Thursday, September 1, 2016

POÇA



"Quando por algum motivo
a roda de água se rompe, 
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;

outra máquina de dentro, 
imediata, a reveza, 
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa. 

Então se sente que o som
da máquina, ora interior, 
nada possui de passivo, 
de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo 
de quem, ao fazer, se esforça, 
e que ele, dentro, afinal, 
revela vontade própria, 

incapaz, agora, dentro, 
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)

que, sem nenhum coração, 
vive a esgotar, gota a gota, 
o que o homem, de reserva, 
possa ter na íntima poça."


João Cabral de Melo Neto, "Serial", in Poesia Completa - 1940-1980, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, pp. 197-198. 

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