"Ó casas relativas, deformadas
pelos ares e gostos insalubres
ou bons. E mesmo, piores. Silenciadas,
alegres, agitadas ou estúpidas.
Vejo-vos em fantasmas umas vezes
e outras vos ostentais reincidentes,
que doces prostitutas pareceis
vistas assim do beco com essas lentes.
Dá-se que uma mulher em negro sobre-
vém e apunhala os prédios alvadios
eretos ao luar, luar salobre
como vaga de mar lambendo rios.
Assombram-se os quartéis. Mas as meninas
ainda debruçadas nas janelas
esperam pelas noites assassinas
em que uns gangsters venham indeléveis.
E no entanto, afinal, sob esse sol
de outubro, as casas ficam dissolvidas:
nem mansão de fantasmas e nem molde
das moradas casuais que há nessa ante-ilha.
Todavia, vejamos, há meninos
nascidos, e há uns tantos moribundos
a olhar as mãos, e os dedos superfinos
das próprias mãos, não muito, mas imundas.
E agora penetramos: Camarinhas,
halls, salas e outras peças sem suores,
algumas sujidades tuas, minhas,
e vasos para mijo tão conformes.
Encolhem-se de pejo, ficam rubras,
atrás dos reposteiros, doces lares
com cheiros de comidas e ossos-bucos
e alguns mirrados numes tutelares.
Gozemos as visitas dos sofás,
perplexas, muitas vezes, com os tremores
de terra ou sufocadas pelo gás,
senão por transcendentes cobertores.
Serão pelas memórias de família,
pelos vultos das pátrias (ó que tempos!)
pelos falsos demônios em vigília
mais cavilosos que os genuinos demos.
(...)"
Jorge de Lima, "Invenção de Orfeu", in Antologia Poética, selecç. Paulo Mendes Campos, Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1969, pp. 134-136.
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