Tuesday, July 31, 2012

PSICOLOGIA DO MEDO


"E veemos huus recearem os perigoos das pellejas, e sem receo sofrerem os do mar; e outros nom se atrever a pellejar nem hir sobre o mar, e muitos sem medo estarem em alguas grandes pestellencias. E assi teem alguus tam grande vergonha ou empacho de fazer alguas cousas, que ante se porriam a sofrer alguu grande perigo que as fazerem em lugar de praça, por receo de prasmo das gentes ou empacho que de si filham. E outros nom averiam alguu embargo de as fazer, e esto por desvairo que cada huu recebeo naturalmente de sua naçom."
Dom Duarte, Livro da Ensinança de bem Cavalgar Toda Sela, selec. F. Costa Marques, 2ª ed., Coimbra: Atlântida, 1973, p. 87.

Monday, July 30, 2012

VERÃO


"O meu coração mergulha até ao pescoço em luz
[amarelada de colheitas, como campo à espera
[da ceifa, sob céus de estival acalmia.
Em breve o canto das foices ecoa pelas planícies: o meu
[sangue, profundamente saciado de felicidade,
[põe-se à escuta pelo braseiro do meio-dia.
Celeiros da minha vida, há muito abandonados, todos
[os vossos portões, como comportas
[de represa, se abrirão agora,
E, como mar, a torrente dourada das espigas correrá
[pelo vosso leito fora."

Ernst Stadler, "Sommer", in Expressionismo Alemão - Antologia Poética, trad. João Barrento, Lisboa: Ática, p. 125.

Sunday, July 29, 2012

TÊMPERA


"Durante três anos o céu fez chover, a plenas mãos, lírios e rosas sobre aquela ditosa família. Ao fim deles, uma grande desgraça enlutou aquela felicidade. Fernão Silvestre, dirigindo em pessoa o apeiamento de uma das paredes do solar, que o fogo desaprumara, foi esmagado por uma pedra, que imprevistamente resvalou do alto do muro. O velho cavaleiro morreu como devia morrer um homem daquela têmpera, e morreu como desejava. Acabou dentro do solar dos seus antepassados."
Arnaldo Gama, O Sargento-Mor de Vilar, Lisboa: Empresa Lusitana Editora, s.d., p. 324 [ort. actual.]

Saturday, July 28, 2012

ENTORNAR



"incendiar, sim, é um processo
mais simples. Cubro a cabeça de cinza
(não de estrelas!), como se fora um aviso.
Eis-nos chegados ao fim
do mundo! É uma parede considerável, um monumento
ao saber mais antigo,

percorre-nos interiormente! E entretanto
entornamo-nos em todos os sentidos, e sei que no meio esqueço
o essencial, esse frasco de perfume
ao descer do dia? ou seria a noite? quando
as mãos ainda nos aproximavam,

o fogo era uma palavra entre todas a mais fácil,
e só, em nós, a luz vivia."

António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 362.

Friday, July 27, 2012

CERTEZA


" - Estava à tua espera - disse-lhe Encarnação. - Ajuda-me a vestir porque vou morrer hoje.
Aninha não achou nada que dizer porque a viu exactamente como quando era ainda uma criança e se ria das coisas que assustavam os outros. Pareceu-lhe que o vulto de Encarnação se recompunha, ao mesmo tempo que diminuía de tamanho e que os seus cabelos ganhavam cor, emoldurando um rosto frágil, infantil. Viu-a fugir no tempo, transformar-se em bebé e enfim desaparecer. Depois abriu os olhos e encarou a irmã que lhe sorria.
- É então isso a morte?  - perguntou.
- Não é bem isso - disse Encarnação. - Mas é igualmente muito consolador.
Procuraram no armário um vestido de baile que Encarnação fizera para estrear aos vinte anos mas que nunca tivera ocasião de usar. Era um vestido rosa muito claro, enfeitado nas mangas com miosótis de organza. Mas quando lhe tocaram desfez-se numa brisa que cheirava a bolor.
Encarnação ergueu os ombros, resignada. Apanhou o cabelo e vestiu uma bata de riscado cinzento. Depois deitou-se sobre a cama e suspirou.
- Antes que passe a chuva, eu já terei partido. Não chames a Luísa. Incomodar-me-ia muito ver chorar. Dá tempo a que eu me afaste.
Pegou na mão de Aninha, fez um jeito mimado.
- Para ser franca, achei que isto da vida não tem ponta por onde se lhe pegue - disse, piscando o olho. Descaiu a cabeça para o lado direito e começou a arrefecer."
Hélia Correia, O Número dos Vivos, 2ª ed., Lisboa: Relógio D'Água, 1997, pp. 74-75.

Thursday, July 26, 2012

APOTEOSE



"Alguma coisa de insatisfeito, de para sempre insatisfeito, quer traduzir-se em alta voz. Um desejo de amor está em mim que espontaneamente fala na linguagem do amor.
Sou Luz: ah, se fosse Noite! A minha solidão consiste, porém, justamente em estar circundado de luz.
Ah! Não ser eu sombra e treva! Como então sugaria nos seios da luz!
E bendizer-vos-ia a vós, a vós, pequenos astros rutilantes, vermes da luz celeste! - e ser-vos-ia grato da luz que me désseis..."

Friedrich Nietzsche, Ecce Homo, trad. José Marinho, 7ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2004, p. 110.

Wednesday, July 25, 2012

HOSPITALIDADE



"Todo el mundo debe recibir con caridad y respeto a los peregrinos, ricos o pobres, que vuelven o se dirigen al solar de Santiago, pues todo el que los reciba y hospede com esmero, tendrá como huésped, no sólo a Santiago, sino también al mismo Señor, según sus palabras en el evangelio: "El que a vosotros recibe, a Mí me recibe."
Guía del Peregrino Medieval ("Codex Calixtinus"), trad. Millán Bravo Lozano, Sahagún: Centro de Estudos Camino de Santiago, 1997, Cpt. XI, p. 87.

Tuesday, July 24, 2012

O SÓ



"Na longa alameda a luz aos pedaços cai
mole do alto dos postes. Ele olha.

Para que não doa, apenas olha.
E não dói."

Eucanaã Ferraz, Cinemateca, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 94.

Monday, July 23, 2012

FOLHAS SOLTAS



"Em que emprego o meu tempo? Vou e venho,
Sem dar conta de mim nem dos pastores,
Que deixam de cantar os seus amores,
Quando passo e lhes mostro a dor que tenho.

É de tristezas o torrão que amanho,
Amasso o negro pão com dissabores,
Em ribeiros de pranto pesco dores,
E guardo de saudades um rebanho.

Meu coração à doce paz resiste,
E, embora fiqueis crendo que motejo,
Alegre vivo por viver tão triste!

Amor se mostra nesta dor que abrigo:
Quero triste viver, pois vos não vejo,
Nem sequer muito ao longe vos lobrigo."

Eugénio de Castro, "Folhas Soltas", in Obras Poéticas de Eugénio de Castro, Tomo III, ed. Vera Vouga, Porto: Campo das Letras, 2007, p. 111.

Saturday, July 21, 2012

PARA A MEMÓRIA DE HELENA CIDADE MOURA


"Mas tudo são temerosas questões. Descendo delas, mais especialmente para este renascimento espiritual, este nevoeiro místico que em França e em Inglaterra está lentamente envolvendo a literatura e a arte, eu penso que ele será benéfico como todos os nevoeiros, repassado de fecundo orvalho e donde as flores emergem com mais viço, mais cor, mais graça e mais doçura de aroma. Nunca mais ninguém, é certo, tendo fixo sobre si o olho rutilante e irónico da ciência, ousará acreditar que, das feridas que o cilício abria sobre o corpo de S. Francisco de Assis, brotavam rosas de divina fragrância. Mas também, nunca mais ninguém, com medo da ciência e das repreensões da fisiologia, duvidará em ir respirar, pela imaginação, e se for possível colher, as rosas brotadas do sangue do santo incomparável.
E isto é para nós, fazedores de prosa ou de verso, um positivo lucro e um grande alívio."
Eça de Queirós, "Positivismo e Idealismo"(1893), in Notas Contemporâneas, ed. Helena Cidade Moura, Lisboa: Livros do Brasil, 2000, pp. 195-196.

Friday, July 20, 2012

PARA A MEMÓRIA DE JOSÉ HERMANO SARAIVA


"Não passes, caminhante! Quem me chama?
Ua memória nova e nunca ouvida
dum, que trocou finita e humana vida,
por divina, infinita e clara fama.

Quem é que tão gentil louvor derrama?
Quem derramar seu sangue não duvida
por seguir a bandeira esclarecida
de um capitão de Cristo, que mais ama.

Ditoso fim, ditoso sacrifício,
que a Deus se fez e ao mundo juntamente;
apregoando direi tão alta sorte.

Mais poderás contar a toda a gente:
que sempre deu sua vida claro indício
de vir a merecer tão santa morte."

Luís de Camões, Lírica Completa, vol. II, ed. Maria de Lourdes Saraiva, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 1994, p. 256.

Thursday, July 19, 2012

MEDITAÇÃO


"porque não é nunca sozinho que se parte para criar seja o que for, disse Horácio, é sempre com os outros, e é de qualquer modo uma forma de amor entregar-se, jogar-se inteiro em qualquer coisa, correndo o risco de no fim encontrar inquietação e não resposta,"
Teolinda Gersão, Paisagem com mulher e mar ao fundo, 4ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1996, p. 102.

Wednesday, July 18, 2012

DENOMINAÇÃO E AÇÃO


"Quando o homem quis denominar os objectos, as coisas, tratou de lhes aplicar vocábulos que para elas não tinham sido feitas. As forças da natureza tiveram palavras para as designar que eram essencialmente ligadas a acções humanas, devido às analogias que entre as duas se estabeleceram.
Fácil é de prever o que resultou dessa aproximação: a linguagem aplicada a motivos humanos amplia-se ao fenomenalismo da natureza, transfigurando-o, antropomorfizando-o e deformando-o. E como um mesmo objecto podia revestir uma grande quantidade de aspectos, sucedeu que a cada um destes aspectos foi aplicada uma denominação correspondente, dizendo Max Müller, como exemplo, que os Vedas, para dizer céu há mais de vinte palavras."
Aarão de Lacerda, O Fenómeno Religioso e a Simbólica, Lisboa: Guimarães Editores, 1998, p. 26.

Tuesday, July 17, 2012

SERVIÇO ÚTIL



"para que servem as casas quando todos partiram - deixar o corpo atrás de si como uma casa vazia e ir embora, apenas isso, uma viagem rápida, fácil, correr as cortinas, apagar as luzes, fechar a porta atrás de si, nem sequer tão longo como o tempo de pensá-lo, nada tenho a explicar, quero apenas ir-me embora, as casas têm risos, chaminés, chapéus altos de feltro e luvas verdes, vestidos com fitilhos saindo das arcas da memória, trazem berços nos braços e correm ao nosso encontro como animais vivos, são quentes, loucas, imprevisíveis, fúteis, com os seus cortinados de folhos, as suas camilhas longas, os seus vidros brilhantes e os seus metais polidos, as suas botas cor de tijolo e os seus telhados inclinados, por onde escorre o tempo, mas às vezes morrem e é preciso cobri-las de terra para não suportar o horror de vê-las decompor-se, é preciso atirar depressa com pazadas de terra e deixá-las então invisivelmente decompor-se, até deixarem de existir e serem levadas pelo vento."
Teolinda Gersão, Paisagem com mulher e mar ao fundo, 4ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1996, p. 41.

Monday, July 16, 2012

RUDEZA


"O Porto é rude como a rocha onde tem alicerce.  Não se esqueça que o Porto é a estação terminal do Douro, a região mais violenta de Portugal. Violenta porque carrega a miséria com o desprezo. Lá, a pobreza vexa mais a alma do que fere o corpo. O homem e a mulher do Douro têm uma qualidade, que é não serem caninos, não se inclinarem às côdeas que vêem o patrão comer. Nos seus olhos e na sua carne, há a imunização à carreira do que sobe na vida e é promovido. Ainda há pouco tempo, o homem do Douro nascia na vinha e morria no saibramento.
No Porto, grande parte da sua gente, se não fosse o sangue inglês que lhe dá um perfil marítimo, era feia como trovões. O mesmo acontece no Douro. Miguel Torga localizou na estação de caminho de ferro da Régua a pátria resumida da fealdade. Pois será. A beleza é uma questão de densidade atmosférica e de equilíbrio entre a razão e o gesto. A máscara corresponde ao rito. Pois será."
Agustina Bessa-Luís, As Pessoas Felizes, 2ª edição, Lisboa: Guimarães Editores, 2006, pp. 178-179.

Sunday, July 15, 2012

ANIVERSÁRIO (RAIZ RESPLANDESCENTE)


"Na convergência que aspira o mundo e o instante
o fundo olha-me, e a elipse vê-me,
a totalidade é ninguém.
Onde era a separação sem nome um leque abriu-se
iluminando os campos devastados.
O rosto primeiro ascende do seu poço interior
e brilha transparente como uma lua branca.
No seio de uma fidelidade que ignoro
oiço galrear os gnomos do vazio.
Retirado dentro de um aroma errante, imóvel,
recebo a luz
de uma raiz resplandescente."
António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 17.

Saturday, July 14, 2012

NÃO ERA UMA PORTA DE PALAVRAS




"Abri a pequena porta de uma varanda
e vi a luz selvagem
que iluminava o mundo sem palavras
antes do palato, antes da boca.
Eu não queria ser mais do que o murmúrio do sol
e o sorriso da água.
Estava dentro de uma nuvem. Era uma água rápida
em forma de mulher. Uma vespa de argila
pousara sobre uma camisa branca.
Entrevia entre as árvores o celeiro azul do mar.
A porta que se abria não era uma porta de palavras
mas as palavras eram agora o ouvido do silêncio."

António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 8.

Friday, July 13, 2012

O ESPÍRITO MALICIOSO


" - Porque me caso eu com este rapaz? - perguntou, quando Maria Rosa, na manhã do casamento, se sentou na beira da cama, toda comovida e despenteada. Nel pôs-se a enrolar os cabelos nos dedos quando pensou que a prima ia pronunciar alguma coisa ritual e virtuosa. Mas não. Às vezes, dos abismos do senso prático Maria Rosa trazia visões grotescas e demasiado humanas.
- Casas-te porque é a única maneira de não andarem atrás de ti a fazerem-te perguntas obscenas. É chato. Querem saber que espécie de mulher tu és, se não tens cio, se és pela emancipação sexual, se tens a vagina estreita, se és lésbica, se tens o complexo de Édipo. - Acrescentou rapidamente: - Isto são palavras tuas, não acrescento nada, mas tens razão. É chato.
Nel riu-se, concordou que eram palavras suas. Mas atenuava agora o tom dessas palavras, pois o coração estava apaziguado e até um pouco desinteressado da felicidade obtida.
- Julieta sabia porque se casava com Romeu.
- Aos doze anos sabe-se tudo. Eu fazia as contas de cabeça mais complicadas e o resultado saía sempre certo. Quando aplicava os teoremas, era sabido que errava.
- Então és má. O espírito malicioso nunca se conforma à matemática."
Agustina Bessa-Luís, As Pessoas Felizes, 2ª edição, Lisboa: Guimarães Editores, 2006, p. 81.

Thursday, July 12, 2012

O MUNDO OLHA (MADRID)


"Quando não estás a olhar é o mundo
que te olha. Nunca saberás o que vê.
Obscuramente imaginas que testemunhará
por ti, mas ignoras de todo - e que importa? -
onde, a que propósito e perante quem."

Manuel Gusmão, A Terceira Mão, Lisboa: Caminho, 2008, p. 32.

Wednesday, July 11, 2012

ARIDEZ / AÉREO



"porque Deus com sua bondade permite, ouviu, permite e aconselha que as pessoas sejam covardes e se protejam, seus filhos predilectos são os que ousam mas Ele é severo com quem ousa, e é benevolente com quem não tem coragem de olhar de frente e Ele abençoa os que abjectamente tomam cuidado de não ir longe demais no arrebatamento e na procura da alegria, desiludido Ele abençoa os que não têm coragem. Ele sabe que há pessoas que não podem viver com a felicidade que há dentro delas, e então Ele lhes dá uma superfície de que viver, e lhes dá uma tristeza, Ele sabe que tem pessoas que precisam fingir, porque a beleza é árida, por que é tão árida a beleza?"
Clarice Lispector, A Maçã no Escuro, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, pp. 279-280.

Tuesday, July 10, 2012

PELO CAMINHO OBSCURO DA PERFEIÇÃO




"O absurdo envolveu o homem, lógico, magnificente, horrível, perfeito - o escuro o envolveu. No entanto, por pouco que entendesse, ele pareceu sentir a perfeição que houvera no seu caminho obscuro até chegar ao bosque: havia nos seus passos uma perfeição impessoal, e era como se o tempo de uma vida tivesse sido o tempo rigorosamente calculado para a maturação de um fruto, nem um minuto mais, nem um minuto menos - se o fruto amadurecesse! Porque o medo pareceu-lhe estabelecer uma harmonia, a harmonia terrificante - digo-te, Deus, eu te compreendo! - e ele de novo acabara de cair na armadilha da harmonia como se às cegas e por caminhos tortos tivesse executado em pura obediência um círculo fatal perfeito - até encontrar-se de novo, como agora se encontrava, no mesmo ponto de partida que era o próprio ponto final. E se esse caminho apenas circular acabara de tornar inúteis todos os passos que ele dera, no fundo mesmo de seu medo o homem de repente pareceu concordar com esse caminho, com dor e com medo pareceu admitir que a sua natureza desconhecida fosse mais poderosa que sua liberdade. Pois de que me valeu a liberdade, gritou-se ele. Nada fizera dela..."
Clarice Lispector, A Maçã no Escuro, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 229.

Monday, July 9, 2012

ZIEL / ALMA



"Eu queria antes uma alma de qualidade
que eu não conhecesse; não esta coisa permutável
feita de pessoas que só olhei,
e que apenas funciona quando nela ponho os olhos.

Essa minha alma seria invisível à antiga
e estaria dentro de mim. Tudo quanto eu calasse
ou gritasse, conteria dela infinitos ecos.
Nunca me viria a ideia de ansiar por ela

Uma alma assim, que conservasse o valor no mercado."

Rob Schouten, "Ziel", in Uma Migalha na Saia do Universo - antologia da Poesia Neerlandesa do Século XX, selecç. Gerrit Komrij, trad. Fernando Venâncio, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 135.

Sunday, July 8, 2012

SANTIDADE - LOBO/LOBA



"SÃO MAIDOC DE FERUS RESTITUI A VIDA A SEIS CARNEIROS COMIDOS POR LOBOS (A.D. 632)

Numa ocasião, São Maidoc deu seis formosos carneiros a seis lobos famintos, e depois tornou à vida, gordos e sãos como antes, os seis carneiros. - Baring. - Gould. - Vidas dos Santos. Jan. 31."

Eça de Queirós, Dicionário de Milagres, Lisboa: Livraria Ler Editora, 1979, p. 61.

Saturday, July 7, 2012

SÓ MENDIGO E SÓ HOMEM


"Divinizou Antinoo.
E assim, ajudado pela súplica alheia,
pôde retê-lo na lembrança,
manteve sua dor.
Por fim, só mendigo e só homem.

Sê mais pagão, e observa que a vida
tem um destino certo: somente esquecimento,
e se obra piedosa: substituição.
É o azar a origem do amor,
e o caminho azarento, e um golpe de azar
cedo o acaba. Se tão rude
é a vida, tão indelicado o sentimento,
a pena tão injusta,
e, com os séculos, não houve nisso emenda,
não faças como aquele,
não pretendas fazer digna a vida:
tão torpe tirania
merece apenas a tua indiferença natural."

Francisco Brines, Ensaio de Uma Despedida - Antologia, trad. José Bento, Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, pp. 99, 101.

Friday, July 6, 2012

MAGIA


"- Eu acho que nós, bois, - Dançador diz, com baba - assim como os cachorros, as pedras, as árvores, somos pessoas soltas, com beiradas, começo e fim. O homem, não: o homem pode se juntar com as coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de forma e de jeito... o homem tem partes mágicas... são as mãos... Eu sei..."
João Guimarães Rosa, "Conversa de Bois" in Sagarana, 28ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 320.

Thursday, July 5, 2012

A RIQUEZA DE TER JUÍZO


"Esta riqueza de ter juízo,
se chegou tarde, sempre chegou!
As minhas mágoas estão cansadas;
parem a vida, que eu já lá vou!

Ia chegando junto do cais,
quando a sereia deu três apitos.
E o barco foi-se, talvez com medo
da minha mala dos infinitos...

Atiro os olhos às ondas verdes,
e desço à praia com sol vermelho.
E, da viagem que me acenava,
só trago a concha dum búzio velho."

António de Sousa, "Jangada" in Natália Correia (org.), A Ilha de Sam Nunca, Angra do Heroísmo: Antília, 1982, p. 88.

Wednesday, July 4, 2012

ATRASAR A VIAGEM


"Não deixes para amanhã o teu fragmento. A vida é triste e só agora.
Por que transportas tanta bagagem se não sabes nada da tua morada?
O teu caminho é agora, não te espera e de nada te vale cantar muito -
só atrasas a viagem. Talvez pretendas dar um sentido ao mundo.
Ou adornar o teu luto. Que forma tão estranha de vida."


Casimiro de Brito, Fragmentos de Babel seguido de Arte Poética, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 79.

Tuesday, July 3, 2012

OÁSIS



"À tua volta não vês nada a não ser as raízes das árvores, os alicerces das casas. Continuas a caminhar e o que encontras é sempre o mesmo. Será o momento de acreditares que também existes do outro lado?"
Fernando Guimarães, "A Analogia das Folhas", in Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 352.

Sunday, July 1, 2012

SINAIS DOS TEMPOS


"Que é triste o rostro da mortal pobreza
que entre ximidos e dolores nace,
i hastra a hermosura ven cando riqueza
co seu mirar risoño nos comprace;
presta o diñeiro encanto e gentilesa,
i un Dios o mesmo demo se tornase
si tomando figura de banqueiro
remexese diñeiro e máis diñeiro."
Rosalía de Castro, Cantares Gallegos, ed. Mauro Armiño, 5ª ed., Madrid: Espasa Calpe, 2009, p. 265.