mais vulgar das qualidades humanas, é o do crítico, ou o simples leitor, se erigir, espontaneamente, em crítico absoluto, em auctoridade universal. Isto succede com grande frequência em materia artística; por vezes, até, em materia scientifica.
Há quem chegue ao ponto de, sem saber nada, a valer, de medicina, emitir opiniões sobre doenças e casos clínicos. Ha, mas isto é mais raro.
Um individuo qualquer, desconhecedor do que seja o calculo differencial, não diz, ao folhear um livro sobre o assunto: »isto é incomprehensivel», ou, «este homem não sabe o que diz»; diz simplesmente, «não comprehendo isto». Mas o mesmo individuo, se fôr também desconhecedor de metaphysica, já vulgarmente não diz, ao folhear um livro sobre esse assunto: «não comprehendo isto»; a sua tendencia é para dizer «que confuso que é este homem!», ou «isto é incomprehensivel». É que o ponto technico da metaphysica consiste em pensamentos e idéas, e não nas palavras empregadas, que são as correntes. E se o mesmo individuo folhear um livro em que essas idéas metaphysicas estejam expostas em verso, redobrarão as suas accusações ao auctor por aquillo que é, afinal, a ignorancia d'elle que está lendo.
Ninguem, desconhecedor de medicina, pasma de que não comprehenda determinado passo de um livro medico escripto cerradamente na terminologia da materia. Mas qualquer individuo, ignorante da metaphysica em geral e da de Hegel em particular, se acha apto a querer comprehender, a criticar, e, se fôr sincero, a censurar, o verso hegeliano de Anthero:
Não-ser, que é o ser unico absoluto!
São assim a maioria dos leitores e dos criticos. Outros, em menor numero, não levam a tal ponto a sua vaidade instinctiva, a sua divinização de si mesmos. Não levam a tal ponto, mas a algum ponto levam. Poderão reconhecer certo poema ou certo verso, como metaphysico, e, sabemdo-se incompetentes na materia, desistir de o appreciar. Mas raras vezes se sentirão incompetentes para appreciar certo typo de emoção, mais subtil, mais intensa, ou mais complexa, do que as que em si conhecem: ahi cahirão no «é muito mau», no «que trapalhada», no «isto é incomprehensivel»."


Fernando Pessoa, "Conselhos aos críticos de um poeta-crítico", in Pessoa Inédito, coord. Teresa Rita Lopes, Lisboa: Livros Horizonte, 1993, pp. 390-391.

Sunday, May 16, 2010

PRIMEIRA PREMISSA PARA T.S.G PARA O SEU TEXTO SOBRE CRITICA



"O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que consegue traduzir de outro modo ou em novo material a sua impressão das coisas belas.
A mais elevada, como a mais medíocre, forma de crítica é uma expressão autobiográfica.
Os que encontram significados disformes em coisas belas são corruptos sem agradarem, o que é um defeito.
Os que encontram belos significados em coisas belas são os cultos. Para esses há esperança.
São os eleitos para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo.
A antipatia do séc. XIX pelo realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara ao espelho.
A antipatia do séc. XIX pelo romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
A vida moral do homem é assunto para o artista, mas a moralidade da arte consiste na perfeita utilização de um meio imperfeito. Um artista não quer provar coisa alguma. Até as coisas verdadeiras podem ser provadas.
Um artista não tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável.
Um artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.
Para o artista, o pensamento e a linguagem são instrumentos de uma arte.
Para o artista, o vício e a virtude são matéria de uma arte.
Do ponto de vista formal, o modelo de todas as artes é a arte do músico. Do ponto de vista sentimental, o trabalho do actor é o modelo.
Toda a arte é simultaneamente superfície e símbolo.
Os que penetram para lá da superfície, fazem-no a suas próprias expensas.
Os que lêem o símbolo fazem-no a suas próprias expensas.
O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida.
A diversidade de opinião sobre uma obra de arte revela que a obra é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está em consonância consigo próprio.
Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil desde que a admire. A única desculpa para fazer uma coisa inútil é ser objecto de intensa admiração.
Toda a arte é perfeitamente inútil."


Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray [prefácio], trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, pp. 15-16.

Friday, May 14, 2010

O JUSTO, O QUE SOFRE


"O justo, que sofre e vê tudo isto, corre o perigo de extraviar-se na sua fé. Será verdade que Deus não vê? Não ouve? Que não O preocupa o destino dos homens? «Foi, então, para nada que conservei um coração puro (...)! Sou provado a cada hora e molestado continuamente (...) o meu coração lastimava-se» (Sal 73, 13-14, 21). A mudança inesperada acontece quando o justo sofredor, no santuário, dirige o olhar para Deus e, contemplando-O, alarga a sua perspectiva. Agora vê que a aparente esperteza dos cínicos com sucesso, observada à luz, é estupidez: esta espécie de sabedoria significa «ser um louco, sem compreensão», ser «como um animal» (Sal 73, 22). Eles permanecem na perspectiva dos animais e perderam a perspectiva do homem, que vê para além do aspecto material: Deus e a vida eterna."


Joseph Ratzinger (Bento XVI), Jesus de Nazaré, trad. José Jacinto Ferreira de Farias, scj, Lisboa: A esfera dos livros, 2007, p. 272.

Thursday, May 13, 2010

DO QUE É MAL CONTADO




"sou comarca onde parou de chover
e quem não se lembra da sanguechuva
que foi em tempos este coração

já não tenho a vida toda (faço trinta
o mês que vem) e a verdade é que nem
na morte se pôde alguma vez confiar

muito mal contado, isso da morte"


Miguel-Manso, Santo Subito, Lisboa, 2010, p. 104.

Wednesday, May 12, 2010

UMA TARDE MARIA CRISTINA


"Uma tarde Maria Cristina
obrigou-me a comer osgas
e a repetir
com a boca cheia de osgas
as pessoas sensíveis
gostam de comer osgas
mas não gostam
de ver matar osgas
por isso têm de comer
as osgas vivas
se querem fazer na vida
aquilo de que gostam"


Adília Lopes, O Poeta de Pondichéry seguido de Maria Cristina Martins, Braga/Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 36.

Tuesday, May 11, 2010

POESIA E PASSARINHOS FEIOS


"Tenho pelos meus poemas
a ternura que a coruja tinha pelos filhos
mas não tenho a sua cegueira
porque sei que Diderot acha os meus poemas maus
a coruja disse à águia
podes comer os passarinhos que quiseres
mas não comas os meus filhos
os meus filhos são os passarinhos mais bonitos
que encontrares na floresta
a águia comeu os filhos da coruja
comi os teus filhos porque eram feios
disse a águia à coruja
as comparações são muito perigosas
(como os diamantes)
certas comparações valem fortunas
não vejo o que possa ser comer poemas
talvez fazer contas ou hieróglifos obscenos
nos papéis onde estão os meus poemas
não vejo quem possa ser a águia
Diderot não é a águia
mas uma pessoa neste momento
pode estar a fazer contas e hieróglifos obscenos
num dos meus poemas
não vejo uma águia a fazer contas e hieróglifos
obscenos
nos filhos de uma coruja
talvez Walt Disney visse"


Adília Lopes, O Poeta de Pondichéry seguido de Maria Cristina Martins, Braga/Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 16.

Monday, May 10, 2010

DESCIDA VERTIGINOSA


"Mas agora todos os aparelhos telegráficos da linha tilintavam, todos os corações palpitavam, à notícia do comboio-fantasma que acabava de passar em Ruão e Sotteville. Tremia-se de medo: um rápido que seguia na frente ia certamente ser apanhado. Como um javali numa densa floresta, ele prosseguia a sua corrida, sem se importar com sinais vermelhos nem com petardos. Por pouco não foi esbarrar, em Oissel, contra uma máquina-piloto; aterrorizou Pont-le-Arche, porque a velocidade parecia não diminuir. De novo desaparecido, rolava, rolava, na noite negra, não se sabia para onde.
Que importavam as vítimas que a máquina esmagava no caminho! Não se dirigia para o futuro, indiferente ao sangue derramado? Sem condutor, no meio das trevas, como besta cega e surda largada entre a morte, rolava, rolava, carregada de carne para canhão, esses soldados já insensibilizados pela fadiga e embriagados que cantavam."


Émile Zola, A Besta Humana, trad. Sampaio Marinho, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 325.

Sunday, May 9, 2010

DO PRIMITIVISMO



"De dentes cerrados, já não conseguindo senão balbuciar, Jacques agarrara-se a ela; e Séverine agarrava-o também. Possuíram-se, reencontrando o amor no fundo da morte, na mesma volúpia dolorosa dos animais que se desventram durante o cio. Apenas se ouvia o seu respirar rouco. No tecto, o reflexo sangrento desaparecera; e, com o fogão apagado, o quarto começava a gelar, penetrado pelo frio intenso do exterior. Nem uma voz se elevava de Paris, enchumaçado de neve. Por momentos ouviu-se um ressonar vindo da casa da vendedora de jornais, ao lado. Depois, tudo mergulhou no abismo negro da casa adormecida."


Émile Zola, A Besta Humana, trad. Sampaio Marinho, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 205.

Friday, May 7, 2010

INFINITO E SEM IDADE




"E em declives de brumas e tristezas,
Sinto-me resvalar... e vou descendo
Na escuridão das cousas... Vou subindo...
Vou subindo, voando e compreendendo...
Há desmaios de névoa... A sombra aérea
Do sonho me trespassa e me embriaga
Os sentidos, que, ao mundo da matéria,
Se fecham, como a tampa dum sepulcro...
E vejo-me infinito e sem idade...
E vejo bem meu corpo que se afunda
No silêncio da noite... e vejo bem
Que sou Noite, Silêncio, Alma profunda."


Teixeira de Pascoaes, "As Sombras" in Obras, Lisboa: Círculo de Leitores, 1973, p. 52.

Wednesday, May 5, 2010

A MALHADA



"O Senhor nos livre dos pensamentos bons, eles arrastam os outros. Em geral somos livres para pensar bem, mas não cuidamos que o diabo ama os que se julgam fora de toda a tentação porque se armaram da caridade e de integridade e de piedosos conselhos. Mas ninguém é bom; e tudo o que sai do coração humano é turbulência da razão e conspirações do corpo.
O diabo é um título das nossas esperanças. Quanto mais elas são ardentes, mais nelas arde o diabo, sem se consumir, como é próprio do seu espírito. Temei os que muito amam: eles são destinados a cometer os maiores erros. Muito ama o diabo; é esse o seu maior castigo e o que o carrega de cadeias para a eternidade."


Agustina Bessa-Luís, Eugénia e Silvina, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1990, p. 7.

Tuesday, May 4, 2010

APENAS O REAL


"Apenas o real.


Diferendo. Árduo impacto.
Drenagem vidente.
Atípico e controverso
zarcão.


Superfície e miragem,
passaporte."



Joaquim Manuel Magalhães, "Traço", in Um Toldo Vermelho, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p. 67.

Monday, May 3, 2010

MOIN GRAIN EST AUX CORBEAUX


"Les morts m' écoutent seuls, j' habite les tombeaux;
Jusqu' au bout je serai l'ennemi de moi-même.
Ma gloire est aux ingrats, mon grain est aux corbeaux;
Sans récolter jamais je laboure et je sème.


Je ne me plaindrai pas: q' importe l'Aquilon,
L' opprobre et le mépris, la face de l'injure!
Puisque quand je te touche, ô lyre d'Apollon,
Tu sonnes chaque fois plus savante et plus pure?"


Jean Moréas, Les Stances, Livre I, Paris: Mercure de France, 1920, pp 29-30.

Sunday, May 2, 2010

PARA AS PRÓXIMAS TROVOADAS



"Sente-se a tensão que antecede a trovoada
Num país onde as rosas guardam as vinhas,
Porque pressentem as pragas
E as corolas adquirem as cores do alarme.
As aves voam baixo, quase em falso,
Rasam a iminência da tempestade,
Sopesam-lhe o volume e a intensidade,
Mantendo-se sempre fora do seu alcance.
São artes que nós não temos.
Resta-nos esperar a peste."


Nuno Morais, Últimos Poemas, pref. Joana Matos Frias, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 140.

Saturday, May 1, 2010

QUEM EM MAIO NÃO MERENDA, AOS FINADOS SE ENCOMENDA



"Não nos deixeis cair na curiosidade dos outros,
Na piedade dos outros ou, pior, de nós mesmos.
Livrai-nos de sermos eternamente jovens,
Mas também nados-velhos, mortos-vivos.
Livrai-nos sobretudo de nos jactarmos.
Não nos deixeis cair nas ciladas
Daqueles que só se desculpam ou nunca se desculpam.
Não nos deixeis cair na tentação de corrigir a vida
Quando tantas coisas nos morrem
E morrem às nossas mãos ou pela nossa memória.
Livrai-nos de falarmos em nome dos outros,
Dai-nos cada dia a lembrança de também sermos outros
E não nos perdoeis nunca se o esquecermos."


Nuno Morais, Últimos Poemas, pref. Joana Matos Frias, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 19.