"Ele ganha e, contente, leva consigo a pedra vermelha com que sonhou. O orvalho do céu com que sonhou."
"Enigmas Maias", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 48.
"Ele ganha e, contente, leva consigo a pedra vermelha com que sonhou. O orvalho do céu com que sonhou."
"De corpo silencioso
estás junto a mim na areia,
superestrelada.
.............................................
Quebrou-se algum raio
para chegar até mim?
Ou foi um bastão
que sobre nós quebraram
que vejo cintilar?"
"Esperamos na obscuridade.
Vinde, vós que escutais, vinde
saudar-nos na viagem nocturna:
nenhum sol agora brilha,
nem luz agora nenhuma estrela.
Vinde, ó vós, mostrar-nos o caminho:
que a noite secreta é inimiga,
a noite que fecha as próprias pálpebras.
E eis como a noite inteiramente nos esqueceu.
E esperamos, esperamos na obscuridade."
"É tão depressa dia e nada nos redimeRuy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, 5ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 98.
Alguém não despertou ficou na noite
Vieram de manhã uns homens que varreram
a restante alegria destas ruas
A criança na roda entoará:
estão hoje fundos os pássaros
estão hoje fundos os pássaros
quem no-los tirará de lá?
Tão vasta como o mar a nossa dor
alguém nos poupará de nela naufragar?"
"Y concluye el párrafo con un pomposo elogio de la fabrica en que dice «que no se encuentra en ella ninguna hendidura ni alteracion y que es obra magna, admirablemente labrada, espaciosa, clara, de correspondente extension, latitud, longitud y altura conveniente, que se le mira como obra admirable é indescritible y doble como real palacio, y por último, que quien sube triste á las naves del palacio, la soberbia vista de la hermosura del templo le pone alegre y contento.»"
" - Moito sabés, miña vella,
moito de sabiduría!
Quién poidera correr mundo
por ser como vós sabida!
Que anque traballos se pasen
aló polas lonxes vilas,
tamém qué cousas se sabem!,
tamén qué cousas se miran!
- Máis val que n'as mires nunca,
que estonces te perderías:
o que ó sol mirar precura
logo quedará sin vista!"
"Mas este filho real
não foi nos céus embalado,
não teve ouro, nem brocado,
nem teve régio enxoval.
As nuvens não o enfeixaram
nos seus mantos de cetim.
Nem as estrelas lhe cantaram,
junto ao berço de marfim.
Não lhe mandou Deus enfeite
em uma salva dourada.
- Teve as pérolas do leite,
- e o orvalho da madrugada!
Não lhe cantaram cantigas
os sóis, para o adormecer.
- Teve o ouro das espigas,
- e os rubins do amanhecer!
Não se ergueu do seu assento
Deus a beijá-lo na face.
- Teve a luz do sol que nasce!
- Teve as ladainhas do vento!
Não lhe coseram neblinas
os seus nevados lençóis.
Nem bordaram roupas finas,
com áureas firmas, os sóis.
Não lhe ofertaram toalhas
princesa ou rainha loura.
- Por enxoval, teve as palhas.
- Por berço - uma manjedoura.
Só de manhã o saudaram
as andorinhas do ninho.
Só as violetas o olharam
mais a flor do rosmaninho.
Não lhe fez festas o Eterno,
Ao colo de uma Rainha.
Só teve o bafo materno
da vaca e da jumentinha.
E o Rei da Morte e da Dor,
sem ter archeiros reais,
só leu cortejos de amor
- nos olhos dos animais!"
" E ela partiu com ele.E pararam no sítio da gruta. Uma nuvem obscura envolvia-a. E a parteira disse: «A minha alma foi enaltecida hoje, pois os meus olhos contemplaram maravilhas: a salvação nasceu para Israel.» De repente, a nuvem retirou-se da gruta, e uma grande luz brilhou no interior, uma luz que os nossos olhos não podiam suportar. E pouco a pouco esta luz suavizou-se para deixar passar aparecer uma criança pequena. E ela veio tomar o seio de Maria sua mãe. E a parteira exclamou: «Como é grande para mim este dia! Eu vi com os meus olhos uma coisa extraordinária.»"
"Virgem - Ó cordeyro divinal,
precioso verbo profundo,
vem-se a hora
em que teu corpo humanal
que caminhar pello mundo.
Desd' agora
sairás ao campo mundano
a dar crua e nova guerra
aos imigos,
e glória a Deos soberano
in excelsis et in terra
pax hominibus.
Sairá o nobre liam,
rey do tribu de Judá,
Radix David;
o duque da promissam
como esposo sairá
do seu jardim:
e o Deos dos anjos servido,
sanctus, sanctus, sem cessar
lhe cantando,
vereis em palhas nascido,
sem candea e sem luar,
sospirando.
E porque a noyte he quasi mea,
e sam horas qu'esperemos
seu nacer,
yde, Fé, por essa aldea
acender esta candea,
pois outras tochas não temos
que acender:
e sem serdes preguntada,
nem lhes vir polla memória,
direis em cada pousada
qu'esta he a vella da glória."
"As primeiras palavras terão de ser suficientementeFernando Guerreiro, Grotesco, Lisboa: Black Son Editores, 2000, p. 54.
fortes para que os sons que se amontoam na frase
dela façam um troço de paisagem por onde se passa
sem prestar grande atenção ao estrondo com que
a alma cai de bruços sobre a planície do discurso.
"Des lambeaux regagnés sur le néant le plus complet"
e que os carregadores agora despejam sobre a mesa,
indiferentes ao que os homens farão com eles
para dar alguma cor às palavras de que
se servem para ensombrar os ardis do destino.
Se ainda me restar algum poder de visão,
sentarei um anjo à minha mesa para com
ele discutir o desenho das brumas que
nos tapam as saídas do precipício. Mas
o anjo fala-nos por enigmas, sem nunca
despegar os dedos da boca e só por sinais
nos indica os assombros que a linguagem
guardou da sua curta estadia no paraíso.
Passés des bois entiers de sapins flétris,
troncs dénudés et dépouillés de l'écorce,
branches sans vie, tout ça me faisait
penser, ò byron, à toi et à ma maladie."
"Constituirão as palavras o espectro de uma ideia
ou ater-se-á esta a projectar no poema a sombra
da sua passagem pela argamassa da sepultura?
Limpo o quadro, quem decidirá sobre o sentido
das imagens de que se constitui o coração negro
mas violento do discurso? Da desolada metáfora
que nos permite ainda ler em contraluz as sombras
diluídas que o pensamento vai perdendo no seu curso?
Porque, se olharmos para dentro, que placa
oferecemos ao eco das cores que do mundo
em nós as palavras desenham a estranha tessitura?
Toda a espessura resulta de uma perda
que nos inventa interiormente mas
mesmo os cegos recorrem à linguagem
para evocar o segredo de um real
que só lhes é acessível como literatura."
"Pesado,
cresço para baixo,
lanço
raízes para o fundo,
as águas da terra
descobrem-me, sobem,
vem-me o sabor amargo - tu
és sem terra,
pássaro para os ares, mais leve
sempre na luz,
só o medo te
prende ainda
ao vento terreno."
"Perguntei: «Quem é este anjo
cor de um lírio que fenece,
à míngua d'água corrente,
ou a lua em seu poente
quando a alva empalidece?...»
E disseram-me: «É a virgem
que é a mãe da Mágoa e das Dores
e chora os lutuosos males
dos tristes que andam nos vales,
dos prantos e os maus suores,
dos lutos e dos dissabores!...»"
"O tempo é outro tempo nas terras pequenas
e quem de si mesmo afinal foge encontra aqui o coração em festa
As árvores são novas e no adro em rodas contra a cal e contra o frio há gente
o sol preenche tudo e é quase tão redondo como Deus
Cada coisa tem nome e reconheço o aroma das estevas
na missa o claro coro das mulheres leva os campos à igreja
e há crianças bibes saco escola sino guizos gado
o frio fecha, o sol semeia, a luz alastra e o silêncio é fundamental
- cartaz quase municipal que me recruta e traz
do fundo de umas páginas de pó ao cúmulo das folhas amarelas
reais e rituais, folhas finas das mãos de Columbano
como tudo o que gira envolto no rodar do ano
E a terra a pedra o ar opõem sempre ao céu a mesma superfície
sobre os corpos extensos sob a erva, imersos no cansaço
E eu dia após dia dado ao esforço de alongar
a morte prometida a toda a minha cara ou dissipar
a queda num lugar desde o mais alto de mim próprio
Ah! não ter eu uma só solução para tudo, tantos gestos transbordantes
em vez de dividir os dedos pelas coisas múltiplas diversas (...)"
"A vida aparece à luz deste raciocínio como um grande pesadelo, do qual no entanto é possível livrar-se pela morte, que seria, assim, uma espécie de despertar: Mas despertar para o quê? Essa irresolução de lançamento ao nada absoluto e eterno deteve-me em todos os projectos de suicídio. Apesar de tudo, o homem tem tanto apego ao que existe, que prefere naturalmente suportar a sua imperfeição e a dor que causa a sua fealdade, em vez de aniquilar a fantasmagoria com um acto da sua própria vontade. E pode acontecer, também, que quando chegarmos ao limite do desespero que precede o suicídio, por se ter esgotado o inventário de tudo o que é mau e se ter chegado ao ponto em que o mal é insuperável, qualquer elemento bom, por pequeno que seja, adquire um valor desproporcionado, acaba por tornar-se decisivo e aferramo-nos a ele como nos agarraríamos desesperadamente a qualquer erva ante o perigo de cair num abismo."
"Abruptamente, Zooey levou as mãos à cara já bastante suada, deixou-as ficar lá durante alguns instantes e depois retirou-as. Voltou a cruzá-las. A sua voz ergueu-se outra vez, num tom quase perfeitamente coloquial.- O que me deixa perplexo, realmente perplexo, é que não consigo entender por que razão alguém, a não ser que seja uma criança ou um anjo ou um simplório cheio de sorte como o peregrino, há-de rezar a Jesus que seja minimamente diferente do que aparece no Novo Testamento. Deus meu! É só o homem mais inteligente da Bíblia, nem mais nem menos! A quem é que ele não se sobrepõe? A quem? Ambos os Testamentos estão repletos de sábios, profetas, discípulos, filhos predilectos, Salomões, Isaías, Davides, Paulos..., mas, santo Deus, quem, excepto Jesus, sabia realmente o que se passava? Ninguém. Moisés, não. Não me digas que Moisés sabia. Era um homem bom e tinha uma bela maneira de comunicar com o seu Deus, e tudo o resto, mas a questão é essa. Tinha de comunicar com ele. Jesus percebia que não há separação possível de Deus. - Nesta altura, Zooey bateu com uma mão na outra, uma só vez, e ao de leve, e muito provavelmente sem querer. Tinha as mãos outra vez cruzadas sobre o peito, quase antes, por assim dizer, de se ter apagado o som que fizera. - Oh, Santo Deus, que inteligência! - disse. - Quem, por exemplo, teria ficado em silêncio quando Pilatos exigiu uma explicação? Salomão, não. Não me digas que Salomão teria. Salomão teria arranjado umas palavras sentenciosas para a ocasião. E não tenho a certeza de que Sócrates não fizesse o mesmo, por sinal. Críton, ou outro qualquer, teria tentado ganhar tempo até desencantar um par de frases bem escolhidas que ficassem na história. Mas, sobretudo, quem na Bíblia, além de Jesus, sabia, sabia, que trazemos o Reino dos Céus em nós, dentro de nós, onde somos demasiado estúpidos, sentimentais e falhos de imaginação para o procurar? É preciso ser filho de Deus para saber esse género de coisas. Por que não pensas nisso? Estou a falar a sério, Franny, muito a sério. Quando não se encara Jesus exactamente como era, a Oração de Jesus perde todo o sentido. Se não se compreende Jesus, não é possível compreender a sua oração... não se consegue interiorizá-la minimamente, fica-se só com uma espécie de cantilena. Jesus era um iniciado supremo, por Deus, com uma missão terrivelmente importante. Não era um São Francisco, com tempo suficiente para entoar alguns cânticos, ou para pregar aos pássaros, ou para realizar essas coisas carinhosas tão do gosto de Franny Glass. Estou a falar muito a sério, raios me partam. Como é que não consegues perceber isso? Se Deus quisesse que alguém com a personalidade persistentemente cativante de São Francisco fizesse o trabalho do Novo Testamento, tê-lo-ia escolhido, podes estar certa disso. Mas escolheu o melhor mestre, o mais inteligente, o menos sentimental, o menos imitativo que podia ter escolhido."
"Terei de levar as caixas no carro, amanhã de tarde, até à estação das camionetas e despachá-las para a Califórnia. Conforme combinado, a minha mãe vai passar a última noite connosco. E depois, no dia seguinte de manhã, daqui a dois dias, põe-se a caminho.Continua a falar. Não se cala, a descrever a viagem que está prestes a empreender. Irá conduzir até às quatro da tarde e depois arranja um motel para passar a noite. Pensa chegar a Eugene de noite. Eugene é uma terra simpática - ela já lá ficou, quando veio para cá. Tenciona sair do motel ao nascer do sol e, se Deus quiser, há-de chegar à Califórnia nessa tarde. E Deus vai querer, ela sabe que sim. De outro modo, como explicar que continue a andar por cá? Deus tem planos para ela. Ultimamente, tem rezado muito. Também tem rezado por mim.- Porque é que anda a rezar por ele? - quer Jill saber.- Porque me apetece. Porque é meu filho - diz a minha mãe. - Tem algum mal? Não precisamos todos nós de rezar, de vez em quando? Talvez haja quem não precise. Não sei. Sabe-se lá...Leva a mão à testa e compõe o cabelo que se tinha soltado de um travessão."
"Existe o momento da primeira inspiração literária. O primeiro golpe. Como escritor, suspeito de que todas as pessoas que decidem fazer uma incursão no mundo das letras, sem dúvida, sem dúvida alguma, têm um momento específico de génese literária. Situá-lo é diferente. Dito de outra forma: em que momento é que alguém se torna escritor? Dito ainda de outra forma: em que momento é que alguém é engravidado por esse estranho anseio de narrar, de contar, de escrever, de adoptar as palavras como sua forma de expressão e, em certos casos, seu modus vivendi? Encontrar esse instante e narrá-lo. Encontrar o momento preciso em que uma pessoa qualquer deixa de ser uma virgem literária e começa a fazer amor com as palavras; ou, como me disse um amigo: encontrar o momento da vida de pessoas com tão poucas circunstâncias propícias em que um anjo as sobrevoa e as faz cair na literatura."
"Se bem que nem o diabo sabe o que a gente há-de recordar, nem porquê. Na realidade, sempre pensei que não há memória colectiva, o que talvez seja uma forma de defesa da espécie humana. A frase «todo o tempo passado foi melhor» não indica que antes sucederam menos coisas más, mas sim que - felizmente - as pessoas as lançam no esquecimento. Para já semelhante frase não tem valor universal; eu, por exemplo, caracterizo-me por recordar preferentemente as coisas más e, assim, quase poderia dizer que «todo o tempo passado foi pior», se não fosse porque o presente me parece tão horrível como o passado; recordo-me de tantas calamidades, de tantos rostos cínicos e cruéis, de tantas más acções, que a memória é para mim como a luz temerosa que alumia um sórdido museu da vergonha."
"Tudo é terrível. Tudo é espantalho, espantável. Tudo ameaça precipitar tudo e todos. Tudo consegue retornar ao princípio e ao fim. Tudo é político, elíptico, oblíquo, ambíguo. Tudo é marítimo, árido, rochoso, ventoso. Tudo é tangente ao labirinto da sensação e da consciência. Tudo é desagradável. Tudo é futuro ou pré-histórico."
Murilo Mendes, Janelas Verdes, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 109."Incômodo, ser mar: não se pode esconder, escolher, voar, mudar de forma, opinião e galáxia; nem parodiar Descartes, escrevendo, digamos, "Sofro, logo existo"; para sempre igual a si próprio. O mar não bebe, é bebido, não tem avesso, e urina demais. Contudo, trata-se da maior praça pública do planeta; ora a praça decide hoje muitas coisas."
"É onde se não vai directamente e no entanto o espaço venceMuitos dos gestos para já não dizem nadaE sobretudo há o silêncio e há mãos para tudoo que sobeja. Eu ia à minha vidae entro e não sei da minha vidaEu tinha gente à espera, assuntos sítios onde ire um amigo cresce cresce. E saio para a ruae depressa - ai de mim - há fim em quanto façoJá fui uma criança e quase sempre esqueço"
"Tortura de pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não sequer pensar!... E o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Qu'rer apagar no céu - ó sonho atroz! -
O brilho duma estrela, com o vento!...
E não se apaga, não... nada se apaga.
Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: «O que te resta ?...»
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!"
"A vida é triste: no mundo
Sofremos até morrer;
Mas, Senhor, quem sonda a fundo
Mistérios do teu poder?
A vida é triste, mas breve;
E o futuro que se eleve,
Eterno, imenso, há-de ser.
Mundos e mundos, no espaço
Vão rolando à tua voz,
Presos em místico laço
Nesses jardins sobre nós;
E tudo canta à porfia
Aquela grande harmonia
Que ensinam teus anjos sós.
Tudo folga: só na terra
Há-de o homem padecer?
Acaso tão pouco encerra
Seu fado? não pode ser.
Se o homem foi obra tua,
Neste mar em que flutua
Há-de um porto enfim haver."
"- Pois é, estou a desviar-me muito da minha história - começou ele. - Tenho pensado tanto, vejo agora as coisas de um ângulo tão diferente que sinto grande vontade de dizer tudo isto. Ora bem, começámos portanto a viver na cidade. A cidade é melhor para as pessoas infelizes. Na cidade, uma pessoa pode viver cem anos e não reparar que já morreu há muito e apodreceu. Não temos tempo de pensar em nós, estamos totalmente ocupados. Negócios, relações públicas, artes, saúde e educação das crianças, receber as visitas destes e daqueles, visitar outros, é preciso ver a actriz tal, ouvir o cantor ou a cantora tal. Na cidade pode aparecer a qualquer momento uma ou mesmo duas celebridades que é impensável perder. É preciso tratar da nossa saúde, ou da saúde deste ou daquele; ele são os preceptores, as preceptoras, os professores... e no entanto a vida é vazia, vazia. Por isso, na cidade, eu e ela sentíamos menos a dor da convivência."
Christa Wolf, Unter den Linden, trad. Ana Maria Bernardo, Lisboa: Cotovia, 1991, p. 65."O homem, pelo contrário! Como me é transparente, a mim e a si próprio! Um ser dotado de córtex como todos nós das aves para cima, sujeito ao domínio cruel das causalidades biológicas como qualquer outro animal, inventou para si a razão, num momento de inspiração. Pode agora tornar inteiramente plausíveis todas as renúncias que se vê obrigado a fazer em virtude do seu destino superior e reagir adequadamente a qualquer situação. Pelo menos é assim que o Professor R. W. Barzel procura explicar a questão à loura Anita (39), sua mulher, à noite, quando ela está deitada na cama a ler romances policiais e a comer bombons de licor. É certo que nunca me apercebi de ela ter tirado algum proveito destes discursos, pois a expressão do seu rosto é impassível, se é que não é até irónica. Eu, porém, aparentemente a dormir sobre o macio tapete de quarto do meu professor, na realidade grato e receptivo a todas as suas palavras, posso afirmar: nada do que é humano me é desconhecido."
"Olhou para o lado, sobressaltada. António Vargas desaparecera. Julgou-se sozinha, sozinha num jazigo! Voltou-se. Ao canto da sala, de pé, António Vargas fitava-a. Pareceu-lhe assim como um retrato preso na parede. Teve medo, gritou:- António!António caminhou sorrindo. As feições carregadas haviam-se esbatido e um ar ingénuo e jovem brilhava-lhe no rosto. Parou junto dela, passou-lhe o braço em volta da cintura, levou-a para o corredor:- Agora és tu a minha família. Nunca mais voltaremos àquela sala. Hoje enterrei uma porção de mortos. Vem!...E entraram no quarto, fechando a porta."
Aquilino Ribeiro, O Romance de Camilo, vol. III, Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 265."S. Miguel de Seide, um pouco por curiosidade, outro pouco por idolatria, estava a converter-se num lugar de romagem. Não faltava muito para ser desbancado o Bom Jesus do Monte. Camilo via com horror e rabujando por todos os foles o carreiro de formigões que faziam na sua vida estes devotos. Não lhes largavam a porta, pouco lhe valendo fugir, negar-se, implorar por meios discretos e rodeios hábeis que o deixassem em paz. Depois que Castilho com o pimpolho e Tomás Ribeiro ali vieram de visita, tornara-se de bom-tom a jornada de Seide. Ele arrenegava ora e sempre. Em 22 de Dezembro de 1866, escrevia para Castilho: Se Vossas Exas. vierem ao Porto, avisem-me para eu os ir buscar, mas olhem que isto por aqui é feio. As árvores estão nuas e os prados vidrados do gelo. E frio? Vejam lá no que se metem, que a responsabilidade não a tomo."
" - Desenha na lama.Sors levantou-se e, encostado à parede da trincheira, pegando na espingarda com as duas mãos, tentou desenhar na parede em frente. A terra caía e os traços perdiam-se.- Desenha no chão - disse Souceck.- Não dá.- Vocês artistas não sabem nada. Sem matar, não se avança.Talvez Soucek tenha razão, pensou Sors: nós construímos com os restos daquilo que destruímos. Com o que comemos, com as pedras que partimos, com os cadáveres de ideias velhas, com a madeira das árvores. Todas as paredes são feitas de ossos e de sangue. A morte é uma escada para a verticalidade."
Christa Wolf, Medeia.Vozes, trad. João Barrento, Lisboa: Cotovia, 1996, pp. 162-163."Nessa altura eu já cá não estarei. Nem Hélio, o deus do Sol, nem a minha querida deusa-Lua darão por isso. Com dificuldade, lenta mas definitivamente, libertei-me da crença de que os nossos destinos humanos estão ligados com o curso dos astros. E de que além vivem almas semelhantes às nossas, que influenciaram as nossas existências, mesmo que seja só para enlearem e confundirem os fios que as sustentam. Acamante, o primeiro astrólogo do rei, pensa como eu, sei-o desde uma troca de olhares durante um rito sacrificial. Ambos disfarçamos, mas por razões diferentes e de modos diversos. Ele apresenta-se como o mais zeloso entre os servidores dos deuses, por meio de uma indiferença abismal em relação a toda a gente; eu, evitando quanto posso os rituais, mas calando-me quando tenho de participar neles, por compaixão connosco, mortais que, quando despedimos os deuses, temos de atravessar uma zona infernal a que nem todos escapam. Acamante pensa que me conhece, mas a sua autocegueira impede-o de conhecer seja quem for, e muito menos a si próprio. Agora quer regalar-se com o meu medo. Tenho de refrear o meu medo. Não posso deixar de pensar."
"Aqui o rio é HomemLuís Veiga Leitão, Longo Caminho Breve, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 93.
homem da raça de Orfeu:
Seu ofício noite e dia
é replantar a voz nas pedras
no osso nas raízes que o cercam
- para que a beleza e a rebeldia
não se percam
"Tudo nos mostra duas caras, pois tudo é interior e exterior ao nosso ser. Somos a realidade idealizada e o ideal realizado. Tudo nos mostra duas caras, até o sol. Tem uma, de oiro, e outra, de prata. Ou nos visita directamente, dum modo esplendoroso, ou nos envia o seu espectro de noite."
" - O que é essencialmente repugnante? - disse. - Pressupõe-se teoricamente que o amor é qualquer coisa ideal, elevada, mas na prática o amor é uma coisa repugnante, suína, até dá nojo e vergonha falar dele, lembrá-lo. Como é nojento e vergonhoso, deveríamos entendê-lo como tal. Mas não, faz-se de conta que o nojento e o vergonhoso é o belo e o elevado. Quais eram os primeiros indícios do meu amor? Era entregar-me aos excessos animais, sem me envergonhar e, sabe-se lá porquê, orgulhando-me desses excessos físicos, sem pensar minimamente na vida espiritual dela nem, sequer, na sua vida física. Eu espantava-me, não percebia donde provinha a nossa raiva, mas o problema era perfeitamente claro: a raiva não era mais do que o protesto da natureza humana contra o animal que a oprimia."
"- Sim, eu sei - gritava mais alto do que nós o senhor grisalho -, os senhores referem-se àquilo que é considerado existente, mas eu falo do facto. Qualquer homem, em relação a uma mulher bonita, sente aquilo a que os senhores chamam amor.- Ah, é horrível o que está a dizer; é que há mesmo entre as pessoas um sentimento que se chama amor e que não dura apenas anos ou meses, mas toda a vida. De acordo?- Não, isso não existe. Supondo até que um homem prefira determinada mulher para toda a vida, o mais provável é que essa mulher prefira outro homem, e sempre assim foi e continuará a ser neste mundo - disse ele. Tirou a cigarreira e acendeu um cigarro.- Mas também é possível o amor recíproco - disse o advogado.- Não, não é possível - retorquiu o senhor -, é impossível, da mesma forma que é impossível que, numa carroça cheia de ervilhas, duas delas, marcadas, fiquem juntas. Além do mais, o problema não é apenas o da impossibilidade, mas sim, isso de certeza, o da saciedade. Amar toda a vida uma pessoa é a mesma coisa que dizer que uma só vela arderá toda a vida - disse ele, inspirando avidamente o fumo."
"É tão franzina, tão leve,Que a gente, vendo-a passar,Fica-se pasmada a olharCom medo que o vento a leve.
Mas, vendo a flor por quem peno,Ninguém, ninguém imaginaQue o seu sorrir tem veneno,Que o seu olhar assassina.
Porém nada há de mais beloQue essa mulher que me atrista.Suprema glória a do artistaQue a tivesse por modelo!
Vá na rua, entre na sala,Vendo-a indolente e sem pose,Ergue a voz a ApoteosePor toda a parte a saudá-la,
Desde a alemã, flor gelada,Até à ardente sultana,Da moderna sevilhanaÀs deusas da antiga Helada.
Qual que em graça a sobreleveE mais belezas encarne?Diluí rosas em neve,Ter-lhe-eis o misto da carne.
Delgada, esbelta e altaneira,Tem a elegância dos mastrosBasta e preta a cabeleiraÉ-lhe uma noite sem astros.
Seu braço jáspeo e venusto,Quando ela me acinge ao seio,Enrosca-se no meu bustoTal como a vide no esteio.
Vendo-a passar tentadora,Mais atraente que o mal,Eu julgo-a a Eva d' outroraE creio Adão meu rival.
É bela, sim, mas traidora!Dum nervosismo de gata,A cada beijo devora,A cada carícia mata.
Porém que morte tão belaA nos seus lábios bebida!Quero bebê-la, bebê-la...É morte que dá mais vida."
Hélia Correia, Insânia, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 125."Vindo o Natal, lembrou-se a gente da Levada de que somente um ano decorrera sobre o aparecimento da menina, conquanto mais lhe parecesse que ela estava em tudo o que a memória recordasse. Era uma memória adormentada que se movia entre um pó de ouro e escuridão. Iluminava-se uma e outra cena, numa escolha do acaso, e não havia maneira de as ligar logicamente.Estavam os Levadeiros fatigados, como se se tivessem concedido demasiado tempo para o sono. E poder-se-ia mesmo dizer a seu respeito que viviam aquela angústia dos fantasmas quando fazem as suas expedições terrenas junto dos que pensavam ser-lhes familiar e se tornou para sempre estranho e inacessível."
"A meu ver, no conceito do versejador, Camões tinha que trazer o cinto bem atarraxado senão escorregavam-lhe os calçotes pela barriga abaixo. Era portanto dos que, à margem da boa sociedade - essa que cumpria com os mandamentos da Igreja e consorciava em bródios e aniversários -, tocava berimbau, isto é, fazia-lhe seus acrósticos, seus vilancetes, suas odes e ditirambos. A troco de quê? Além doutras espécies de salário, de vitualhas. Dêem-lhe as voltas que quiserem, à semelhança dos aedos que enchiam a escudela à porta, onde se celebravam bodas e dionisíacas, Camões recebia em casa a sua merenda aviada. Não a ia comer à mesa dos fidalgos; comia-a na mesa de pinho do Mal-Cozinhado de suciata com outros do seu pendão, ou na casinha da Mouraria, no recanto silencioso da pobreza e conformidade."
Aquilino Ribeiro, Luís de Camões, vol. I, Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 119."Nada de mais arbitrário que dar a Camões o conde de Linhares como seu patrono no Paço. D. Francisco de Noronha devia cuidar do reumatismo contraído nos nevoeiros do Norte. O fidalgo, o galgo e o taleigo do sal junto do fogo os heis-de achar.Além da qualidade de escudeiro, que não levava longe, Storck prevalece, para introduzir Camões no Paço, do prestígio que lhe advinha com o seu saber humanista e a aura, que soprava já, de sua arte primorosa. Está-se mesmo a ver Goethe na corte de Weimar, esquecido o nosso doutor Storck do tempo e do espaço. E na mesma ordem de transposições emite a respeito dos vates que se apinhavam às portas de el-rei, como hoje os famintos no átrio das Cozinhas Económicas: quem quisesse ter foros de poeta devia apresentar como prova de concurso uma écloga.Àquela altura da vida, Camões, concedendo de barato que era um humanista consumado, não tivera o ensejo de manifestar-se. Os tempos eram pouco propensos à intelectualidade."
Aquilino Ribeiro, Luís de Camões, vol. I, Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 87."O excelente Willelm Storck fantasia Luís de Camões de rucksack às costas como um wandervolgel, distanciando-se de Coimbra pela «ponte lapídea do Mondego» depois de ouvir os paternais e salutares conselhos de D. Bento. No bornal, a meio das duas peças de roupa branca, um Virgílio e um Ovídio, um Petrarca e um Ariosto; na escarcela, uns magros cruzados.Como se trata de cinco a seis dias de marcha para o Sul - pedibus calcantibus, já se deixa ver -, vai batendo à aldraba de mosteiros e hospícios e pedindo dormida. Ninguém nega a hospitalidade ao douto sobrinho do Dom Prior, pessoalmente um simpático e jucundo andarilho. A jornada com tal agasalho lhe é amena. Faltam-lhe só entoar pelos velhos caminhos, entre madressilvas e vidoeiros, uma canção tirolesa. "
"Os astros virginais, as límpidas estrelasAntónio Nobre, Primeiros Versos, Porto: Lello & Irmão Editores, 1984, p. 142.
Que eu vejo reluzir nas amplidões do ar!
Pintam com mimo e graça extraordinária as telas.
São artistas de Deus: sabem também pintar!
A sua luz desenha estranhas aguarelas
À superfície da água, e vão assim criar
As estrelas gentis, tão simples e tão belas
Que vivem nas regiões fantásticas do mar.
Cada estrela do céu, silenciosa e calma,
Com sua luz imprime, e forma, estampa e cria
Uma estrela do mar, dando-lhe vida e alma.
O mar é, pois, o céu; mas, ah! ninguém se acoite
Nesse infinito azul... que se na Altura é dia,
Nesse outro mundo, o oceano, é noite... e sempre noite!"
"Se eu me vira num bosque, onde não desse
Sinal, vestígio humano de habitado,
De verdenegras ramas tão fechado
Que inda ali de dia anoitecesse;
Se então lá de ua balça ao longe houvesse
Gemendo um mocho, e tudo o mais calado;
Só dentre alguns rochedos pendurado,
Com som medonho, um rio ali corresse;
Enfim num lugar tal onde os meus dias
Consumindo-se fossem na certeza
De não tornarem mais as alegrias;
Faminta ainda a triste natureza,
Cercada ali de tantas agonias,
Nem então se fartara de tristeza."
"- Volta um pouco a cabeça - dizia-lhe eu. - Assim. Obrigado. Não te mexas, peço-te. És tão bela como um chapéu alto, lisa, redonda sobre ti mesma, com os cotovelos fincados no chão. O teu corpo é como um ovo posto à beira-mar. És concentrada como salgema e transparente como um cristal de rocha. És um prodigioso desabrochar, um turbilhão imóvel. O abismo da luz. És como uma sombra que desce a profundidades incalculáveis. És como uma erva multiplicada milhares de vezes."
"Toda a fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que a sua invenção introduziu na família das imagens. As primeiras fotos que um homem contemplou (Niepce diante da Mesa Posta, por exemplo) devem ter-lhe parecido tão semelhantes a pinturas como duas gotas de água (sempre a camera obscura); contudo, ele sabia que se encontrava face a face com um mutante (um marciano pode assemelhar-se a um homem.) A sua consciência colocava o objecto encontrado fora de toda a analogia, como o ectoplasma «daquilo que tinha sido». Nem imagem, nem real, um ser novo, verdadeiramente: um real que já não pode ser tocado.Talvez tenhamos uma resistência invencível em acreditar no passado, na História, a não ser sob a forma de mito. Pela primeira vez, a Fotografia acaba com essa resistência: o passado é, a partir de agora, tão seguro como o presente, aquilo que se vê no papel é tão real como aquilo que se toca. É o advento da Fotografia - e não, como foi dito, o do cinema, que partilha a história do mundo."
"A civilização actual é a guerra acesa; está ligada ao assassinato em massa, como o tuberculoso ao Contrato Social e o leproso à Bíblia."
"Já afirmei que a actividade da consciência é uma alucinação congénita. Como a nossa origem é aquática, a vida é o ritmo perpétuo de uma água amornada. Temos água no ventre e nos ouvidos. Percebemos o ritmo universal no peritoneu, que é o nosso tímpano cósmico, um contacto colectivo. O nosso primeiro sentido individual é o ouvido, que percebe os ritmos da nossa vida particular, individual. É por isso que todas as doenças começam por perturbações auditivas que são, à semelhança das eclosões da vida submarina, a chave do passado e as primícias de um devir inexaurível. Portanto, não era que eu, médico, quisesse fazer parar semelhante desenvolvimento. Encarava antes a possibilidade de acelerar, de multiplicar esses acidentes tónicos e de conseguir realizar, mediante uma modificação prodigiosa, o acorde perfeito de uma nova harmonia. O futuro."
"Metido anda o mundo em grande mudança e mais difícil nos é entender os sinais dela do que os pássaros migradores saber quando têm de partir."
"Honram, por ignorância, o mundo
Os homens, nesta desprezível vida;
Por ele se combatem, como cães, que a fundo
Se atiram sobre caça ferida."
"Que terá este Portugal - penso eu - para assim me atrair? Que terá esta terra, por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Não sei; mas quanto mais lá vou mais desejo voltar. Cheguei a crer que estes extremos ocidentais deram as mãos espirituais aos extremos orientais, aos da Índia, e chegaram ao triste miolo da sabedoria, à compreensão da inutilidade final de todo o esforço. Dir-se-ia que ali pousa a lúgubre sabedoria do Eclesiastes. Nesse povo triste, tristíssimo, a gente diverte-se, sem dúvida, mas diverte-se como se dissesse: comamos e bebamos, que amanhã morreremos."
"Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,
Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza."
(museu regional de Lamego) |
"O que me dá prazer não é o vinho, não!
Nem a música, nem o canto.
Apenas os livros são o meu encanto
E a pena: A espada que tenho sempre à mão."