"Finalmente despi-me e meti-me na cama. Tive vontade de rezar, mas não consegui. Nem sempre consigo rezar quando me apetece. Em primeiro lugar, porque sou uma espécie de ateu. Gosto de Jesus, mas não me interesso pela Bíblia. Os discípulos, por exemplo! Se querem saber a verdade, só me chateiam. Foram estupendos quando Jesus morreu, mas enquanto Ele vivia não lhe serviram para nada. Deixaram-No perder-se. Gosto das outras coisas, mas dos discípulos não gosto. Para ser franco, depois de Jesus, a personagem da Bíblia de que eu mais gosto é daquele lunático que vivia nos túmulos e passava a vida a cortar-se com pedras. Gosto dez vezes mais desse pobre diabo do que dos discípulos. Costumava discutir o assunto em Whooton com um tipo chamado Arthur Childs. Esse Childs era quacre e andava sempre a ler a Bíblia. Era um óptimo rapaz e eu gostava dele, mas não podíamos concordar com certas coisas, especialmente com o que ambos pensávamos dos discípulos. Dizia-me que se eu não gostava dos discípulos também não gostava de Jesus. Dizia isso porque Jesus tinha arranjado os discípulos, e, por conseguinte, devíamos gostar deles. Eu dizia-lhes que se eu não gostava dos discípulos também não gostava de Jesus. Dizia isso porque Jesus tinha arranjado os discípulos, e, por conseguinte, devíamos gostar deles. Eu dizia-lhe que sabia muito bem que fora Jesus quem arranjara os discípulos, mas arranjara-os ao acaso. Com certeza que ele não tinha tempo para pensar em toda a gente. E dizia-lhe que isto não era nenhuma blasfémia. Jesus não era culpado de não ter tempo. Certa vez perguntei ao Childs se pensava que Judas, o que traiu Jesus, tinha ido para o Inferno depois de se ter suicidado. Childs disse que sim, que fora para o Inferno. Ora é com isso que eu não posso concordar. Disse-lhe que era capaz de apostar mil dólares em como Jesus nunca o mandaria para o Inferno. E digo-vos que apostava mesmo, se tivesse os mil dólares. Acho que os outros discípulos eram capazes de mandar Judas para o Inferno. Mas aposto que Jesus nunca o faria."
J. D. Salinger, The Catcher in the Rye [Uma Agulha no Palheiro], trad. João Palma-Ferreira, Lisboa; Livros do Brasil, 2000, pp., 118-119.
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