"Voltou ao quarto de Beatriz, e disse-lhe com brandura, mas torvado o aspeito:
- Mataste a minha felicidade, e a tua. Doravante seremos dois desgraçados que se contemplam. Vives, porque a tua honestidade ainda não está morta. Foi a alma que pecou; convém que a alma sofra. Quando os corpos estão manchados, então é a honra a espedaçá-los. É ocasião de te contar que, há cento e tantos anos, houve nesta casa uma adúltera. Deitou-se uma noite tranquilamente ao lado do marido, e foi ao outro dia tirada do leito para ser amortalhada. As cinzas dela estão ali na capela do jazigo da esquerda. Não se recolheu ainda àquela sepultura nenhum cadáver. Eu quisera que não fosses tu a companheira dos ossos da única adúltera desta família em quinhentos anos sabidos.
- Mas eu estou inocente, meu Deus! - exclamou Beatriz, tirando pelas madeixas com tresvariada angústia.
- Bem sei - disse soturnamente o marido.
- Pois, se sabes, porque me insultas?
- Eu conversei contigo, Beatriz: os lacaios é que insultam. Meu terceiro avô não me conta que insultasse a minha terceira avó, que está ali no jazigo do lado esquerdo."
Camilo Castelo Branco, O Esqueleto, Lisboa: Círculo de Leitores, 1990, p. 115.