"O destino da literatura, e da arte, está hoje dependente da nossa capacidade de prescindirmos de a adorar (de a rodear de um culto), sem que isso implique um menor respeito; muito pelo contrário, só podemos respeitar verdadeiramente aquilo que não é da ordem da necessidade, como o é o deus que se adora. O eterno da obra literária não é da ordem da transcendência, não corresponde a um tempo anterior ou posterior ao tempo do mundo - só no mundo, na contingência, há o eterno, o perpétuo transcender-se das marcas inapagáveis. Dizer "contingência" implica dizer "relação", que é em si o movimento de transcender-se. Tanto a ideia de imanência do sentido como a da sua transcendência falham esse imprevisível da relação pelo qual algo não é idêntico, mas é eterno.
Há textos face aos quais todas as estratégias de leitura se revelam insuficientes. E isso é inseparável do facto de, nessa mesma leitura, elas serem sujeitas a alterações, inflexões ou desvios. É isso que define uma relação, o não estar determinada de fora, mas valer como tal, na sua complexidade. Admiti-lo é admitir que é a própria relação que faz vacilar a distinção entre leituras correctas e leituras erróneas e que o segredo ou vazio que suspende a apropriação ou uso desse tipo de textos (a que chamamos literatura) é uma força activa, desencadeadora do sentir-pensar."
Silvina Rodrigues Lopes, "A Literatura como Experiência", in Literatura, Defesa do Atrito, Lisboa: Vendaval, 2003, pp. 18-19.
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