"- Pois é, estou a desviar-me muito da minha história - começou ele. - Tenho pensado tanto, vejo agora as coisas de um ângulo tão diferente que sinto grande vontade de dizer tudo isto. Ora bem, começámos portanto a viver na cidade. A cidade é melhor para as pessoas infelizes. Na cidade, uma pessoa pode viver cem anos e não reparar que já morreu há muito e apodreceu. Não temos tempo de pensar em nós, estamos totalmente ocupados. Negócios, relações públicas, artes, saúde e educação das crianças, receber as visitas destes e daqueles, visitar outros, é preciso ver a actriz tal, ouvir o cantor ou a cantora tal. Na cidade pode aparecer a qualquer momento uma ou mesmo duas celebridades que é impensável perder. É preciso tratar da nossa saúde, ou da saúde deste ou daquele; ele são os preceptores, as preceptoras, os professores... e no entanto a vida é vazia, vazia. Por isso, na cidade, eu e ela sentíamos menos a dor da convivência."
Lev Tolstói, A Sonata de Kreutzer, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2010, p. 77.
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