"- Gwynplane, eu sou o trono, tu és o estrado. Ponham-nos ao mesmo plano, Sinto-me feliz, eis-me decaída! Quisera que todo o mundo pudesse saber a que ponto chega a minha abjeção; mais ainda se prostraria: quanto mais se aborrece, mais se corteja. Hostil, mas réptil. Dragão, mas verme. Sou tão depravada como os deuses. Nem sempre me podem despir da gravidade de ser bastarda de um rei. Procedo como rainha. Quem era Rodope? Uma rainha que amou Phteh, o homem com cabeça de crocodilo, e que construiu em honra dele a terceira pirâmide. Pentesileia amou o centauro, a que se chama Sagitário, e que é uma constelação. E que dizes tu de Ana de Áustria? Mazarin era feíssimo. Tu não és feio; és disforme. O feio é pequeno, o disforme é grande. O feio é a careta do diabo por detrás do belo. O disforme é o inverso do sublime; é o lado oposto. O Olimpo tem duas vertentes; uma, do lado da luz, dá Apolo. A outra, do lado da noite, dá Polifemo. Tu és Titã. Serias Bahemot na floresta, Leviatã no oceano, e Tifão na sentina. És supremo. A tua disformidade participa do raio. O teu rosto foi transformado por um trovão. O que tu tens na face é a impressão colérica do grande punho de chamas. Amassou-te e passou. A vasta cólera obscura, num acesso de raiva, prendendo-te a alma com visco sob esse rosto sobrehumano. O inferno é um fornilho penal, em que se esbraseia o ferro que se denomina a Fatalidade; foi com este ferro que te marcaram. Amar-te, é compreender o grandioso."
Victor Hugo, O Homem Que Ri, vol. II, s. trad., Lisboa: Guimarães Editores, 1915, p. 99.
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