Tuesday, July 31, 2018

AERONAUTA


"Agora podeis tratar-me 
como quiserdes: 
não sou feliz nem sou triste, 
humilde nem orgulhoso
- não sou terrestre. 

Agora sei que este corpo, 
insuficiente, em que assiste 
remota fala, 
mui docemente se perde
nos ares, como o segredo
que a vida exala. 

E seu destino é ir mais longe, 
tão longe, enfim, como a exacta
alma, por onde
se pode ser livre e isento, 
sem actos além do sonho, 
dono de nada, 

mas sem desejo e sem medo, 
e entre os acontecimentos
tão sossegado!
Agora podeis mirar-me
enquanto eu próprio me aguardo,
pois volto e chego, 

por muito que surpreendido
com os seus encontros na terra
seja o Aeronauta."


Cecília Meireles, Antologia Poética, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 153. 

Monday, July 30, 2018

A BUSCA


"Não podendo encontrar, porém, o que procurava, porque daqui a esses países só se vai por água, voltei para trás e cheguei aos lugares santos, onde no verão o pão fresco vale quatro dinheiros e o pão quente se vende de graça. E ali encontrei o venerando padre messer... Não me censureis! Encontrei o digníssimo patriarca de Jerusalém, o qual por veneração pelo hábito do Senhor Santo António que eu sempre vesti, quis que visse todas as santas relíquias que tinha conseguido; eram tão numerosas, que, se quisesse contá-las todas só daqui a dois anos poderia acabar. 
Mas para não vos deixar desconsolados, sempre vos falarei de algumas. Mostrou-me primeiramente o dedo do Espírito Santo, tão inteiro e tão são como nunca esteve; o focinho do serafim que apareceu a S. Francisco; uma das unhas dos querubins; uma das costelas do Verbum Caro, põe-te à janela; vestidos da santa fé católica; alguns raios da estrela que apareceu aos três Magos no Oriente; um frasco cheio do suor de S. Miguel quando combateu contra o diabo; o queixo da morte de S. Lázar, e outras coisas ainda.
E como lhe fiz presente dalgumas relíquias que tinha em duplicado, e que ele inutilmente procurara, deu-me em recompensa um pedaço da santa cruz, uma pequena garrafa cheia de som dos sinos do magnífico templo de Salomão e a pena do anjo Gabriel de que já vos falei. Deu-me também um dos sapatos de São Gerardo de Villa Magna, do qual fiz presente pouco depois a Gerardo de Bonsi, estabelecido em Florença, que tem muita veneração por esta santa relíquia; enfim deu-me alguns carvões sobre os quais foi grelhado o bem-aventurado S. Lourenço."

Giovanni Boccaccio, Decameron, vol. III, trad. livre de Joaquim de Macedo, Porto: Edições Sousa & Almeida, 1969, pp. 56-57. 

Sunday, July 29, 2018

TROPO



"Tenho aproveitado estas semanas para «transmutar valores». Compreende este tropo? O alquimista é, na realidade, o homem de maior mérito. Quero dizer, o que faz do ínfimo, do desprezível, qualquer coisa de muito valioso - ouro até! - esse, é o único homem que enriquece; os outros não fazem mais que mudar. O meu trabalho atual é muito curioso. Perguntei a mim próprio: O que é que, até hoje, tem sido mais odiado, temido e desprezado pela Humanidade?"


Friedrich Nietzsche, Despojos de uma Tragédia, trad. Ferreira da Costa, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 280. 

Saturday, July 28, 2018

INSTINTO



"É certo que a consideração pelos animais é qualidade que adorna o homem nobre; mas a Deusa Natureza, imoral e cruel, com grande instinto, conduz os povos da nossa zona ao horrível carnivorismo, enquanto que, nos países cálidos, onde os macacos vivem de vegetais, podem também os homens satisfazer-se com estes, seguindo o mesmo imperioso instinto."


Friedrich Nietzsche, Despojos de uma Tragédia, trad. Ferreira da Costa, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 74. 

Friday, July 27, 2018

FAINA


"Não podes fotografar-me vestida, como as outras pessoas? Não, porque qualquer fotógrafo de domingo sabe fotografar uma pessoa vestida. Além disso, tenho dois benefícios, em primeiro lugar, quando tiro os retratos, e depois quando os observo e os aprecio criticamente de acordo com os meus parâmetros. Entre um momento e o outro ainda há a revelação e a ampliação. E isso também é divertido. Na arte é sempre preciso lutar para obter um resultado. O facto de tu venceres a tua relutância também faz parte do todo, Gretl. O talento de um artista vê-se, entre outras coisas, nos seus olhos, onde ele arde, lá no fundo."

Elfriede Jelinek, Os Excluídos, 2.ª ed.,  trad. Fernanda Mota Alves, Alfragide: Asa Editores, 2008, p. 12. 

Thursday, July 26, 2018

PROGRESSO


"Embora aparentemente inerente à natureza humana, em especial desde a aurora da autoconsciência do indivíduo, a ideia de progresso é de facto um conceito recente. Para os gregos e latinos, a questão simplesmente não se punha. No futuro, eles viam sinais de uma mudança que devia ser evitada, e voltavam-se para o passado, para uma era de ouro mística da qual o homem caíra. Platão encarava o futuro como um período de declínio, segundo uma teoria amplamente compartilhada da degeneração da política, resultado de um conservadorismo que sonha com o retorno à simplicidade da existência natural. Outros, como Aristóteles, teorizaram uma doutrina de ciclos históricos repetidos infinitamente. Horácio escreveu: «Damnosa quid non imminuit dies?» («O que o tempo funesto não destrói?»), na crença de que o tempo é o inimigo do homem, que só pode esperar o pior do futuro."

Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni, Estado de Crise, trad. Renato Aguiar, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 151. 

Wednesday, July 25, 2018

FUTURO


"Sendo a imaginação humana o que é, a situação não nos vai impedir de pintar imagens do que há no futuro à espera dos viajantes. Mas, enquanto as situarmos no futuro, não há nenhuma maneira de provar que irão parecer-se com o que pintámos. Quando chegar o momento de provar ou refutar a exatidão das nossas telas, o futuro já se terá tornado passado. É por isso que a história é um cemitério de esperanças não realizadas e de expectativas frustradas, enquanto os planos do paraíso com lamentável frequência se convertem em guias para o inferno."

Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni, Estado de Crise, trad. Renato Aguiar, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, pp. 98-99. 

Tuesday, July 24, 2018

MUDANÇA


"Foi uma dessas horas singulares. Horas que são como o coração de uma ilha cingida por densas florescências: para além destas muralhas primaveris, as ondas respiram quase imperceptivelmente, e não se avista um único barco que venha do passado distante, nem um só que queira continuar para o futuro."

Lou Andréas-Salomé e Rainer Maria Rilke, Correspondência Amorosa, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 88. 

Monday, July 23, 2018

LIMITAR / ILIMITAR



"Rilke sentia que esse Deus estava morto, que se tinha tornado um símbolo vazio de sentido nos ritos ocidentais do Domingo de Páscoa. Para o monge russo a quem ele atribui aquelas orações, há qualquer coisa de ímpio na maneira como O representam os artistas ocidentais. Os seus esforços para limitarem o ilimitado, para o aprisionarem no tempo e no espaço, são profundamente contrários à conceção russa de um Deus que se vai ampliando. É deste Deus que cresce, deste Deus desconhecido do futuro, que Rilke anuncia a vinda, com uma torrente de palavras tão poderosas como paradoxais. Este Deus é nosso vizinho, não está separado de nós senão por uma débil parede que a todo o momento se pode desmoronar. Esse Deus é um pequeno pássaro tombado do ninho, um camponês barbudo, a grande aurora avermelhada sobre as planícies da eternidade, sobre a floresta das contradições."

H. F. Peters, "Prefácio", in Lou Andréas-Salomé e Rainer Maria Rilke, Correspondência Amorosa, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, pp. 42-43. 

Sunday, July 22, 2018

IGNORÂNCIA



"A tua ignorância, se não és ignorante, 
vem do muito imaginares. Ou de te a arte
sair de esforço nulo quando sabes
libertar o inconsciente. Exibes
sempre a ocultação do meio, 
de instrumentais processos, 
fascinações, delírios, imagens, 
e ritmo só, a preencher o mundo. 
A tua ignorância, se não és ignorante, 
ou se te não exibe o secular fantasma
da ignorância douta, vem daí, 
da onde repousas a alma
e te restituis à vida
numa ilusão terrível de verdade pura. 
E entretanto, como o tempo passa. 

A nua ignorância."


Luís Adriano Carlos, Livro de Receitas, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 53. 

Saturday, July 21, 2018

ESTADO


"Como se pode ver, «crise», no seu sentido próprio, expressa algo positivo, criativo e otimista, pois envolve mudança e pode ser um renascimento após uma ruptura. Indica separação, com certeza, mas também escolha, decisões e, por conseguinte, a oportunidade de expressar uma opinião. Num contexto mais amplo, a noção adquire o sentido de maturação de uma nova experiência, a qual leva a um ponto de não retorno (tanto no âmbito pessoal quanto no histórico-social). Em resumo, a crise é o fator que predispõe à mudança, que prepara para futuros ajustes sobre novas bases, o que não é nada deprimente, como nos mostra o atual impasse económico."

Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni, Estado de Crise, trad. Renato Aguiar, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 13. 

Friday, July 20, 2018

BEBER


"Um incidente que tipifica a conduta deste clã é protagonizado por um Cláudio que conduzia uma frota romana para uma batalha. As galinhas sagradas não concederam o presságio favorável esperado, recusando-se a comer o milho que tinha sido disposto no chão para elas. Perante isto, Cláudio ordenou que fossem atiradas ao mar, dizendo: «Já que não comem, ao menos que bebam.»"

Anthony Everitt, Cícero - uma vida, trad. Maria José Figueiredo, Lisboa: Quetzal, 2004, p. 145. 

Thursday, July 19, 2018

SONHADORA


"Capaz de pensar sem palavra nenhuma, só o mais obscuro dos fanáticos ou um simples animal, o mais abstrato dos videntes ou uma mónada sonhadora! Na alma humana, tal como se verifica mesmo nos sonhos e na loucura, essa situação não é possível."
Johann Gottfried Herder, Ensaio sobre a Origem da Linguagem, trad. José M. Justo, Lisboa: Antígona, 1987, p. 124. 

Wednesday, July 18, 2018

CHAVE


"(...) o legado cristão é demasiado precioso e, atualmente, mais pertinente do que alguma vez foi. Nas suas Notas para Uma Definição de Cultura, T. S. Eliot comentava o existirem momentos em que a única escolha era entre a heresia e a descrença, já que o único modo de se manter uma religião viva era pela cisão sectária do seu corpus principal. É isso que tem de acontecer atualmente."

Slavoj Zizek, Problemas no Paraíso, trad. C. Santos, Lisboa: Bertrand Editora, 2015, p. 109. 

Tuesday, July 17, 2018

VAGUEIA


"Perto dos muros vagueia a sombra: poderia o muro ter noção de si, ausente a forma alternante, caprichosa, constante? E talvez nada exista para além da solidão habitada de luz e crepúsculos vários"

Filomena Cabral, Elegia para um Corpo Adormecido, Porto: Afrontamento, 1987, p. 45. 

Monday, July 16, 2018

FORJADO


"Os deuses entenderam atribuir aos homens a dor como alimento indispensável, mesmo que pelo seu contrário. O prazer transborda, afoga e desaparece, absorvido pela presença insubstituível do corpo, pele, ou na ausência cantada, vibrátil, forjada em presságios: assim o regresso fatigado, ou insofismável refúgio."

Filomena Cabral, Elegia para um Corpo Adormecido, Porto: Afrontamento, 1987, p. 39. 

Sunday, July 15, 2018

ANIVERSÁRIO



"Como nos degraus a sombra nos olhos de Ezequias
- Nunca curado da distância
Nunca curado da subida - 
Foste a sombra
À sombra
Minguando"

Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 296. 

Saturday, July 14, 2018

ACREDITAR


"Acredita na ausência, ela me alimenta de ti. Um dia deter-te-ás em ti próprio e não voltarás a cabeça. 
Revisitam-se sensações e tudo se perde por entre os dedos: fluidez extravazada, acredita. Não temas nada."

Filomena Cabral, Elegia para um Corpo Adormecido, Porto: Afrontamento, 1987, p. 51. 

Friday, July 13, 2018

DIURNO (para a Divina Laura Soveral)


"Também a fêmea que vê é votada ao intransponível. As tarefas são a sua demora necessária, qual a viagem sem rumo, máscula. Há um tecido real no mínimo e no máximo das cabeças volantes ou que pendem desleixadas sobre o bordado inaceite, diurno."

Maria Velho da Costa, Da rosa fixa, 2ª ed., Lisboa: Quetzal, 1999, p. 209. 

Tuesday, July 10, 2018

SONS


"O barulho era tão grande, garante Marco, que qualquer pessoa que não estivesse habituada «ficava completamente aterrorizada, tão horrível é de ouvir». Dando largas ao seu gosto pela fantasia, acrescenta ainda que um viajante desprevenido podia mesmo «perder os sentidos e morrer» com o barulho. E recomenda uma precaução igualmente invulgar contra esta eventualidade: o recém-chegado devia tapar os ouvidos com algodão e enfaixar a cabeça, o rosto e mesmo as roupas até se habituar ao som das canas a explodir."

Laurence Bergreen, Marco Polo - de Veneza a Xanadu, trad. Ana Glória Lucas, Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2008, p. 164. 

Monday, July 9, 2018

RUMOR


"O curso usual dos nossos pensamentos é tão rápido, as ondas das nossas impressões enrolam-se tão obscuramente umas nas outras, há na nossa alma tanta coisa ao mesmo tempo, que, no que toca à maior parte das ideias, tudo se passa como se estivéssemos prontos a adormecer junto a uma nascente: ouvimos ainda o rumor de cada jorro de água mas já em meio duma grande obscuridade e, por fim, o sono rouba-nos a possibilidade de notar seja o que for."

Johann Gottfried Herder, Ensaio sobre a Origem da Linguagem, trad. José M. Justo, Lisboa: Antígona, 1987, p. 84. 

Sunday, July 8, 2018

CAÇADA INFERNAL



"Mergulhou nos seus pensamentos e, maquinalmente, pôs-se a caminhar entre os pinhais. Havia já andado cerca de meia milha e não pensara sequer em comer nem em descansar, embora já fossem perto das cinco da tarde. De repente, pareceu-lhe ouvir um gemido, seguido de gritos lancinantes soltados por garganta de mulher. Deu-se então conta do local onde se encontrava. Além disso, viu correr na sua direção, por entre moitas de arbustos espinhosos uma bela jovem, completamente nua e desgrenhada, arranhada pelas silvas e tojos, que chorava e gritava «Piedade, Piedade!»"

Giovanni Boccaccio, Decameron, vol. II, trad. livre de Joaquim de Macedo, Porto: Edições Sousa & Almeida, 1964, pp. 285-286. 

Saturday, July 7, 2018

LAÇO


"Vamos supor, então, que este ser fraco e sensível está sem companhia; por mais que pareça só, isolado, exposto a todas as tempestades ameaçadoras do universo, não está desacompanhado porque está em união com a natureza inteira."

Johann Gottfried Herder, Ensaio sobre a Origem da Linguagem, trad. José M. Justo, Lisboa: Antígona, 1987, p. 26.

Friday, July 6, 2018

TENGGERRISMO


"Gengis impôes o tenggerrismo - a adoração do céu - como religião oficial do Império Mongol e nomeou-se a si próprio como seu representante máximo. Para os Mongóis, o céu tinha precedência sobre todas as coisas. Era maior do que as montanhas, maior do que os rios, maior até do que a própria Estepe. Era vida, era espírito  era a fonte do poder universal."

Laurence Bergreen, Marco Polo - de Veneza a Xanadu, trad. Ana Glória Lucas, Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2008, p. 94. 

Wednesday, July 4, 2018

COMPORTAMENTO EM BUSCA DA REFEIÇÃO FUNERÁRIA



"As cabeças, o ar abolido, a apatia
Que se levanta. 
Nada nos defende do
Tremor lacrimoso (chamemos-lhe assim). 
Com agressividade
Asfixiamos
Na absorção da luz.

Medo cada vez menor, 
Falecemos (concluiu eufémico)."


José Emílio-Nelson, A Alegria do Mal - Obra Poética I, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 157. 

Tuesday, July 3, 2018

MANIA



"Uma mania, a de andar de olhos no chão, 
Deu esta noite resultado. 
Entre baldes de lixo, pequeno como um rato, a minha filha
encontrou o que diz ser
uma gatinha. 
Velho de alguns anos, o nosso gato,
que eu penso que ela julga solitário, recebeu-a mal. 
(Disse a toda a família que o castramos
e que somos agora a sua fêmea.)"


José Emílio-Nelson, A Alegria do Mal - Obra Poética I, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, pp. 212-213. 

Monday, July 2, 2018

O FANTASISTA


"O fantasista renega portanto não apenas o carácter humano - ele renega todo o carácter, existindo inteiramente sem lei, nada sendo portanto e para nada servindo. Mas precisamente pelo facto de a fantasia desmedida não ser um excesso de natureza mas de liberdade, brotando portanto de uma disposição em si digna de respeito e passível de ser infinitamente aperfeiçoada, logo ela também conduz a uma infinita queda numa profundeza sem limites e só pode terminar numa completa destruição."


Friedrich Schiller, Sobre Poesia Ingénua e Sentimental, trad. Teresa Rodrigues Cadete, Lisboa: IN-CM, 2003, pp. 125-126. 

Sunday, July 1, 2018

CONFLITO


"Que é isso que cresce e tanto se mexe e que eu não tenho?
- O que estás a ver, minha filha, é o diabo de que te falei. Vê como ele me atormenta, repara como se agita. Já quase não posso aguentar o mal que me faz.
- Dou graças ao Céu, respondeu ela, por não ter um diabo assim, já que tanto vos atormenta.
- Mas, em compensação, tens outra coisa que eu não tenho.
- Que é?
- Tens o inferno! E penso que foi Deus quem aqui te enviou expressamente para a salvação da minha alma. Porque, se permitires que eu meta no teu inferno o diabo que te atormenta, aliviar-me-ás e farás a mais meritória possível de todas as obras para alcançares o reino dos céus."

Giovanni Boccaccio, Decameron, vol. II, trad. livre de Joaquim de Macedo, Porto: Edições Sousa &Almeida, 1964, p. 67.