"O autor indica o ponto em que, na obra, uma vida é posta em jogo. Posta em jogo, não expressa; posta em jogo, não satisfeita: por isso, o autor não pode senão permanecer na obra, insatisfeito e não dito. Ele é o ilegível que torna possível a leitura, o vazio lendário de que provém a escrita e o discurso. O gesto do autor manifesta-se na obra à qual dá vida, como uma presença incongruente e estranha, exactamente como, segundo os teóricos da «comedia dell'arte", o laço de Arlequim interrompe constantemente os acontecimentos que se vão desenrolando no palco e, obstinadamente, desfaz a sua trama. E, porém, exactamente como, segundo esses mesmos teóricos, o laço deve o seu nome ao facto de, como um nó, voltar a reatar o fio que afrouxou e desatou, também o gesto do autor garante a vida da obra unicamente através da presença irredutível de uma margem inexpressiva. Tal como o mimo no seu mutismo, tal como o Arlequim com o seu laço, o autor volta incessantemente a encerrar-se no pó que ele próprio criou. E, como em certos livros velhos que reproduzem, ao lado da página de rosto, o retrato ou a fotografia do autor, nós tentamos, em vão, decifrar nessas feições enigmáticas as razões e o sentido da obra, também o gesto do autor hesita no umbral da obra como o exergo arrogante que pretende, ironicamente, possuir o seu inconfessável segredo."
Giorgio Agamben, "O autor como gesto", in Profanações, trad. Luísa Feijó, Lisboa: Cotovia, 2005, pp. 96-97.
No comments:
Post a Comment