"É este sentido geral de apreciação desfavorável, ou de julgamento negativo, que persistiu até aos nossos dias, e de tal modo lhe é inerente uma conotação de destruição que não raras vezes na crítica literária a palavra crítica é substituída por apreciação, ou se a faz anteceder de palavras como análise, para esbater, ou pelo menos compensar com uma noção de rigor, a ideia de subjectivismo que à crítica é julgado inerente.
Se crítica no seu sentido geral se desenvolveu e fixou enquanto censura, o que se pode afirmar é que a evolução do sentido especializado de crítica se fixou em qualidades que gravitam em torno de dois conceitos englobantes: gosto e cultura (no sentido de se ser culto). É assim que exercer um discurso crítico é tido como exercitação de um discurso padrão de cultura, e como tal de gosto, numa justificação mútua e de algum modo tautológica. A actividade de discriminação que o crítico, a partir deste estatuto intersubjectivo da crítica, pode exercer sobre as obras que entretanto crítica surge legitimada, sancionada e confirmada pela noção judicativa que se foi formando da crítica. Daqui até à receita, por parte do crítico, de regras de composição aos escritores vai um passo de anão. Daqui até à destruição de autores que se não enquadram nos esquemas de gosto do crítico vai uma distância milimétrica. (...)
Tornou-se inevitável, portanto, a preocupação da crítica moderna em evitar os duvidosos atalhos que a crítica inspirada por um humanismo subjectivista percorreu, e que em boa parte ainda percorre (mesmo que se apresente numa diferente paisagem verbal e conceptual). Por outro lado, é compreensível que a busca de uma metodologia rigorosa se tornasse também a preocupação dominante em qualquer investigação ou crítica da literatura. Não admira, por isso, que tenha surgido como que um contrapoder a esse tipo de crítica que levou (leva) o próprio subjectivismo a transformar-se em dogma estético, i.e., uma crítica que tenta alcançar a objectividade total dos elementos de composição textual cuja especificidade é facilmente identificável com uma forma vazia de substância subjectiva, ou seja, com a zona das formas."
Manuel Frias Martins, "Crítica vs. Crítica", in Sombras e Transparências da Literatura, Lisboa: IN-CM, 1983, pp. 16-17; 18.
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