"Estar dentro do cânone é estar protegido do desgaste normal, ser merecedor de um número infinitamente grande de possíveis relações internas e segredos, ser tratado como um heterocosmos, uma Tora em miniatura. É adquirir propriedades mágicas e ocultas que são de facto muito antigas. Sir Thomas Browne descreveu o mundo como um «manuscrito público e universal», uma descrição pretensiosa da noção de Santo Agostinho do mundo como um poema, visível e acessível a todos, apesar de as suas correspondências estarem vedadas a todas as mentes, excepto às mais perspicazes. Baudelaire deu à ideia uma formulação moderna forte num soneto famoso. A equação é ambivalente: se o mundo é um livro, reunido, quando visto pelo prisma certo, num único volume, então o livro é um mundo capaz de ser desfolhado num universo. Todas as discórdias se podem converter em concórdias, quer no céu, quer nas páginas. Para o livro, ou o mundo, o tempo pára; apenas os observadores, os intérpretes, são mutáveis e se encontram sujeitos ao atrito temporal.
Estes intérpretes devem estar vigilantes e ser zelosos, pois conservar uma obra canónica, mantê-la num estado de modernidade intemporal, é empresa delicada e infindável. Por isso o cânone, apesar de não ser hermético, é difícil de penetrar."
Frank Kermode, Formas de Atenção, trad. Maria Georgina Segurado, Lisboa: Ed. 70, p. 89.
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