"Um dos erros mais graves, porque dos mais vulgares, e tanto mais vulgar porque se appoia na vaidade, que é a mais vulgar das qualidades humanas, é o do crítico, ou o simples leitor, se erigir, espontaneamente, em crítico absoluto, em auctoridade universal. Isto succede com grande frequência em materia artística; por vezes, até, em materia scientifica.
Há quem chegue ao ponto de, sem saber nada, a valer, de medicina, emitir opiniões sobre doenças e casos clínicos. Ha, mas isto é mais raro.
Um individuo qualquer, desconhecedor do que seja o calculo differencial, não diz, ao folhear um livro sobre o assunto: »isto é incomprehensivel», ou, «este homem não sabe o que diz»; diz simplesmente, «não comprehendo isto». Mas o mesmo individuo, se fôr também desconhecedor de metaphysica, já vulgarmente não diz, ao folhear um livro sobre esse assunto: «não comprehendo isto»; a sua tendencia é para dizer «que confuso que é este homem!», ou «isto é incomprehensivel». É que o ponto technico da metaphysica consiste em pensamentos e idéas, e não nas palavras empregadas, que são as correntes. E se o mesmo individuo folhear um livro em que essas idéas metaphysicas estejam expostas em verso, redobrarão as suas accusações ao auctor por aquillo que é, afinal, a ignorancia d'elle que está lendo.
Ninguem, desconhecedor de medicina, pasma de que não comprehenda determinado passo de um livro medico escripto cerradamente na terminologia da materia. Mas qualquer individuo, ignorante da metaphysica em geral e da de Hegel em particular, se acha apto a querer comprehender, a criticar, e, se fôr sincero, a censurar, o verso hegeliano de Anthero:
Não-ser, que é o ser unico absoluto!
São assim a maioria dos leitores e dos criticos. Outros, em menor numero, não levam a tal ponto a sua vaidade instinctiva, a sua divinização de si mesmos. Não levam a tal ponto, mas a algum ponto levam. Poderão reconhecer certo poema ou certo verso, como metaphysico, e, sabemdo-se incompetentes na materia, desistir de o appreciar. Mas raras vezes se sentirão incompetentes para appreciar certo typo de emoção, mais subtil, mais intensa, ou mais complexa, do que as que em si conhecem: ahi cahirão no «é muito mau», no «que trapalhada», no «isto é incomprehensivel»."
Fernando Pessoa, "Conselhos aos críticos de um poeta-crítico", in Pessoa Inédito, coord. Teresa Rita Lopes, Lisboa: Livros Horizonte, 1993, pp. 390-391.
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