Tuesday, December 31, 2019

FINDA




"Há uma corrente sob a terra, 
que entra em nós às golfadas. 

Há uma corrente sob a terra, 
que nos chamusca as ossadas.

Virá um grande fogo, 
virá uma corrente sobre a terra. 

Nós seremos testemunhas."


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado, trad. João Barrento e Judite Berkemeier, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 77. 

SOB A TERRA




"Há fogo sob a terra, 
e a chama é pura. 

Há fogo sob a terra, 
e é líquida a pedra dura."


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado, trad. João Barrento e Judite Berkemeier, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 75. 

QUINTA-ESSÊNCIA




"Resumindo a coisa
ao tomar uma folha por uma folha
ao tomar um ramo por um ramo
ao confundir um bosque com um bosque
estamos a agir frivolamente
esta é a quinta-essência da minha doutrina
felizmente já começam a vislumbrar-se
os contornos exactos das coisas
e as nuvens vê-se que não são nuvens
e os rios vê-se que não são rios
e as rochas vê-se que não são rochas
são altares
                 são cúpulas! 
                                      são colunas!
e nós devemos dizer missa."


Nicanor Parra, Acho que Vou Morrer de Poesia, sel. e trad. Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta, 2019, p. 155. 

SOPHROSUNE




"Éramos como deuses - 
recolhíamos a sorte do sol
mas era no solo que acendíamos
uma luz sem brilho
onde habitávamos o lado mais benigno da beleza. 

Aprendíamos a ser póstumos - 
renegávamos a noite e a sofrósina
pelo privilégio de sermos comuns ao céu, 
inventando uma nova astrologia
nos olhos da terra. 

Descobrimos toda a nossa propensão - 
o golpe comum da canícula, 
sua língua de vento e braços de fome, 
e somos agora exército negro
de um país sem nome. 

Talvez possamos ser felizes - 
amar o outono na penúria do restolho, 
o gesto de querer sempre um pouco mais de sol, 
de vestir a mortalha do desejo
e morrer de pé."


Emanuel Madalena, Sob a forma do silêncio, Porto: Porto Editora, 2019, p. 26.

BEATITUDE




"El hijo se irrita. «Qué manía! Acaso la enfermedad está ya afectándole al cérebro?»
- No reían, padre. Sólo una sonrisa. Una sonrisa de beatitud. 
- Beatitud? Qué es eso?
- Como los santos en las estampas, cuando contemplan a Dios.
El viejo suelta la carcajada. 
- Santos? Contemplando a Dios? Ellos, los etruscos? Ni hablar!"


José Luis Sampedro, La sonrisa etrusca, 53.ª ed., Madrid: Alfaguara, 1999, p. 17. 

Monday, December 30, 2019

CÉU ABERTO




"A céu aberto e sem nuvens, 
esvoaçam em bando as andorinhas, 
trocada por pardais a velha águia,
e nem sequer se ouve o rouxinol."


José António Almeida, O rei de sodoma e algumas palavras em sua homenagem, Lisboa: Editorial Presença, 1993, p. 47. 

POTÊNCIA

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"O que é o homem
                               pergunta-se Pascal:
Uma potência de expoente zero. 
Nada
                               se comparando ao tudo
Tudo 
                               se comparado ao nada:
Nascimento mais morte:
Ruído multiplicado por silêncio:
Média aritmética entre o tudo e o nada."


Nicanor Parra, Acho que Vou Morrer de Poesia, sel. Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta, 2019, p. 117. 

Sunday, December 29, 2019

DOMUS



"Pois não quero mais ser Teu arauto, 
Já que todos têm voz, 
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo, 
a miraculosa trama dos teares, 
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
Olha aqui, cidadão, 
repara, minha senhora, 
neste canivete mágico:
corta, saca e fura, 
é um faqueiro completo!
Ó Deus, 
me deixa trabalhar na cozinha, 
nem vendedor nem escrivão, 
me deixa fazer Teu pão.
Filha, diz-me o Senhor, 
eu só como palavras."


Adélia Prado, "Oráculos de Maio", in Com Licença Poética - Antologia, org. Abel Barros Baptista, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 113. 

O MUNDO MODERNO




"Como fica provado, 
O mundo moderno compõe-se de flores artificiais
Cultivadas em redomas de vidro que se assemelham à morte, 
É formado por estrelas de cinema, 
E por sangrentos pugilistas que lutam à luz da lua, 
É composto de homens-rouxinóis que controlam a vida económica dos países
Através de alguns mecanismos fáceis de explicar:
Eles vestem geralmente de negro como os precursores do Outono
E alimentam-se de raízes e de ervas silvestres.
Entretanto os sábios, comidos pelos ratos, 
Apodrecem nas caves das catedrais,
E as almas nobres são implacavelmente perseguidas pela polícia."


Nicanor Parra, Acho que Vou Morrer de Poesia, sel. Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta, 2019, p. 45. 

Saturday, December 28, 2019

QUEBRA-CABEÇAS



"Não dou a ninguém o direito. 
Adoro um farrapo de pano.
Mudo túmulos de lugar. 

Mudo túmulos de lugar.
Não dou a ninguém o direito. 
Sou um tipo ridículo
Sob raios do sol. 
Açoite das fontes de soda
Eu morro de raiva. 

Eu não tenho remédio,
Os meus cabelos me denunciam
Num altar de circunstância
As máquinas não perdoam.

Rio-me atrás de uma cadeira, 
A minha cara enche-se de moscas.

Eu sou aquele que se expressa mal
Expressa em vistas do quê.

Eu gaguejo,
Com o pé toco numa espécie de feto.

Para que são estes estômagos?
Quem inventou esta mixórdia?

O melhor é fazer-me de parvo.
Eu não digo coisa com coisa."


Nicanor Parra, Acho que Vou Morrer de Poesia, sel. Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta, 2019, pp. 22-23. 

Thursday, December 26, 2019

A EXPERIÊNCIA DO TEMPO




"Heidegger acredita que tal tédio é a evidência da nossa existência através de uma experiência directa do tempo. Sem distracções, como a televisão, rádios, jornais ou outras pessoas, ficamos desarmados perante a experiência do tempo sobre nós. O tempo esmaga-nos cada vez mais. Sentimo-nos desconfortáveis com isso, porque a maioria de nós não é capaz de lidar com um tempo sem conteúdos, com um tempo sem a distracção desse mesmo tempo. De repente, tornamo-nos conscientes de muitas coisas e, mais assustador do que tudo, tornamo-nos conscientes de nós mesmos. Sem nada para nos distrair do tempo, vemos a nossa própria existência exposta diante de nós. O tempo alonga-se de tal modo que parece uma estrada deserta sem fim. Sentimos que não vamos a lado nenhum, pois parece não haver nada para fazer e nada a fazer, ou, faça-se o que se fizer, nada se vai alterar. O tédio - diz Heidegger - é uma espécie de monstro, que nós estamos constantemente a adormecer. 

Paulo José Miranda, A Morte não É Prioritária - biografia de Manoel de Oliveira, Lisboa: Contraponto, 2019, p. 206. 

Wednesday, December 25, 2019

PRESENÇA




"Um silêncio total cai à roda, povoado
de claridades habitualmente ocultas
que só as horas de solidão revelam. 

E, de súbito, da sua misteriosa presença, 
vozes irrompem, insidiosas e graves, 
de perturbada serenidade, quase mortal. 

Tudo parece um pouco absurdo, assim quieto, 
nesta luz cor de mel da tarde exausta
em que nem um esvoaçar de pombos soa.

Só do fundo dos horizontes longínquos
da memória adormecida uma fúria teima, 
talvez inútil, mas viva, em chamar."


Armindo Rodrigues, Beleza Prometida, Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950, p. 26. 

Tuesday, December 24, 2019

ROSA MYSTICA



"És tu que aparelhas em ti
um maior do que tu, a tua essencial essência. 
O que emana de ti, esse desassossego
comovente, és tu própria. A dançar. 

Cada pétala diz sim
e dá ao vento
alguns passos perfumados
de invisível.

Ó música dos olhos 
que, todos, convergem
para esse centro, onde te tornas
intangível, rosa."


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio d'Água, 1996, p. 263. 

APRÈS UNE JOURNÉE DE VENT




"Depois de um dia de vento, 
numa paz infindável, persistente, 
o entardecer reconcilia-se
como um amante dócil consigo mesmo. 

Tudo se torna claridade, calma...
Mas, no horizonte, reúnem-se
baixos-relevos de nuvens
com uma beleza de ouro alumiada."


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio d'Água, 1996, p. 197. 

A ÚNICA REALIDADE




"Encontramos, assim, uma primeira resposta, ainda bastante genérica, para as duas questões atrás expostas: no fundo, o «amor» é uma única realidade, embora com distintas dimensões, caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro, intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões."

Bento XVI, Deus Caritas Est, s. tr., Lisboa: Rei dos Livros, 2007, p. 14. 

Monday, December 23, 2019

LÁ FORA




"Que natal é este que acontece lá fora?

Há um vermelho cor de fome nos olhos
dos meus reflexos. Um travo a sentido
único na pele fina dos meus dedos. Os
retratos pousados na minha memória
sangram vidas que os segundos rompem, implacáveis. 
Rompem e trespassam
Espelhos e gestos. Indiferentes a todas 
as assimetrias do quarto redondo onde
descanso do mundo. 

Que natal é este que acontece lá fora?

Dentro de mim não há-de caber um natal
que não sabe caber dentro de todos."


Virgínia do Carmo, Relevos, Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2014, p. 72. 

Sunday, December 22, 2019

A JUSTA UNIDADE



""No debate filosófico e teológico, estas distinções foram muitas vezes radicalizadas até ao ponto de as colocar em contraposição: tipicamente cristão, seria o amor descendente, oblativo, ou seja, a «ágape», ao invés, a cultura não cristã, especificamente a grega, caracterizar-se-ia pelo amor ascendente, ambicioso e possessivo, ou seja, pelo «eros». Se se quisesse levar ao extremo esta antítese, a essência do cristianismo terminaria desaticulada das relações básicas e vitais da existência humana e constituiria um mundo independente, considerado talvez admirável, mas decididamente separado do conjunto da existência humana. Na realidade, «eros» e «ágape» - amor ascendente e amor descendente - nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral."

Bento XVI, Deus Caritas Est, s. tr., Lisboa: Rei dos Livros, 2007, p. 12. 

OS ELEMENTOS



"A franqueza dos nossos sentidos nos impede de gozar as coisas na sua simplicidade natural. Os elementos não são em si como nós os vemos: o ar, a água, e a terra cada instante mudam, o fogo toma a qualidade da matéria que o produz, e tudo enfim se altera, e se empiora para ser proporcionado a nós. A virtude muitas vezes se acha com mistura de algum vício"

Matias Aires, Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1966, p.  102. 

Saturday, December 21, 2019

ANIVERSÁRIO




"Esta luz animada e desprendida
Duma longínqua estrela misteriosa
Que, vindo reflectir-se em nosso rosto, 
Acende nele estranha claridade: 
Esta lâmpada oculta em nossa máscara
Tornada transparente e radiante
De alegria, de dor ou desespero
E de outros sentimentos emanados
Do coração dum anjo ou dum demónio.;
Este retrato ideal e verdadeiro, 
Composto de alma e corpo e de que somos
A trágica moldura, errando à sorte, 
É ela, é ela, a nossa aparição, 
Feita de estrelas, sombras, ventanias
E séculos, sem fim, surgindo, enfim, 
Cá fora, sobre a terra, à luz do sol."


Teixeira de Pascoaes, Cânticos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 75. 

Friday, December 20, 2019

FRÁGIL



"Como é frágil a Terra na charola do céu!
Como é trôpega e leviana e azul a bola de sabão
e como é imensa a formiga e infinita a seara, 
como é inesperada a aragem e feminina, 
como é preciosa a pedra pequenina que seguro na mão, 
vou metê-la no bolso para adormecer com ela, logo!
O Vento Norte atravessa a colina como um guerreiro
que segura nas mãos frias a espada, 
mas o melhor é o Zéfiro, o guardador
das nuvens, o tocador dos nimbos que despejam
a água das grandes chuvadas, os temporais de inverno!"


Jorge Guimarães, Odes Nocturnas, Lisboa: Guimarães Editores, 1990, p. 23. 

Thursday, December 19, 2019

A FATAL REVOLUÇÃO DO TEMPO


"Que são os homens mais do que aparências de teatro? Tudo neles é representação, que a vaidade guia: a fatal revolução do tempo, e o seu curso rápido, que coisa nenhuma pára, nem suspende, tudo arrasta, e tudo leva consigo ao profundo de uma eternidade. Neste abismo onde entra, e nada sai, se vão precipitar todos os sucessos, e com eles todos os impérios. Os nossos antepassados já vieram e já foram; e nós daqui a pouco vamos ser também antepassados dos que hão-de vir. As idades se renovam, a figura do mundo sempre muda, os vivos, e os mortos continuamente se sucedem, nada fica, tudo se usa, tudo acaba. Só Deus é sempre o mesmo, os seus anos não têm fim, a torrente das idades, e dos séculos corre diante dos seus olhos, e ele vê a vaidade dos mortais, que ainda quando vão passando o insultam, e se servem desse mesmo instante, em que passam para o ofenderem. Miseráveis homens, gênero infeliz, que nesse momento , que lhes dura a vida, preparam a sua reprovação; e que tendo vaidade, que lhes faz parecer, que tudo meditam, que tudo sabem, e que tudo preveem, só a não têm para anteverem as vinganças de um Deus irado, e que com o seu mesmo sofrimento, e silêncio, clama, ameaça, julga, condena!"

Matias Aires, Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1966, p. 50. 

Wednesday, December 18, 2019

ÂNSIAS




"O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava. 
Febres de Mais, ânsias de Altura e Abismo, 
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo."


José Régio, As Encruzilhadas de Deus, 7.ª ed., Porto: Brasília Editora, 1981, p. 108. 

Sunday, December 15, 2019

O SILÊNCIO



"As estrelas do meu tempo eram mais brilhantes, 
mais numerosas, o céu era mais negro, 
e o silêncio de tanta vida era mais belo
suspenso o mar por cima em gotas flutuantes.
Ainda hoje o céu se despenha no silêncio,
o fino silêncio das cintilações, 
como é possível suster no olhar um peso assim, 
as cascatas do céu a despejarem-se nos olhos
mais silenciosamente que o voo dum pirilampo?...
É o silêncio do céu que tomba sobre mim, 
o infinito percorre-me como um toque de trombeta, 
conheço todas estas estrelas uma a uma
como o senti ao entendê-las pela primeira vez. 
E depois de eu ter morrido elas continuarão a brilhar
e depois de a Terra ter morrido
e depois de elas próprias terem morrido
e de se terem de novo fabricado. 
E também este silêncio do meu olhar
alimentado pela taça do céu
atravessa-me e deixa-me a vibrar, 
nada mais quero senão compreender
o logaritmo que me transmite a passagem, 
saber que morro só, que vivo só, 
tão cheio de silêncio como de nada."


Jorge Guimarães, Odes Nocturnas, Lisboa: Guimarães Editores, 1990, pp. 11-12. 

Saturday, December 14, 2019

ENTRE A ROCHA



"Silenciados pela desordem dos caminhos, 
iguais entre a distância das palavras
que alimentam a mudez nos corpos, 
abrandámos o voo e as piruetas
na melhor volta das nuvens
e contemplámos mistérios:

sabíamos dar prova do nosso 
mais secreto ministério, 
tentar o eco, erguer um istmo
com a incúria do reconhecimento, 
esses minérios que eclodiam entre o sol
e o amparo da relva, 
impondo-se à terra pela mão e contorno
dos elementos, 

foi o tempo da saudade entre a rocha
e as patas da gaivota, 
o gesto inaugural de um rapaz frágil, 
o fugaz repouso do que em nós
foi arquipélago. 

Contigo
despi as velhas roupas com que se cobrem os espelhos, 
contigo encontrei-me 
na forma justa do que nos aparece eterno."


Emanuel Madalena, Sob a forma do silêncio, Porto: Porto Editora, 2019, pp. 20-21. 

ERGUIDO




"No tempo das estátuas. Não se sabe
porque foram erguidas, tudo nos faz crer
que eram cópias dos homens. 
Por certo acreditavam
que elas lhes prolongariam a vida, 
ou que os chamariam
para a ressurreição."


Jorge Guimarães, O Tempo das Estátuas, Lisboa: Guimarães Editores, 1992, p. 14. 

Thursday, December 12, 2019

CANAIS




"__________ se estiveres ausente (automóvel, comboio, avião, mudança de estação ou de cidade), compra um papel simples que te comunique e envia-mo pelos meios mais eficazes ao teu alcance, e que te revelem como comprimido a desfazer-se debaixo da língua."

Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga - curso de silêncio de 2004, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 129. 

Wednesday, December 11, 2019

EXPRESSÃO




"Não quis tentar primitivismo vesgo e
insincero. Somos na realidade os primitivos
duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre
as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e
críticos sobre os primitivos das eras passadas, 
expressão mais humana e livre de arte."


Mário de Andrade, "Paulicéia Desvairada", in Seria uma rima, não seria uma solução - a poesia modernista, org. Abel Barros Baptista e Osvaldo M. Silvestre, Lisboa: Cotovia, 2005, p. 74. 

Tuesday, December 10, 2019

EVEN IN THE SHADOWS (para a Divina Marie Fredriksson)




"Velo o coração inerte contaminando, 
disperso, uma viela de folhas estéreis
soltas dos ramos do céu dormente.

Ajeito-lhe o véu, a cobrir-me de ti, 
ainda. Nas mãos incompletas seguro
um sussurro de angústia a regurgitar-se
do vazio. Chaga aberta, ainda. E no
regaço frio da ansiedade, medo da
escuridão, seguro o vaso onde serei
pó. Pó alheio à sede do sepulcro onde 
te deixei, a ti, carrasco involuntário
do meu peito. A ti que me morreste, 
inocente, neste poente de imperfeita
finitude."


Virgínia do Carmo, Relevos, Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2014, p. 54. 

Monday, December 9, 2019

JUSTIÇA




"Voltou ao quarto de Beatriz, e disse-lhe com brandura, mas torvado o aspeito:
- Mataste a minha felicidade, e a tua. Doravante seremos dois desgraçados que se contemplam. Vives, porque a tua honestidade ainda não está morta. Foi a alma que pecou; convém que a alma sofra. Quando os corpos estão manchados, então é a honra a espedaçá-los. É ocasião de te contar que, há cento e tantos anos, houve nesta casa uma adúltera. Deitou-se uma noite tranquilamente ao lado do marido, e foi ao outro dia tirada do leito para ser amortalhada. As cinzas dela estão ali na capela do jazigo da esquerda. Não se recolheu ainda àquela sepultura nenhum cadáver. Eu quisera que não fosses tu a companheira dos ossos da única adúltera desta família em quinhentos anos sabidos. 
- Mas eu estou inocente, meu Deus!  - exclamou Beatriz, tirando pelas madeixas com tresvariada angústia. 
- Bem sei - disse soturnamente o marido. 
- Pois, se sabes, porque me insultas?
- Eu conversei contigo, Beatriz: os lacaios é que insultam. Meu terceiro avô não me conta que insultasse a minha terceira avó, que está ali no jazigo do lado esquerdo."


Camilo Castelo Branco, O Esqueleto, Lisboa: Círculo de Leitores, 1990, p. 115. 

Sunday, December 8, 2019

ARCA SEGURA




"Virgem, visão de paz, arca segura, 
Do dilúvio geral, por Deus traçada, 
Pera que habite a glória em nossa terra, 
Custódia da lei, santa, imaculada, 
Que em mais perfeito grau mostra a doçura
Dos divinos preceitos que ela encerra, 
Aurora que desterra
A noite da alma cega, 
Nuvem que os justos rega
Com água viva do divino sprito, 
Livro em que foi por Ele o nome escrito, 
Que enche o Céu, acaba o mundo, o inferno rende, 
Cujo preço infinito, 
Mostrou, posto na Cruz, Quem só o entende!"


Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., pp. 158-159. 

MALFADADA




"Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada. 

Tanto tenho aprendido e não sei nada. 
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar-Morto:
Mar sem velas, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonho se rasgaram!

Caravelas doiradas a bailar...
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida e não voltaram!..."


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 81. 

Saturday, December 7, 2019

CONCÓRDIA



"Lisístrata


Não é difícil, mas sob uma condição: a de que, por muito inflamados que estejam no desejo de possuírem as mulheres, nada farão para se satisfazerem uns com os outros. Vamos tratar de tudo. Onde está a Reconciliação? Traz primeiramente à minha presença os lacedemónios. Trá-los pela mão, com bons modos, não com aquele ar conquistador habitual nos brutos dos nossos maridos, antes com a meiguice própria das mulheres. Se não quiserem dar-te a mão, prende-os pelo pénis... E traz-me também os atenienses, pega-lhes pelo que tiveres mais à mão. Colocai-vos deste lado, lacedemónios; vós, sentai-vos destoutro lado e dai-me ouvidos. Embora seja mulher, tenho algum juízo; não só recebi da natureza uma inteligência digna de respeito, como a desenvolvi consideravelmente, ouvindo as lições de meu pai e dos anciãos. A todos vós faço as mesmas censuras: vós, que sois todos irmãos, que ides a Olímpia, a Pilo, a Delfos e a muitos outros templos oferecer os mesmos sacrifícios (não cito todos os locais para não ser enfadonha), sois os mesmos que reunis hordas de bárbaros para destruirdes os Gregos e moverdes guerra violenta contra as cidades da Grécia."



Aristófanes, Lisístrata, ato VI, cena III, trad. Manuel João Gomes, Círculo de Leitores, 1985, pp. 126-127. 

VAGAMUNDOS



"a partir do momento em que tudo ao meu alcance se imobiliza, sinto a copa da árvore verdejante, à entrada de um ramo; vindo de um ponto movimentado da vila próxima, 
um trilhador dos mundos senta-se na soleira de um barraco de cristal. Está centrado sobre um objecto que deixou ____________ o estudo do texto em que escrevo e que lhe conferiu (necessitaria ele?)      o estatuto de nómada. Sem situação social do conhecimento. As folhas adoram vagamundos. A vagueação. E as daquele plátano, e árvores limítrofes, não são excepção à regra. Assim, ele, partido em fragmentos, move-se, flutuando, por impulso do ar. É um homem quotidiano, sem nenhum sinal de ilustração nas mãos e/ou no rosto. Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio. 

Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto, 
que se desfaz na espuma do texto."


Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga - curso de silêncio de 2004, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 11. 

Friday, December 6, 2019

BLANCHE-NEIGE



"Em sonhos, vi-me de repente, frio, 
Amortalhado, n'um lençol funereo, 
E caminhando, à luz do luar sombrio, 
Em direcção d'um vasto cemiterio. 

Ia deitado, n'um caixão estreito, 
Em um esquife de cristal doirado:
Levava as mãos erguidas sobre o peito,
E lagrymas no olhar, meio cerrado...

Mas ao chegar, emfim, ao Campo Santo, 
Quando o Coveiro me atirou á valla, 
Vi desdobrar-se, como por encanto, 
Não sei que doce e misteriosa falla. 

E ao escutar aquella voz amiga, 
Eu descerrei o olhar, humido e franco, 
E vi uma formosa rapariga, 
Uma loira visão, toda de branco...

Fitei-a... E vendo-a tam gentil, tam nova, 
Disse-lhe, então, com uma voz de arminho:
«Vem tu comigo repousar, na cova, 
Que eu tenho medo de ficar, sosinho...»

Ella sorriu... E ao vel-a, silenciosa, 
Eu exclamei, num tom vibrante e forte:
«Vem: sê a minha noiva, a minha esposa...
Que és tu?» E ella respondeu: «A Morte»."


António Nobre, Alicerces seguido de Livro de Apontamentos, ed. Mário Cláudio, Lisboa: IN-CM, 1983, p. 24. 

Thursday, December 5, 2019

NUDEZ




"Se ao menos este silêncio fosse de sombras. Um
agregado de partículas a abrandar o céu, a decompor
o azul em sílabas maiores. E no espoar dos seus 
cúmulos em sínteses de contornos me devolvesse a
forma insinuada dos abraços, a textura do toque, a
densidade térrea de um corpo vivo. 

Se ao menos este silêncio fosse de sombras
povoadas, e não esta nudez transparente e clara, 
vazia e intocável."


Virgínia do Carmo, Relevos, Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2014, p. 19.

Wednesday, December 4, 2019

IGUALAR-SE



"Marta ficou paralisada pelo espanto do fogo. Nunca, até então, vira aquelas chamas poderosas, que tentavam igualar-se às árvores, tão aniquiladoras e ofuscantes como o Sol, capaz também de incinerar a Terra, se não vivêssemos tão longe da matéria ígnea. Compreendeu que só poderia aproximar-se dessa energia por um amor simbólico, e que teria sempre de salvar o mundo das chamas concretas."

Fiama Hasse Pais Brandão, "Sob o Olhar de Medeia", in Em Cada Pedra Um Voo Imóvel e outros textos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p.p. 204-205. 

Monday, December 2, 2019

EM BREVE





"Em breve 
um estranho baterá à nossa porta.

Não lhe recusemos a entrada...
Ele nos trará o pão e a paz
e nos dará de beber água clara. 

As suas mãos
serão frescas, leves e brandas...

Em breve
um estranho baterá à nossa porta
e nós lhe morderemos a mão
que nos acarinhará!

Não lhe recusemos a entrada..."


Tomaz Kim, Obra Poética, Lisboa: IN-CM, 2001, p. 142. 

Sunday, December 1, 2019

MEMÓRIA ABERTA



"A alma, quando sai da caverna, não podendo ver, sob a crueza do Sol, os arquétipos, vê como que as imagens na água. Alguém já pensara tudo isto, antes dela, mas só muito mais tarde se daria conta disso, embora fosse essa também, precisamente, uma condição prévia da sua visão. O pensamento está pensado, há tanto tempo, descobriu um dia Marta. Se alguém nasce, sem olhar em ouvir, como dizer-lhe o que está pensado e visto? Mais tarde, pensaria que seria melhor deixar no silêncio e na invisão essa criança, não lhe criando desejos. Não ter o vício de a tornar igual a nós, a ela, Marta. E entre a sua longínqua vida rural e a sua actual visão, Marta concluiria que criar desejos e necessidades é um vício de educação, perverso e sem piedade. Crianças cegas-surdas, que poderiam estar na paz da não-memória, martirizadas com os apelos e as estratégias para alcançarem um dia algum dos nossos terríveis desejos. Desejo do que já se teve e terá, memória aberta."

Fiama Hasse Pais Brandão, "Sob o Olhar de Medeia", in Em Cada Pedra Um Voo Imóvel e outros textos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 167. 

DA INDEPENDÊNCIA



"O português não é nada filósofo; a luz do seu olhar alumia mais do que vê; não abrange, num golpe de vista, os conhecimentos humanos, subordinando-os a uma lógica perfeita e nova que os interprete num todo harmonioso."

Teixeira de Pascoaes, Pensamentos e Máximas, selec. e apresentação de António Cândido Franco, Maia: Cosmorama Edições, 2010, p. 130.