Saturday, December 21, 2024
ANIVERSÁRIO
Friday, December 20, 2024
A ASA DO TEMPO VOANDO PASSA
Que disseram da Lua eras antigas.
De fábrica mourisca se alevanta
Castelo hoje em ruínas derrocado.
Escassa ameia vês em pé suster-se
No escalavrado muro. Já trabucos,
Dos séculos depois vaivém mais duro
Pelas íngremes rocas dispersaram
As pedras que talhou a mão dos homens
Outrora dessas rocas, para alçá-las
Em torreões de morte: - ímpia fadiga
Trabalho improbo e duro! A asa do tempo
Voando passa, e varre a obra do homem
De sobre a face da esquecida terra."
Almeida Garrett, Camões, canto nono, IV, Lisboa: Editorial Comunicação, 1986, p. 172.
Thursday, December 19, 2024
MALOGROS
"A literatura não era o instrumento menos importante de que se servia tal propaganda: exaltava sabiamente a antiga grandeza de Roma, transformava os malogros em triunfos, apagava as derrotas. Repetida em inscrições altaneiras, monumentos, poemas, narrativas históricas, a grandeza tornava-se uma obsessão à qual os jovens bárbaros dificilmente resistiam. Eles queriam por sua vez parecer-se com os Romanos, mas, ignorando os antigos, só os de hoje podiam imitar: rejeitavam, porque as mulheres se riam deles, seus adornos rudes e sem graça, e, para lhes agradar, esforçavam-se em parecer semelhantes aos favoritos do Imperador; esqueciam os seus heróis e seus deuses, arrebatados pela voluptuosidade e pela sedução da fama. Na realidade, só podiam perder com estas trocas, pois despojavam-se das virtudes bárbaras sem adquirir as qualidades romanas e contentavam-se com imitar pormenores artificiais, a forma de se pentear e de usar a toga ou pronunciar certas palavras. "
Marcel Brion, A Vida de Átila, trad. Augusto Costa Dias, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1959, p. 33.
Wednesday, December 18, 2024
ANIMAL FEROZ
Marcel Brion, A Vida de Átila, trad. Augusto Costa Dias, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1959, p. 19.
PÁTRIA
"Cortejo pelos deuses
convocados e abolidos,
expectantes, mudos,
velam pelo voo dos drones
e pelas armas de laser,
no assalto mongol e levantino
ao Elísio Ocidental, aos blessed states,
à terra do nunca do hedonismo,
à vida vegetativa e virtuosa,
aos baluartes invisíveis, virtuais,
defendidos por mísseis Patriot:
a noção de pátria que colapsa
às mãos do chefe imediato e do cacique,
a dona do largo e o ditador a dias,
sob a pálpebra que se fecha
nos satélites atingidos pelo fogo solar."
Paulo Teixeira, A Boda dos Tempos, Lisboa: Língua Morta, 2024, p. 39.
Tuesday, December 17, 2024
FAZÊ-LOS ASPIRAR O SEU PERFUME (para a memória da divina Marisa Paredes)
"Nesta fase do percurso, há que docemente aprender a acariciar a louca que existe dentro dela respeitando a liberdade de o ser, sabendo também sê-lo no meio dos homens, narizes dos outros, fazê-los aspirar o seu perfume sem que o compreendam. Espalhá-lo, simples e discreta, e lentamente ir observando o que acontece."
Risoleta Pedro Natálio, O Aniversário, Lisboa: Difel, 1998, p.51.
Monday, December 16, 2024
INFINITA FIGURA
Companheiro impassível. Deserto
de qualquer criatura.
Tocador de instrumentos cinzentos.
Adejante penumbra nos ventos.
És de pedra. Infinita figura.
Se tens voz - a memória te escuta.
Se tens forma - a memória te oculta.
Tocador de instrumentos cinzentos.
Estás nos olhos, nos lábios de alguém
que te espera e não sabe que tem
os teus dedos nos seus movimentos."
Natércia Freire, Obra Poética, vol. I, Lisboa: INCM, 1991, p. 153.
Sunday, December 15, 2024
ORGANIZAR
"Uma preocupação começa no entanto a tomar forma. Como nos organizamos neste caos de pensamentos de que somos feitos? Passamos de minuto a minuto do pensamento mais contraditório para o seu oposto e todos levamos a sério como se nós próprios fôssemos constituídos de múltiplos seres fragmentados, mudando de eu a cada momento. Como organizar o caos?"
Risoleta Pedro Natálio, O Aniversário, Lisboa: Difel, 1998, p. 25.
Saturday, December 14, 2024
O CÉU E O INFERNO
Risoleta Pedro Natálio, O Aniversário, Lisboa: Difel, 1998, p. 25.
Wednesday, December 11, 2024
SINA
" João - Isto em mim é a minha sina. O que quer a senhora?D. Joana - Ah! não, não... não diga isso, João. Neste mundo não há sinas nem para o bem nem para o mal. Dores todos as sentem, lágrimas todas as choram e risos... vamos, também não há alma tão atribulada, que não tenha conhecido o prazer que dá uma alegria verdadeira."
Júlio Dinis, "O Bolo Quente", in Teatro I, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, pp. 12-13.
Tuesday, December 10, 2024
PALCO
"Europa -isca e -fetiche,
arena para os desejos todos,
obstruída por cordão sanitário
na sua torre de vidro transparente,
informe, fragmentária, as nações partidas
em pedaços para mais fácil deglutição,
arde no tempo da extensa flor canicular.
Entregue aos senhores da sequência
e da permutação, dos jogos fúnebres,
um palco para as cenas transformadas."
Paulo Teixeira, A Boda dos Tempos, Lisboa: Língua Morta, 2024, p. 47.
Monday, December 9, 2024
FIN DE SIÈCLE
"D. Joana - Olhe lá, Francisco, não ponha na mesa vinhos muito fortes nem comidas indigestas. De noite é preciso toda a cautela. Não me agradam nada estas ceias. É isto que estraga por aí tantos rapazes que, aos vinte anos, já andam cheios de achaques, como se fossem velhos... Quem é este rapaz?"
Júlio Dinis, "O Bolo Quente", in Teatro I, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, p. 11.
Sunday, December 8, 2024
CONCEPÇÃO
"Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!
Que te seja propício o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a terra e o mar,
P'los séculos dos séculos sem par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor!
Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de oiro e de veludo.
Ah! esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a Eternidade!..."
Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 181.
Saturday, December 7, 2024
TEMPOS DE PRECARIEDADE
"Tempos de precariedade
de abundância de ironias.
É tudo tão suspeito:
vaguear em retrato de poeta
andar por aqui a pé
na cisma suburbana
- e bastar um lampião
para extinguir milhares de estrelas."
Carlos Poças Falcão, Coração Alcantilado, Guimarães: Opera Omnia, 2007, p. 32.
Friday, December 6, 2024
CONSTRUÇÃO
"E, depois,o facto de irmos e virmos, e de partirmos de novo, lembra-me um caminha no labirinto. Ora, creio que o labirinto é por excelência a imagem de uma iniciação... Por outro lado, considero que toda a existência humana se constitui por uma série de provações iniciáticas; o homem constrói-se a partir de uma série de iniciações inconscientes ou conscientes. Sim, penso que o título exprime muito bem o que se passa comigo diante do gravador; mas também me compraz devido a ser uma expressão bastante justa, penso, a respeito da condição humana."
Mircea Eliade, A provação do labirinto - conversas com Claude-Henri Rocquet, trad. Luís Filipe Bragança Teixeira, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, p. 27.
À GUISA DE VITRAL
"na mão a faca luminosa
a mulher dirige-se
pla ogiva do portão
à guisa de vitral
o sangue faz-se vinho
no avental às flores as manchas
o vinho faz-se fel
no vívere morto separam-se os intestinos
jaz ainda quente o corpo
nas lajes o sol cai
na mulher exacta, o suor
cujas vértebras coladas contra a camisa."
Ana Paula Inácio, As Vinhas de Meu Pai, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2000, p. 25.
Wednesday, December 4, 2024
UM ABERTO SEM FIM
"Um aberto sem fim sustém o hábito
que incita o intelecto
a mais longe elevar o empenho. O acto
que maior expandir o seu deserto.
Que só o deserto alicerça. Quanto
dele partir demandará o excesso
de cada coisa difundindo o campo
do seu vazio instituído dentro.
E tudo se dirige para o espanto.
E este toma o seu esplendor de vento
que cresce imóvel. E se torna espaço
onde só pulsa o horizonte aberto."
Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 264.
Monday, December 2, 2024
PRODUTO ONÍRICO
"Há diamantes em bruto soltando-se do inconsciente pela noite, que tenta na tela agarrar e transformar em preciosas pérolas. Os sonhos. São o produto onírico de um Deus, brutos diamantes distraídos da sua verdadeira natureza. Só pela intuição, lá chegaremos. O mesmo tentam alcançar os loucos, os artistas, as crianças, os visionários, os santos e os grandes pecadores. Não há gente mais preciosa neste mundo que... toda a gente. Não há para o santo, ser mais necessário que o pecador, seu outro lado. Como pensar a existência de um sem o outro? As duas faces da mesma moeda. Talvez por isso um santo houve que todas as manhãs, e noites, ajoelhou e agradeceu a Deus o ter semeado no mundo.. o pecado. E não se contentava em fazê-lo assim, ajoelhava também ao meio-dia, e no meio-dia das noites, pedindo a Deus a benesse de mais pecadores ainda. Um santo não se cansa da virtude. Ela nunca o satisfaz; é-lhe tão dependente, que se torna cada vez maior a sua necessidade de pecado, pois sem este não alcançaria o seu reverso."Risoleta Pedro Natálio, O Corpo e a Tela, Lisboa: Hugin, 1997, pp. 81-82.
Sunday, December 1, 2024
PRIMEIRO, DE DEZEMBRO
"Dá-lhes a paz. Um carrilhão repleto,
de repente só flor dominical
a que o limbo de luz de cada objeto
devolva o júbilo da paz geral.
Dá-lhes a paz. Ondículas a celha
dominem no bordo nupcial
de correnteza, onde, um momento, a abelha
cruze de sol e hesite, musical.
Dá-lhes a paz. E ainda a paz. E ainda
celhas e carrilhões e, em cada lado,
água que abunde pela terra infinda
de música e de mel. E um ar dourado
rumoreje de trigo pela quinta
de perpétuo domingo consagrado."
Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 209.
Saturday, November 30, 2024
SENHOR DA CAMPA
"De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando."
Vinícius de Moraes, O Operário em Construção, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, p. 120.
APREENDER
"Dizem os físicos que inicialmente havia o caos, mas não é verdade. O caos persiste nos meus braços e nas minhas pernas, sou uma espécie de substância atómica distraída da estabilidade necessária.
Às vezes, olho-me por dentro, tentando apreender o pensamento de algum Deus que eventualmente por aí exista, e se assim é, será um pensamento obrigatoriamente caótico, disperso, criativo, hesitante, irónico e cruel. Irritante. Um pensamento de criança. Igual ao do mundo. Igual a mim."
Risoleta Pedro Natálio, O Corpo e a Tela, Lisboa: Hugin, 1997, p. 34.
Thursday, November 28, 2024
POUSIO
"Pousou, de súbito, o frio.
E apareceu um lugar
que era só seu próprio limbo.
Ou uma pausa. Da qual
avultava o fora íntimo
e abria uma espécie de ar.
Que parava. Para o brilho
ir caindo. Se apagar
de forma a fundar-se um sítio
cujo horizonte se vai,
insensível, retraindo.
Recolhendo-se. Por trás
talvez se confundam bichos
e alheiem matagais
na letargia de um ritmo
que prepara o ir nevar."
Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 129.
NOVEMBRO
"Novembro atinge aquela transparência
que se enreda nas árvores, de sorte
que apareça nos troncos a tristeza
feliz de quem os olhe.
E os ramos por onde trepa
ainda a lenta circulação da noite
retém retículas, e a análise discreta
do deslumbrado ver com que se doure.
Assim, Novembro reina.
Mas, se por acaso, chove
somos Novembro reclinado à beira
da transparência que confina a morte."
Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 124.
Tuesday, November 26, 2024
CREPÚSCULO
"Oh tu: sombra perdida numa reminiscência
de céus selados na minha memória: ti, que
um passado desejo despertas na maturação
dos bosques - de onde se elevam os fluidos
húmidos do crepúsculo - e que ao ameno
Sul emprestas o amargo traço de um rosto noc-
turno: dar-me-ás esse véu de palavras
mortas sob as argilas negras do inverno?
Esse cansado impulso de ser num vestígio
de voz - sudário sopro de que vago murmúrio?"
Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), Lisboa: Quetzal, 1991, p. 275.
Monday, November 25, 2024
SOPRO
"Soprou: não te aproximes
dos deuses
sem te acautelares. Ampara
o que não pode
senão amassar
o oculto pão da recusa.
E bebe, infinitamente
bebe
o estrondo repetido
de cada gota
caindo."
José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 71.
Sunday, November 24, 2024
FERMOSA
"Ficou despois de morta mais fermosa do que dantes era, pelo que a puseram aonde fosse vista de todos e as mulheres da vila a vinham ver, tocando algumas coisas em seus pés, as quais guardavam por relíquias, porque tinham por mais certo que estava sua alma na glória"
Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 185.
Saturday, November 23, 2024
UM TEMPO DE ESTRUTURA FRÁGIL
"Andando foram. E, depois de andarem,
com a noite a chegar pelo caminho,
abriu-se um tempo de estrutura frágil
que poderia acompanhar os rios.
Aí, parar era possível. Árvores
sugeriam o sono. Mesmo o ritmo
acomodava o lucilar da margem
à sede vagarosa com que os bichos
pungiam o costume dos lugares.
E os deixavam a anoitecer no brilho.
Pararam por ali. Já era tarde.
Passara o tempo a aparecer antigo."
Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 50.
Friday, November 22, 2024
DENSIDADE
"Puro é o deserto. Porque só mensura
a antiguidade de estar
sendo o em si mesmo. Que pulsa
por um tempo que é quase que sinal
de apenas longe a dilatar a sua
profundidade. Onde vai arredondar-se
essa expansão segura
que sitia um quase virtual
retraimento de matéria. E uma
densidade nem quase material.
Mas o deserto insiste. Indiferente à altura
e à idade arcaica das formas animais."
Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 39.
Thursday, November 21, 2024
RENTAVA
"O sem sítio rentava o onde arcaica
havia a massa de se instaurar, e em sítio.
Nem o ainda media. Nem mais nada
senão silêncio. Para, depois, o brilho
de um prelúdio em negrura iniciática
concentrar a vertigem do vazio.
Depois ainda, foi a vertigem estaca.
Que a vacuidade prévia pegou brio
e estrondo. De onde apareceu a massa
de uma força que sacudia em ciclos
a glória desastrada
que recomeça na dos cataclismos.
E a tudo presidia, não palavra,
mas o silêncio na palavra inscrito."
Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 10.
Wednesday, November 20, 2024
ENCONTRO
Tuesday, November 19, 2024
COBERTA
a parede
devolve-me os mortos,
tempo e sombra subindo
no quarto, equações
rangendo, postigo
de sangue apertando
a abordagem do susto."
José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 127.
SOUCIS
"Que nada te perturbe: rumor,
trabalho, a carne
peregrina da terra
imersa na escuridão, o
salto
que o poema pode
desenhar. Ne te fais pas
de soucis, come
a lanterna dupla
do riso, sobe
os andaimes das equações
e lambe, sobretudo
lambe
as privadas lágrimas
do sofrimento."
José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 152.
Sunday, November 17, 2024
ROCHA ALTA
"Já a Pastora chegava ao alto cume
Da serra, onde é mais alta a penedia,
Dond' o olho abaixo olhando, perde o lume,
E entr' ela, e el-Rei só a lança se metia.
Já lhe chega o Tirano, e já presume
Que nem em terra, ou Céu lhe escaparia,
Quando COMBA gritou: ó rocha alta, onde
Venho buscar abrigo, em ti me esconde.
Ó Maravilha grande! abriu-se a dura pedra.
Obedeceu à Santa a rocha dura,
Obedeceu à Santa, e abriu-se a pedra,
E defendeu-a da cruel ventura.
Também a lança do Mouro abriu a pedra,
Ao pé fica assinada a ferradura,
Ao pé da rocha, onde hoje inda parece,
E na pedra a lançada se conhece.
Tanto que em si recolheu, cerrou-se
A dura rocha, assim de Deus mandada."
António Ferreira, Poemas Lusitanos, vol. II, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 29.
DORMITÓRIOS
"Não se diz no letreiro que morreu de vinte e um anos, senão que os viveu, porque quem morre ao mundo sempre vive pera Deus e assi nunca morre, e foram, como está dito, seus anos vinte e um, bem poucos a respeito de muitas virtudes que já tinha alcançado; pelo qual em o mesmo letreiro se lhe aplica o que lemos de Enoc no livro do Eclesiástico, isto é, que brevemente cumpriu muitos tempos. Diz mais: que dormiu em paz, porque os mortos hão-de ressuscitar com tanta facilidade das sepulturas como os que dormem de seus leitos e por isso os adros são chamados cemitérios, que é o mesmo que dormitórios. Quando lemos que dormiu em paz, podemos coligir que teve a morte dos justos, que andam na vida sempre diante de Deus, até que no fim se vêm a unir e abraçar com Ele e a descansar em paz, como pedimos nas exéquias de nossos defuntos, sabendo que são bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor"
Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 102.
Saturday, November 16, 2024
VOAR
"Quero voar
sem qualquer depois, esquecer
a fome das manhãs, a
incansável
desdita respiratória. Houve
um falso acordar
um dia, pequeno
relâmpago nenhum."
José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 118.
Friday, November 15, 2024
SILÊNCIO NEVRÓTICO
"Tudo é um branco demasiado vago
na tarde imensa...
A árvore do tédio exala um calor ébrio
que abre o pano do medo
e aprofunda as feridas do tempo.
A rotina com a sua cor sem memória
elogia os vultos que afagaram o Outono.
Estende a cidade na poeira das sombras.
Eu vagamente bêbado de incertezas
deponho o meu fantástico desprezo
na tristeza redonda do momento.
E deixo-me morrer
na curva austera dum silêncio nevrótico."
José Bação Leal, Poesias e Cartas, Porto: Tipografia Vale Formoso, 1971, p. 28.
Thursday, November 14, 2024
SÓ POR DENTRO
"Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração."
David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 178.
PRAESIDIUM
"Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!"
David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 179.
Monday, November 11, 2024
FUGIDIA
"A verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento. «A verdade não nos foge»: esta fórmula de Gottfried Keller assinala, na concepção da história própria do historicismo, precisamente o ponto em que essa concepção é destruída pelo materialismo histórico. Porque é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela."
Walter Benjamin, O Anjo da História, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 11.
Sunday, November 10, 2024
ACREDITAR
"Conceição tinha outro, de que dizia maravilhas: As Tristezas à Beira Mar. E, lentamente, foi-se estreitando entre ambos uma amizade nova, cimentada em mágoas e alegrias colhidas nos romances. Uma vez, Ramiro perguntou a Conceição se acreditava em tudo o que os romances diziam. Ramiro disse-lhe que sim: que os romances eram mais verdadeiros que a vida, pois apenas se contavam neles tristezas e desgraças, e tristezas e desgraças eram a única coisa verdadeira que o homem encontrava neste mundo."
João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 309.
Saturday, November 9, 2024
ELEGANTE FIGURA CÉNICA
"Depois já será tarde
para te alcançar no caminho por onde avanças.
Aguardo aqui sentado sentindo o afastamento,
procuro calcular bem os tempos e as distâncias,
as capacidades locomotoras dos meus passos
ou até da minha corrida lesta
ao longo desta paisagem ocelada e formosa.
Mas no fundo o que me interessa
é o cálculo e não a prática,
ou quem sabe depois exercite a prática, em
elegante figura cénica,
após o cálculo de
já não te encontrar no caminho."
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 344.
VER NASCER A CLARIDADE
"Vem ver nascer a claridade
ver a sombra transformar-se em lume. Como
sabes, sou sempre novo
e falarei em cores
para poderes colorir as camélias."
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 298.
Tuesday, November 5, 2024
PAUSAS DE LUZ
Sunday, November 3, 2024
ABISMADO
“Onde acabava o céu e começava a terra? E as árvores rumorejavam, os ralos cantavam – um estrépito novo, profundo, incessante, enchia a noite. Ficou um momento debruçado, escutando a amplidão sonora: invadiu-o uma tristeza diferente de todas as tristezas. Sentiu as lágrimas rolarem-lhe pelas faces. Dir-se-ia que a vida acabara para ele. Como era possível uma pessoa ficar assim de repente como morta, tão longe de tudo que amava? Entre o ser debruçado daquela janela e aquele que momentos antes se abraçara a chorar ao pescoço do pai já não havia relação alguma. Tudo o que até então se lhe afigurara a vida – a sua própria vida – era agora uma coisa tão distante como os montes que costumava fitar, abismado, do alto do Castelo de Leiria. Imaginava que para além ninguém podia ser feliz: era como se o mundo acabasse ali e depois fosse a frieza desolada de um planeta morto. Nesse planeta habitava agora.”
João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 22.
Saturday, November 2, 2024
DIA DOS MORTOS
«Ó Nada, mais velho até que a Escuridão
Já existias mesmo antes da Criação
E és o único que não teme a extinção.
Antes de haver Espaço e Tempo, não havia tal.
Quando o Nada Primitivo criou algo natural,
Tudo – o quê? - se gerou da união original.
Mas teu poder foi comandado por algo profundo
Que da tua mão, cheia de um vazio fecundo,
Fez homens, bichos, fogo, água, ar e mundo.”
Friday, November 1, 2024
SONETO DE OUTONO
Thursday, October 31, 2024
ALL HALLOWS'
"Por esta altura, já pouco mais havia a fazer senão rematar toda aquela conduta com uma orgia na qual as bruxas e os feiticeiros copulavam livremente e se ofereciam ao exigente Diabo, que gostava de tomar as mulheres bonitas pela frente e as feias por trás. Do ponto de vista feminino, Satanás não era o amante ideal, como testemunhou Jeanne d'Abadie, de dezasseis anos, «porque o membro dele era escamoso e causava grande dor. Para além disso, o seu sémen era extremamente frio de modo a que ela nunca engravidasse dele...»."
Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 40.
Wednesday, October 30, 2024
O CONHECIMENTO
"O conhecimento do nosso infortúnio é a única coisa em nós que não é desafortunada."
Simone Weil, A Experiência de Deus, trad. Ana Cardoso Pires, Lisboa: Relógio d' Água, 2024, p. 60.
A VIDA É UM MILAGRE
"A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
À consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."
Monday, October 28, 2024
VESTÍGIO
"Há uma ambivalência em relação a este assunto. Reconhecendo que todas as coisas desejam persistir na sua própria natureza, muitos preferem sobreviver à morte de qualquer modo, sentindo-se portanto consolado com a noção de uma entidade benigna e sem corpo. Para além disso, sempre que um companheiro ou familiar morre, há uma tendência natural para pensar nos laços de amor e amizade que se romperam e na possibilidade de persistir ainda algum vestígio em forma de fantasma."
Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 21.