"- Mas voltando ao nosso quid. Condeno in limine o título Gaitinha do Capador...
- Ainda não compreendi porquê. Não é assim que o nosso bom povo - como dizem os sábios da Academia e os deputados de S. Bento - chama ao instrumentinho de beiços, de tubos desiguais, feito de lata ou de cana, com que são convidadas as donas - vira-vira, vira-vi - a capar os animais, favorecendo-lhes o crescimento, com preservá-los das turbulências do vício sexual? Porque não hei-de empregar o vocábulo, se é corrente, se é o único corrente?
- Está relegado ao lazareto!
- Que critério de falsa decência, santo Deus! Ainda nisto se vê a psicose da obscenidade que atormentava os frades ou os pregadores, que foram os primeiros a mexer no léxico. Sempre queria que me dissessem se a imagem da realidade pode limpar-se do que tem de sujo a própria realidade. Se em vez de Gaitinha do Capador, empregasse Gaitinha do Castrador, a operação ficava em si mais ensaboada? Não vejo como a pudicícia verbal possa expungir da ideia o que comporta de torpe ou freudiano. Porque há-de ser nestes actos da vida rural mais decente castrar do que capar?
- Convencionou-se... Há que respeitar as convenções que encerram às vezes o mel venusino, que adoça a vida, e têm a força estática de montanhas.
- Pelo que me diz respeito, peço licença para discordar. Gaitinha do Capador dá, com a cromática verbal, a simplez e, acima de tudo, a modelação rústica dos meus versos. Por isso emprego a denominação, e por nada deste mundo a modificarei. Nunca reparou para um capador a tocar a sua gaitinha, por um dia de sol, em pleno dédalo da aldeia? Realiza-se ali a anastomose da natureza com a prática a efectuar que nem a de Cristo com a Eucaristia.
Mário Delorme riu do espalhafatoso da comparação e pronunciou com plácida e contemporizante doçura:
- Sempre com ideias ímpares este Graziel !
- Ímpares? E as pares? Que é isso, senhor professor! (...) Mas Vossa Excelência deu-se ao incómodo de matutar sobre o título de Gaitinha do Capador... noto-o com desvanescimento...
- Não tinha que matutar. E com franqueza lhe digo, o título provocou-me uma má disposição que se não dissipou com a leitura. Porque não lhe chamou antes Flautinha de Pã? Hem? Repare que nome tão gracioso que me acudiu!... Não gosta? E Siringe do Fauno? Não é mais bonito?
- Confirma-se que esteve a meditar no título e, por dedução, na minha ervilhaca... Agradeço-lhe muito, mas crismá-lo nem a pedido do Cerejeira. E que me diz dos versos?
- Devo dizer-lhe, antes de ir mais longe, que não me repugna a poesia moderna, mormente a abstracta, para que se podem encontrar duas, três ou mais explicações subjectivas.
- Ao gosto do freguês?
- Ao gosto das almas poéticas, hipersensíveis. Agora se o meu antigo discípulo, que eu tanto aprecio pela inteligência aguda e original, embora me tenha dado o grande desgosto de me obrigar a tomar uma atitude severa, quis fazer livre-versismo, porque conservou a rima?
- Precisamente porque sou partidário do livre-versismo. Se o não fosse, teria abstraído da rima.
- Não alcanço.
- É fácil de alcançar. A ideia de liberdade tanto implica saltar todas as barreiras convencionais, como só duas, como só uma. Deitei todas ao vazadoiro, menos a rima.
- A odiosa rima?
- Para não ficar a odiosa prosa. Eu aspiro a que os meus soem como as campainhas das vacas, as garridas catedrais, como as cortinas venezianas de tubos sonoros às portas dos barbeiros.
- E isso é poesia?
- E é poesia essa especulação acefálica, apodética, cata-vêntica onde o astro super-realista parece ter voltado ao caos do verbo?
- Abre os horizontes da imaginação...
- O meu ideal era não fazer mais que virelais. Mas a simplicidade que exige não é compatível com o nosso eu de complexos, muito mais depois de roçar os calções nas bancadas duma faculdade portuguesa. Mas parto de duas ou três ideias elementares, cândidas como a de Branca Flor entre os anões, glosadas ao som da gaitinha de beiços, tangida por um Sileno de aldeia.
- Estou a redescobrir o meu antigo aluno... Como a índole de um homem é menos inflexa que o aço!"
Aquilino Ribeiro, "O professor intemerato e A Gaitinha do Capador", in Casa do Escorpião, Lisboa: Bertrand Editora, 1985, pp. 130-132.
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