"Se hoje pela manhã eu pudesse contar-vos que já fui
de vidro mas já não sou;
que ainda me estilhaço mas só da cintura para baixo;
que já consigo engolir girassóis de cabeça pendente
como quem engole caramelos espanhóis, sem ficar ali
a mastigar de perfil, pendurada
Se hoje pela tarde eu pudesse arremessar-vos com a certeza
de que o sol, esse absinto que todos os dias
vejo largado à ressaca, finalmente tinha nascido para mim;
que ele tinha preferido perder o sobrescrito
em vez de fugir para a praia,
só porque é viciado em sexo de conchinha na areia
Se hoje pela noite eu pudesse convencer-vos que as camas
que fiz nem sequer eram para me deitar
mas que acabei sempre por dormir meias horas nelas,
e que o amor à queima-roupa
pode ter sabor a limão, ser azedo que se farta:
se eu pudesse, mas não posso.
Prefiro calar-me. Dar azo a todas as suposições."
Josefa de Maltezinho, Fracturas Expostas, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2022, p. 85.

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