Wednesday, August 16, 2017

ARTEMISA


"Um enterro monumental. Mausoléu, comparativamente, e guardadas as distâncias que separam Fermedo da Grécia antiga, não foi mais honrado na morte por Artemisa, a legendária viúva lacrimosa. Missas gerais, dois dias áfios, desde o alvorecer da manhã até ao meio-dia. Ofício de cinquenta padres - a máxima gritaria que pode fazer-se com a língua latina degenerada. Armadores do Porto, a igreja toda de crepe, e catafalco, galões de prata franjada, tocheiras de casquinha fornecidas pelas igrejas do concelho. Todas as confrarias de que o defunto era irmão, com bandeira alçada, nos pulsos cabeludos de homens valentes em mangas de camisa por baixo das opas pegajosas de surro. Bastantemente bêbados alguns. A banda musical de Arouca gemia marchas fúnebres, a «Sombra de Nino», da Semíramis - música de Rossini em Arouca!  -, faziam os funerais de Roberto e da arte assassinada. Os sinos a dobrarem até à meia-noite, e a recomeçarem no dia seguinte ao amanhecer. Um terror da natureza animal! Os cães, numa aflição lamentosa, uivavam com os focinhos altos e os olhos fechados; as rãs deixavam de coaxar alegremente e mergulhavam espavoridas as cabeças nos limos dos seus pântanos; revoadas de pardais esfuziavam, estridentes das sebes enfolhadas, gotejantes de orvalho; e os gaios, esvoaçando-se escorraçados, gralheavam nos pinheirais."

Camilo Castelo Branco, Vulcões de Lama, Lisboa: Círculo de Leitores, 1983, p. 81. 

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