Thursday, June 2, 2011

PRÉ-HUMANOS


"Só uma vez me explicou seriamente o que significava aquele pomar dos mortos - tivemos de nos encontrar várias vezes, e ela percebeu que aquele bosque me aterrorizava. Na Cólquida, disse, só as mulheres eram enterradas, os cadáveres dos homens eram pendurados das árvores até que os pássaros os limpassem, deixando apenas os esqueletos, que depois eram depositados, por famílias, em necrópoles nas cavernas rochosas, era um método limpo e digno, não entendia o que me perturbava tanto nisso. Tudo, mais ou menos, mas em especial a ideia dos pássaros a debicarem um cadáver humano e a comê-lo como qualquer outra carne morta. Fiz-lhe notar que o morto devia ser enterrado ou deposto no seu túmulo de rocha fisicamente intacto, para poder fazer a sua jornada pelo Hades e chegar ao Além. Ela contrapunha que os mortos já não tinham alma, que ela escapa incólume e é venerada na Cólquida em lugares próprios. Para que se desse o seu renascimento num outro corpo, a deusa voltava a juntar os corpos destroçados dos mortos. Estas eram as crenças da Cólquida. E observava-me atentamente enquanto ia falando. E o importante não seria, afinal, perguntou por fim, saber que sentido se atribui a uma acção? Esta ideia era-me estranha, não tinha dúvidas, e não as tenho hoje, de que só há uma maneira correcta de venerar os nossos mortos, todas as outras são inaceitáveis. Mas não sei por que razão ela me perguntou depois se entre nós, nas terras do Sol poente, se faziam sacrifícios humanos. Claro que não!, disse eu, chocado. Ela inclinou a cabeça e olhou-me, inquisidora. Não? Nem mesmo em casos extremos? Eu continuei a dizer que não, e ela concluiu, pensativa: Então é assim? Talvez tenham razão."
Christa Wolf, Medeia.Vozes, trad. João Barrrento, Lisboa: Cotovia, 1996, pp. 55-56.

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