"Cite-se uma das famosas afirmações do Tractatus, em que se declara que o livro inteiro deve ser visto como uma escada, que serve para subir para um lugar, alcançado o qual se deita fora a escada. O horror pelas mediações - que conhece o seu limiar supremo na linguagem humana, a mediação convertida em sistema por excelência, e que suscita a Wittgenstein uma desconfiança desmedida, fazendo-o invariavelmente preferir não dizer a dizer - acha aqui uma das suas concretizações mais relevantes. Posteriormente, mesmo se, em larga medida, Wittgenstein vai continuar a preferir a imediatez às mediações, é igualmente inegável que irá transformar, para sempre, a relação entre a escada e o lugar aonde ela nos faz subir: se a natureza do lugar para onde se vai, uma vez alcançado, obriga a deixar a escada, então esse não é o lugar que lhe convém. Wittgenstein acaba de descobrir a beleza das mediações, da caixa de ferramentas: a escada é um instrumento e o lugar a que ela conduz não pode deixar de ser marcado por ela: a escada, mesmo que deite fora, está de algum modo guardada no lugar, é absorvida por ele. O lugar que Wittgenstein procura não é só um lugar para onde se sobre, é também um lugar de onde se pode sempre descer."
Maria Filomena Molder, Rebuçados Venezianos, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 93.
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