"Creio verdadeiramente em anjos. Creio em remédios santos
que entram pela porta dos fundos.
Propícios ao lado esquerdo
Creio que os anjos não existem apenas
talhados em pedra vulnerável nos jardins camarários:
curvados ao alçar da perna dos cães;
o rosto pálido da anemia;
pousio (de pássaros) saltimbancos a horas muito lentas
Creio que também é possível apanhá-los com o sol
em equilíbrios na cabeça,
curvados em oração à cabeceira de descampados
onde o verde se perverte em laivos de cinza velho.
Que faz sentido acreditar que eles até se deixam
infectar pelos nossos brilhos natalícios,
essas loucuras a tenderem para o grotesco:
desta vida à outra endoidece-se muito
Creio nas suas asas
feitas das nossas solas gastas em dias que nos fazem
frente, roídos à dentada,
estão capazes de suster a respiração e atravessar
a solidão automedicada de muralha.
Pelos confettis e serpentinas nos espelhos do rosto
Creio que são eles que nos deixam ficar
(sem trombetas nem avisos de recepção)
stickers com corações vermelhos no ecrã do telemóvel.
Creio que os dias em que eles cavalgam, depressivos, o dorso
de ventos agrestes, ondas mudas,
custam muito a passar
Creio verdadeiramente em anjos.
Creio que são eles que florescem de agapantos a nossa via-sacra.
Creio que têm qualquer coisa de jardineiro."
Josefa de Maltezinho, Fracturas Expostas, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2022, pp. 28-29.

No comments:
Post a Comment