Sunday, November 17, 2024

ROCHA ALTA

 



"Já a Pastora chegava ao alto cume
Da serra, onde é mais alta a penedia,
Dond' o olho abaixo olhando, perde o lume,
E entr' ela, e el-Rei só a lança se metia.
Já lhe chega o Tirano, e já presume
Que nem em terra, ou Céu lhe escaparia,
Quando COMBA gritou: ó rocha alta, onde
Venho buscar abrigo, em ti me esconde.
Ó Maravilha grande! abriu-se a dura pedra.
Obedeceu à Santa a rocha dura,
Obedeceu à Santa, e abriu-se a pedra,
E defendeu-a da cruel ventura.
Também a lança do Mouro abriu a pedra,
Ao pé fica assinada a ferradura,
Ao pé da rocha, onde hoje inda parece,
E na pedra a lançada se conhece.
Tanto que em si recolheu, cerrou-se
A dura rocha, assim de Deus mandada."



António Ferreira, Poemas Lusitanos, vol. II, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 29.

DORMITÓRIOS

 



"Não se diz no letreiro que morreu de vinte e um anos, senão que os viveu, porque quem morre ao mundo sempre vive pera Deus e assi nunca morre, e foram, como está dito, seus anos vinte e um, bem poucos a respeito de muitas virtudes que já tinha alcançado; pelo qual em o mesmo letreiro se lhe aplica o que lemos de Enoc no livro do Eclesiástico, isto é, que brevemente cumpriu muitos tempos. Diz mais: que dormiu em paz, porque os mortos hão-de ressuscitar com tanta facilidade das sepulturas como os que dormem de seus leitos e por isso os adros são chamados cemitérios, que é o mesmo que dormitórios. Quando lemos que dormiu em paz, podemos coligir que teve a morte dos justos, que andam na vida sempre diante de Deus, até que no fim se vêm a unir e abraçar com Ele e a descansar em paz, como pedimos nas exéquias de nossos defuntos, sabendo que são bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor" 

 

Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 102. 

Saturday, November 16, 2024

VOAR

 



"Quero voar
sem qualquer depois, esquecer

a fome das manhãs, a
incansável
desdita respiratória. Houve

um falso acordar
um dia, pequeno
relâmpago nenhum."



José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 118.

Friday, November 15, 2024

SILÊNCIO NEVRÓTICO

 




"Tudo é um branco demasiado vago
na tarde imensa...


A árvore do tédio exala um calor ébrio
que abre o pano do medo
e aprofunda as feridas do tempo.


A rotina com a sua cor sem memória
elogia os vultos que afagaram o Outono.
Estende a cidade na poeira das sombras.


Eu vagamente bêbado de incertezas
deponho o meu fantástico desprezo
na tristeza redonda do momento.


E deixo-me morrer
na curva austera dum silêncio nevrótico."



José Bação Leal, Poesias e Cartas, Porto: Tipografia Vale Formoso, 1971, p. 28.

Thursday, November 14, 2024

SÓ POR DENTRO

 




"Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração."



David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 178.

PRAESIDIUM

 



"Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!"



David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 179.

Monday, November 11, 2024

FUGIDIA

 


"A verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento. «A verdade não nos foge»: esta fórmula de Gottfried Keller assinala, na concepção da história própria do historicismo, precisamente o ponto em que essa concepção é destruída pelo materialismo histórico. Porque é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela."


Walter Benjamin, O Anjo da História, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 11. 

Sunday, November 10, 2024

ACREDITAR

 


"Conceição tinha outro, de que dizia maravilhas: As Tristezas à Beira Mar. E, lentamente, foi-se estreitando entre ambos uma amizade nova, cimentada em mágoas e alegrias colhidas nos romances. Uma vez, Ramiro perguntou a Conceição se acreditava em tudo o que os romances diziam. Ramiro disse-lhe que sim: que os romances eram mais verdadeiros que a vida, pois apenas se contavam neles tristezas e desgraças, e tristezas e desgraças eram a única coisa verdadeira que o homem encontrava neste mundo."


João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 309. 

Saturday, November 9, 2024

ELEGANTE FIGURA CÉNICA

 



"Depois já será tarde
para te alcançar no caminho por onde avanças.
Aguardo aqui sentado sentindo o afastamento,
procuro calcular bem os tempos e as distâncias,
as capacidades locomotoras dos meus passos
ou até da minha corrida lesta
ao longo desta paisagem ocelada e formosa.
Mas no fundo o que me interessa
é o cálculo e não a prática,
ou quem sabe depois exercite a prática, em
elegante figura cénica,
após o cálculo de
já não te encontrar no caminho."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 344.

VER NASCER A CLARIDADE

 



"Vem ver nascer a claridade
ver a sombra transformar-se em lume. Como
sabes, sou sempre novo
e falarei em cores
para poderes colorir as camélias."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 298.

Tuesday, November 5, 2024

PAUSAS DE LUZ

 



"Nas pausas de luz
trazidas pelos dias com chuva
no regaço enrolas grãos de cinza.
Despedes-te da tarde
num alhear de fogo
enquanto a lua se afunda
nas poças da rua
num agudo rebramir de vozes."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Dióspiro - Poesia Reunida 1977-2007, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 202. 

Sunday, November 3, 2024

ABISMADO

 


“Onde acabava o céu e começava a terra? E as árvores rumorejavam, os ralos cantavam – um estrépito novo, profundo, incessante, enchia a noite. Ficou um momento debruçado, escutando a amplidão sonora: invadiu-o uma tristeza diferente de todas as tristezas. Sentiu as lágrimas rolarem-lhe pelas faces. Dir-se-ia que a vida acabara para ele. Como era possível uma pessoa ficar assim de repente como morta, tão longe de tudo que amava? Entre o ser debruçado daquela janela e aquele que momentos antes se abraçara a chorar ao pescoço do pai já não havia relação alguma. Tudo o que até então se lhe afigurara a vida – a sua própria vida – era agora uma coisa tão distante como os montes que costumava fitar, abismado, do alto do Castelo de Leiria. Imaginava que para além ninguém podia ser feliz: era como se o mundo acabasse ali e depois fosse a frieza desolada de um planeta morto. Nesse planeta habitava agora.”


João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 22. 

Saturday, November 2, 2024

DIA DOS MORTOS


 
“Esta visão deu a Rochester uma satisfação cínica, alimentando provavelmente a sua invocação do «Nada», um soberbo poema existencial que não perdeu nenhum do seu brilho.

«Ó Nada, mais velho até que a Escuridão
Já existias mesmo antes da Criação
E és o único que não teme a extinção.

Antes de haver Espaço e Tempo, não havia tal.
Quando o Nada Primitivo criou algo natural,
Tudo – o quê? - se gerou da união original.

Mas teu poder foi comandado por algo profundo
Que da tua mão, cheia de um vazio fecundo,
Fez homens, bichos, fogo, água, ar e mundo.”


Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 102.

Friday, November 1, 2024

SONETO DE OUTONO

 




"Dizem-me os teus olhos, claros como o cristal:
«Qual é, para ti, estranho amante, o meu mérito?»
- Sê bela e cala! Meu coração, que só preza
A candura dos primitivos animais,

Não quer revelar-te o seu segredo infernal,
Embalo cuja mão me predispõe ao sono,
Nem a seu negra lenda lavrada a fogo.
Odeio a paixão, e o espírito faz-me mal!

Amemo-nos docemente. No abrigo, o amor,
Emboscado, retesa o seu arco fatal.
Conheço os engenhos do seu velho arsenal:

Crime, horror, loucura! - Ó pálida margarida!
Não serás tu, como eu, um sol outonal,
Ó minha branca, ó fria Margarida?"



Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 151.

Thursday, October 31, 2024

ALL HALLOWS'

 


"Por esta altura, já pouco mais havia a fazer senão rematar toda aquela conduta com uma orgia na qual as bruxas e os feiticeiros copulavam livremente e se ofereciam ao exigente Diabo, que gostava de tomar as mulheres bonitas pela frente e as feias por trás. Do ponto de vista feminino, Satanás não era o amante ideal, como testemunhou Jeanne d'Abadie, de dezasseis anos, «porque o membro dele era escamoso e causava grande dor. Para além disso, o seu sémen era extremamente frio de modo a que ela nunca engravidasse dele...»."


Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 40.


Wednesday, October 30, 2024

O CONHECIMENTO

 


"O conhecimento do nosso infortúnio é a única coisa em nós que não é desafortunada."


Simone Weil, A Experiência de Deus, trad. Ana Cardoso Pires, Lisboa: Relógio d' Água, 2024, p. 60. 

A VIDA É UM MILAGRE

 




"A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
À consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."



Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira, 20.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1993, p. 268. 

Monday, October 28, 2024

VESTÍGIO

 


"Há uma ambivalência em relação a este assunto. Reconhecendo que todas as coisas desejam persistir na sua própria natureza, muitos preferem sobreviver à morte de qualquer modo, sentindo-se portanto consolado com a noção de uma entidade benigna e sem corpo. Para além disso, sempre que um companheiro ou familiar morre, há uma tendência natural para pensar nos laços de amor e amizade que se romperam e na possibilidade de persistir ainda algum vestígio em forma de fantasma."


Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 21. 

Sunday, October 27, 2024

PARES

 


"Aqueles que amamos e por quem somos amados dão uma existência objectiva, ao discerni-los, a certos valores em nós. Diferentes para cada amigo. Somos como uma composição desses valores. Quando um amigo morre, somos realmente amputados. E ao mudar de ambiente (de condição social), muda-se realmente o ser. Através deles, somos alguma coisa. Mas é preciso não sermos nada."


Simone Weil, A Experiência de Deus, trad. Ana Cardoso Pires, Lisboa: Relógio d' Água, 2024, p. 39. 

Saturday, October 26, 2024

IMAGEM

 



"És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr do sol, à beira d'água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...

A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido..."



Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira, 20.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1993, p. 55.

Friday, October 25, 2024

ALEGORIA

 


"Alegoria do homem amarrado; é preciso acrescentar que ele não está preso a estacas, mas a coisas animadas por movimentos diversos, de modo que é continuamente arrastado de acordo com a resistência. Só pode parar por breves momentos, à custa de um grande esforço - ou quando tiver cortado todas as amarras, sem exceção."


Simone Weil, A Experiência de Deus, trad. Ana Cardoso Pires, Lisboa: Relógio d' Água, 2024, p. 35. 

Wednesday, October 23, 2024

NONSENSE

 


"Defendendo o nonsense no seu delicioso livrinho The Defender, Chesterton chegou a afirmar, na sua defesa e apologia do absurdo - não só do absurdo poético à Edward Lear, mas o absurdo e o insensato na nossa vida - : «O mundo não deve ser apenas trágico, romântico, religioso (note-se que Chesterton era um católico fervoroso), deve também ser privado de sentido.»"


Gillo Dorfles, Elogio da Desarmonia, trad. Maria Ivone Cordeiro, Lisboa: Edições 70, 1988, p. 35. 

Monday, October 21, 2024

DE CRISIBUS

 


"Os desenvolvimentos mais recentes trouxeram, para a universidade e para o ensino da literatura nela, uma crescente pragmatização que significou também uma didactização e banalização da disciplina. O saber aplicado torna-se dominante, a dependência da universidade face a um «mundo da vida» de perfil economicista fez definhar o excedente crítico e mesmo utópico tradicionalmente associado à relação com o literário. A isto vem juntar-se o domínio de um pensamento nivelador, desprovido de ideias e mesmo hostil às ideias, de marca utilitarista e relativista, que justifica e apoia tudo em nome do que se apresenta como pretensamente «actual». A crise está instalada, mas os novos mandarins da contingência não querem reconhecê-la como tal e preferem falar de reformas e das grandes mudanças em curso. As crises também já não são o que eram: hoje estão aí para serem geridas, e não ultrapassadas, vive-se alegremente com elas."

 

João Barrento, A Chama e as Cinzas, Lisboa: Bertrand Editora, 2016, pp. 184-185. 

Sunday, October 20, 2024

RASTOS MNÉSICOS

 


"Muitas vezes, entrando num velho edifício desabitado há muitos anos, numa casa de campo, numa casa colonial, onde durante longuíssimas épocas se tenha desenrolado uma vida patriarcal, tem-se a sensação nítida de estar perante o que definirei como «rastos mnésicos», quase como se estivessem ainda presentes os «espectros» das existências vitais que nesses lugares viveram, agiram e morreram. (Talvez os tão célebres fantasmas dos castelos ingleses sejam de incluir no mesmo princípio: sem querer tomar posições pró ou contra os mesmos, assim se podem mais ou menos explicar todas as lendas e as anedotas sobre a persistência de «rastros» dos antigos habitantes nas casas, nas ruínas...)"


Gillo Dorfles, Elogio da Desarmonia, trad. Maria Ivone Cordeiro, Lisboa:  Edições 70, 1988, p. 133. 

Saturday, October 19, 2024

HARMONIA

 


"O estatuto do lugar antropológico é, bem entendido, ambíguo. Não é mais do que a ideia, parcialmente materializada, que aqueles que o habitam têm da sua relação com o território, com os seus próximos e os outros. Essa ideia pode ser parcial ou mitificada. Varia com o lugar e o ponto de vista que cada um ocupa. O que não impede que proponha e imponha uma série de referências que não são, certamente, as da harmonia selvagem ou do paraíso perdido, mas cuja ausência, quando desaparecem, é difícilmente substituível."


Marc Augé, Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade, 2.ª ed., trad. Lúcia Mucznik, Venda Nova: Bertrand Editora, 1998, p. 62. 

Friday, October 18, 2024

SOBRECARREGADO

 


"Porque esse tempo sobrecarregado de acontecimentos que enchem o presente e o passado próximo, cada um de nós tem ou pensa ter uso. O que, sublinhe-se, aumenta ainda a nossa procura de sentido. O prolongamento da expectativa de vida, a passagem à coexistência habitual de quatro e já não três gerações, arrastam as progressivas mudanças práticas na ordem da vida social. Mas, ao mesmo tempo,  aumentam a memória colectiva, genealógica e histórica, e multiplicam, para cada indivíduo, as ocasiões em que ele pode ter o sentimento de que a sua história cruza a História e que esta diz respeito àquela. As suas exigências e decepções estão ligadas ao reforço desse sentimento."


Marc Augé, Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade, 2.ª ed., trad. Lúcia Mucznik, Venda Nova: Bertrand Editora, 1998, p. 37. 

Thursday, October 17, 2024

LIVROS ANTIGOS

 


"Há muito que deixei de interpretar à letra os livros antigos. Os ritmos, as motivações, a relação das pessoas com tudo o que as rodeia, os próprios meios de apreensão e decifração do real eram completamente diferentes daquilo que hoje acontece. Quem leu alguma vez, por exemplo, o Satiricon, de Petrónio, fica a saber como uma sociedade é diferentes quando vive sobre o impulso de um outro texto fundador. O que se passava numa sociedade uns tempos antes do cristianismo não tem nada que ver com a sociedade que nasceu e foi formada segundo o texto cristão. E isso é verdade não só na textura intrínseca do tecido da sociedade como também na própria forma de compreender e interpretar a realidade."

 

António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 62.

TEMPO DOS MODERNOS

 



"É este o tempo dos modernos, um tempo de Inferno, aquele que se vê a braços com a impossibilidade de reconhecer o presente (aliás, a determinação mais terrível do tempo infernal n' A Divina Comédia). O tempo moderno é o da repetição, a vertigem de uma queda que nunca chega ao seu termo (e isto já está bem caldeado na experiência barroca do tempo). Por isso a repetição e novidade são dois nomes para dar conta do mesmo. O que é novo, o que é mais novo, é uma vez mais uma versão dos castigos do Inferno da repetição."


Maria Filomena Molder, O Químico e o Alquimista - Benjamin, Leitor de Baudelaire, Lisboa: Relógio D' Água, 2011, p. 128. 

Tuesday, October 15, 2024

GOZO

 



"A vida no alto cativa,
que é a vida verdadeira,
até que esta não nos queira,
não se goza estando viva.
Não me sejas, morte, esquiva;
só p'la morte hei-de viver,
que morro por não morrer."


Santa Teresa de Ávila, Seta de Fogo - 22 poemas, 2ª ed., trad. José Bento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 31.

Sunday, October 13, 2024

VICTORIA VIRGO ET MARTYR

 



"Tal como o Sol se perpetua e brilha
transladando os objectos e os corpos
para o radical equilíbrio dos climas e das temperaturas
assim a palavra no texto se estrutura e associa
às emoções e aos sentimentos a conjectura dando
de um aparente equilíbrio
que nos tabuleiros da sorte a morte ainda se iluda.
Letra a letra conquista-se assim o domínio
ao mesmo tempo que a metáfora
o continente recobre as suas asas, fuscas.
O Sol, por muito que irradie,
não apagará os últimos vestígios
(o rosto que se oculta por detrás da estrutura).
Porque se a escrita a adia
a morte, essa, não a esquece nunca."


Fernando Guerreiro, Metal de Fusão, Black Sun Editores/100cabeÇas, 2023.

Saturday, October 12, 2024

MANIFESTAÇÃO

 


"Eu diria que no tempo de S. Cipriano, a vida interior não atingira ainda a intensidade e os matizes que pode atingir nos nossos dias. Era um mundo mais simples: um mundo de imagens e de acontecimentos exteriores. O homem estava habituado a uma relação muito directa com a realidade. Em certo sentido diria que a própria expressão do misterioso se foi modificando da simplicidade e da ingenuidade de então para a complexidade e a desconfiança com que hoje a encaramos. Nunca é demais citar a frase de Chesterton: «A razão porque os fantasmas abandonaram os velhos castelos da Escócia é porque as pessoas deixaram de acreditar neles.» Isto significa, por outras palavras, que havia no homem uma conformação especial para comunicar com o misterioso e o oculto que inteiramente perdeu. Isso não significa que o misterioso e o oculto tenham sido banidos do real mas que se manifestam doutra maneira."


António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã, Lisboa: Editorial Presença, 1988, pp. 62-63.

Friday, October 11, 2024

OUTUBRO

 



"Outubro
mês dos figos maduros
da perfeita tranquilidade
mês
em que das eiras
perdigueiros correm para os currais
e dos currais se ouvem as éguas
outubro
mês dos patos nos ribeiros
mês das serras, das perdizes
dos ferreiros, das cegonhas
das paisagens, das feiras com queijo
do sr. sebastião e dos alpendres
outubro
mês dos meus avós vivos
levando-me a ver os moinhos de água"



Daniel Maia-Pinto Rodrigues, O Afastamento Está Ali Sentado, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 119.

Thursday, October 10, 2024

IMOBILIZAÇÃO LETAL

 


"Se a forma se atreve a anular as forças do caos, não é menos evidente que as forças, insubmissas, retornam. Sempre que acreditamos poder anular o caos, operando a sua superação definitiva, ficamos presos àquilo a que poderíamos chamar uma forma morta, isto é, aquela que se petrifica numa falsa configuração, assentando no mal-entendido que consiste em confundir a força com o inimigo da forma, uma vez que o inimigo da forma não é a força, antes a sua imobilização letal."


Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, pp. 152-153. 

Monday, October 7, 2024

CASTELO

 



"Cerquem-me de tojos.
Embora!
Esperarei suas flores amarelas.
Em Agosto
maior será minha ânsia de vê-las."


João José Cochofel, Obra Poética, Lisboa: Caminho, 1988, p. 80.

Sunday, October 6, 2024

SUBTIL

 



"O demónio terá de ser outro porque nós nos viemos transformando. Por isso o demónio hoje é subtil, tortuoso, enigmático, enganador. E cá vai a frase de Baudelaire que é obrigatória sempre que se fala no diabo:« La plus  belle ruse du Diable est de nous persuader qu' il n'existe pas.»"


António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 37. 

Saturday, October 5, 2024

CINCO DE OUTUBRO

 




"Toda a terra é
boa para viver
um outono doce
cor da liberdade,

do sol e do vento,
dos lumes da noite,
de tudo o que é bom
ter por companhia,

tudo o que afugente
este pesadelo
de envelhecer

com as mãos vazias
do peso secreto
de outras mãos nas minhas."



João José Cochofel, Obra Poética, Lisboa: Caminho, 1988, p. 158.

Friday, October 4, 2024

SÍMBOLOS

 


"E se bem que se ele se esforçasse por esconder e dissimular aqueles Estigmas gloriosos, tão claramente impressos na carne, e como, por outro lado, via que mal podia dissimulá-los perante os companheiros, e temia no entanto desvendar os segredos de Deus, caiu em grande dúvida: deveria ou não revelar a visão seráfica e a impressão dos Estigmas? "


Florilégio, trad. M.F. Gonçalves de Azevedo, Lisboa: Estampa, 1991, p. 188. 

Thursday, October 3, 2024

LIBERDADE


 

"Num vislumbre, vi-te isolado na minha decisão. O que tomei por apaziguamento, era cepticismo errante. O espírito, voluptuoso, pode descentrar-se da sua imediatez, procurando na eclosão uma forma de vida superior. Indolente de ti, ausente, pudesses tu compreender que a angústia-lava, aquietada, é liberdade."


Ana Marques Gastão, Lápis Mínimo, Lisboa: Oceanos, 2008, p. 78. 

O PASSADO E O PRESENTE

 


"Passado e presente não são, por consequência, conceitos fixados, eles despontam e apagam-se um em favor do outro, enquanto formação e nostalgia produtiva; por isso, não temos de ir buscar a uma terra mais ou menos longínqua, mas sempre à nossa mão, o que quer que seja, para guardarmos nos cofres da nossa cas: a recordação, como gesto constitutivo de uma decisão exterior ao tempo sobre o tempo, não é aceitável em Goethe; por isso, nenhum louvor da novidade, todo o amor vai para o que é eternamente novo."


Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 56. 

Tuesday, October 1, 2024

COMO A SENTINELA

 


"Desde que me coloquei nos braços de Jesus, sou como a sentinela observando o inimigo desde o mais alto torreão de um castelo. Nada me escapa  ao olhar; muitas vezes admiro-me por ver tão claro, e acho o profeta Jonas digno de desculpa, por ter fugido em vez de ir anunciar a ruína de Nínive."


Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face,  História de Uma Alma - manuscritos autobiográficos, Paço de Arcos: Edições Carmelo, 1995, p. 303. 

Monday, September 30, 2024

GUARDAR SILÊNCIO

 



"Depois da pequena nenhuma alegria
dos emails recebidos,
plenos de palavras fechadas
com trinco,

ergui-me muitas vezes,
num tempo duvidoso, lamacento,
e as janelas da casa abri;

mas sob o traçado da folha de papel
devo guardar silêncio
de paisagens submersas,
de noites acesas pelo clamor dos
cigarros
esmagados na mesa?"



Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 52.

LÂMPADA

 



"Não sou fio de Ariadne,
estrela de David,
escada de Jacob ou
sombra de Virgílio.
Todavia, irmãos humanos,
dificilmente encontrareis
quem vos queira tão bem,
guiando-vos pelo dédalo do quarto.

Ainda que um simples gesto apague
o meu rasto no mundo,
o dia em que eu nasci permaneça
na memória da noite,
na solidão das janelas,
no abraços dos amantes."



Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 260.

Sunday, September 29, 2024

BATALHA

 



"Pedi-lhe que recitasse para mim. Miguel e os
anjos batalhavam o dragão. Eu vi subir
o mar sobre a areia do mar.
Veio semelhante ao leopardo e o
dragão deu-lhe o seu poder.
A serpente lançou para longe a ponta das
estrelas.
Varria ramos trémulos, vozes de crianças,
anjos feitos céu e folhagem. O rumor de gente que
passava. Tombou entre as penas do sono
move as folhas derrama caridade ao sombrio
passeante restos de coisas algum cão perdido."



João Miguel Fernandes Jorge, "Tronos e Dominações", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 63.

ARCANJO

 




"Tinha a vida do mar. Perdiam-se as naus
pelo brilho da balança
nem calma ou lágrimas limpavam os seus olhos.
Bebeu café quente nas areias do deserto
Mojave. O rosto era semelhante à noite.
A porta tinha vários fechos. O tempo foi
destruindo uns e colocando novos.
A espada tornava à noite."



João Miguel Fernandes Jorge, "Tronos e Dominações", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 60.

Saturday, September 28, 2024

TRIUMFAES

 



"Vês, na atalaia d' essa antiga fortaleza,
Aquele veterano, inválido, alquebrado,
Que, n'um sonho, revive as glórias do passado,
As batalhas triumfaes de homerica grandeza?

Pondo-lhe a fronte e o olhar reluz-lhe sem viveza;
Mas, se vê um pendão, que passa desfraldado,
Ou escuta um clarim, o trémulo soldado
Ergue a cabeça e o torso apruma com firmeza.

É como o velho herói meu velho coração!
Já fraco e sem ardor, depois de tanto amar,
Só vive de saudade e de recordação...

Mas, se passas por mim, no teu gracioso porte,
E, n'um claro sorrir, me envolve o teu olhar,
Logo o sinto, cá dentro, a palpitar mais forte!"



Luís de Magalhães, Antologia Poética, selec. José Valle de Figueiredo, Maia: Edição da Câmara Municipal da Maia, 1998, p. 209.

Friday, September 27, 2024

A FORÇA DE UM MUNDO VIVO (para a memória de Maggie Smith)

 




"Nem o vestido mais leve
substitui a frescura da madrugada.

O fogo cresceu à nossa volta,
e a macieira não lhe resistiu.

A casa manteve-se alta por dentro das flamas.
Os cães aflitos uivaram as primeiras noites.

E recordo: estranhos em casa,
rodeados por labaredas e desastres.

Mas serve-me o vestido
para lembrar a brisa, os lugares.

Teremos de reaprender a plantar,
a reanimar a paixão pelos vales,
a chamar de novo para cá os tordos.

Não se possui a terra. Habita-se nela.
Repara, dou-te sementes para recomeçar.
Esta é a força de um mundo vivo."


Elisabete Marques, Estranhos em Casa, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 58.

IDEIA ESTÉTICA

 


"Atrás do símbolo o que é que está? Coisa nenhuma, em rigor. Antes, um estiramento do desejo, um querer dizer que não se fixa em nenhum pensamento determinado, mas que se vaza numa imagem originária, pairante, diz Kant, e de que podemos seguir os vestígios da sua irradiação na obra de arte e, também, o que não é demais sublinhar, nos conceitos filosóficos, que devem ser, assim, considerados formas simbólicas. No caso da obra de arte, essa imagem pairante é designada por ideia estética."


Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 17. 

Tuesday, September 24, 2024

QUARE ANIMA

 



"Por que razão a alma pode muitas vezes ser enviada da amada ao amado e do amado à amada?
É porque, segundo o testemunho de Séneca, «a alma encontra-se mais verdadeiramente onde ama do que no corpo que anima."


Anónimo de Erfurt, Tratado do Amor Verdadeiro - Tratactus de Vero Amore, trad. e ed. Sérgio Guimarães de Sousa e Luciana Braga, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, p. 41.

Sunday, September 22, 2024

EQUINÓCIO

 



"Hora-Abandono. Um desbotar de seda. 
Hora em que a Paisagem, de cansaço
Se encosta no luar que lhe dá o braço
E as árvores choram folhas na alameda.

Nódoa sem medo. É um passar a mão
Pelas franjas dum quieto reposteiro
Numa sala fechada. Cavaleiro
Que de falar na Cruz é mais pagão.

É como se a um menino se entregasse
A Paisagem doente pra brincar
E a desfolhá-la toda começasse.

Mão nervosa que aperte e que não cesse,
Boca que se entreabrisse pra falar
E que um gesto de Deus a emudecesse."



Alfredo Guisado, Tempo de Orfeu, Coimbra: Angelus Novus, 2003, p. 131. 

LAUTO

 




"Servia-se leitão assado, cujos tassalhos fumegantes exalavam um delicioso aroma. Duarte Vilares, que fora o primeiro a provar o acepipe, declarou sinceramente estar ali um manjar digno dos deuses e que, de facto, não podia morrer um país onde se preparavam tão saborosas iguarias. Só são grandes e duradoiros os povos que comem bem. A superioridade da Inglaterra, por exemplo, residia, não nas qualidades morais dos seus filhos, mas no «roastbeef» e no «jambon de York». A Itália fora batida na Abissínia porque as suas tropas de alimentavam a macarrão; e na alimentação depressiva dos chins, unicamente constituída por grãos de arroz, estava o segredo da vitória japonesa. Portugal vencera sempre, no continente, na Índia e no Brasil, porque levava no seu arsenal de guerra os grandes manjares suculentos, desde a orelheira de porco ao bacalhau com todos os matadores...
- E a derrota de Alcácer Quibir? - interrogou Énio Marinho.
- Foi a consequência de uma debilidade momentânea. Nada de aquilo teria sucedido se os soldados em vez de dez mil guitarras, tivessem levado dez mil farnéis."


Campos Monteiro, As Duas Paixões de Sabino Arruda, 2.ª edição, Porto: Livraria Figueirinhas, 1961, p. 175.