Wednesday, July 29, 2020

PARA LÁ DOS LIMITES



"Pessoas para quem, um momento antes, o simples acto de se deslocarem teria semelhado uma tortura, aqui, agarrando-se às suas malas e embrulhos, berravam na bilheteira. Como loucos, invadiam as decadentes carruagens, faziam cerco junto dos degraus e, cobertos de fuligem a ponto de parecerem limpa-chaminés, comprimiam-se em compartimentos divididos por painéis entalhados, que pareciam estar empenados pelo calor, pela violenta linguagem e pelas sacudidelas constantes dos passageiros. As carruagens ardiam, os carris ardiam, até os próprios sinais ardiam, enquanto as locomotivas de longe e de perto emitiam as suas lamentações através dos vapores. Deslizando lentamente por entre ejaculações de vapor, tal um insecto roncando, a pequena locomotiva cuspia o avassalador bafo da sua fornalha aberta, nas faces do maquinista e de encontro ao avental de couro do fogueiro. O mostrador do relógio ardia, as barras de ferro transversais do velocímetro ardiam e os ponteiros ardiam; os vigias ardiam. Tudo estava para lá dos limites da resistência humana. Tudo isto, porém, era suportado."

Bóris Pasternak, Uma aventura em Ferrara, trad. Morgado de Carvalho, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., pp. 20-21. 

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