Friday, May 25, 2007

O INDIVÍSUO

"(...) Desde muito cedo e muito profundamente iniciado no segredo segundo o qual mundus vult decipi (o mundo quer ser enganado), eu não podia seguir esta táctica. Pelo contrário, tratava-se, tanto quanto possível, de enganar ao invés, de se servir de todo o conhecimento dos homens nas suas fraquezas e as suas loucuras, não para deles tirar proveito, mas para me aniquilar a mim mesmo e atenuar a impressão produzida pela minha pessoa. O segredo do engano que se acomoda aos caprichos do mundo desejoso de ser enganado consiste, por um lado, em organizar conventículos e tudo o que se segue, em ligar-se a uma das sociedades de admiração mútua onde há entreajuda mediante a palavra e a escrita para proveito mundano de cada um; por outro lado, ele quer que se fuja da multidão, à qual jamais se mostra, para assim agir sobre as imaginações. Tratava-se, portanto, de fazer o inverso; eu devia existir e entrincheirar a minha existência num isolamento absoluto; mas precisava, ao mesmo tempo, de ter cuidado em me mostrar a toda a hora do dia, vivendo por assim dizer na rua, na companhia de Pedro e de Paulo e nos encontros mais inesperados. Tal era, na arte de enganar o caminho da verdade, o meio para sempre certo de atenuar no mundo a impresão que se dá de si mesmo,a via de renúncia seguida ainda por pessoas completamente diferentes de mim para atrair a atenção, pelos homens que gozam de consideração, pelos «embusteiros» expeditos em tirar partido da mensagem, e não em servi-la, e que visam unicamente adquirir reputação (...)"


Sören Kierkegaard, Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor, trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 2002, pp. 58-59.

Wednesday, May 23, 2007

HOMEM EM SENTIDO PROIBIDO

"Porque, enfim, que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, uma imensidão em relação ao nada, um meio termo entre o nada e o todo. Infinitamente longe de compreender os extremos, a tal ponto o fim das coisas, assim como o seu princípio, estão para ele invencivelmente escondidos num segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada donde é tirado e o infinito em que está mergulhado"

Blaise Pascal, Pensamentos, 3ª ed. , trad. Américo de Carvalho. Mem Martins: Publ. Europa-América, 1998, p. 35

Saturday, May 19, 2007

NUM PÁTIO DE CORDOBA


até que nenhuma palavra
eleita pela boca, no
momento em que deus reclame a
posse do mundo, olhos magros
a devolver imagens, alma
calando-se para sempre


valter hugo mãe, três minutos antes de a maré encher, 2ª ed., Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 20

Tuesday, May 15, 2007

O SONO DE FILOCTETES


"Sopra a monção, jovem, sopra a monção. E o homem, sem ver e privado de auxílio, está estendido, como num sono nocturno - um sono bem-vindo, ao calor solar... Não tem o domínio das mãos, dos pés nem de nada, como quem jaz no seio do Hades."

Sófocles, Filoctetes [844-881], trad. E. Dias Palmeira.


Saturday, May 12, 2007

MELHOR DO QUE UM POEMA

"Melhor do que um poema
é por exemplo: Nenhum poema,
porque o não-poema vive
como morna macieza da inspiração:
sentimento cósmico
da gota na água.
O corpo sente-se aconchegado.
O coração nada sente.
A balança está equilibrada.
O prumo pende imóvel.

Poema é um estado
que o poema destrói
ao sair
de si próprio."

90 Poemas de Günter Kunert, trad. João Barrento. Lisboa: a paginas tantas, 1983, p. 50

Thursday, May 10, 2007

ÁRVORES NA ENERGIA DA FLORAÇÃO

"Então o Gregório, que nunca vira árvores nem paisagem, pediu-lhe com humildade uma leve explicação:
- As árvores? Como são as árvores?...
- Como cabelos de mulher ao vento, como pragas a silvar raivosas entre a penedia. Há-as todas verdes, há-as roxas, há-as em brasa, conforme a sua floração."


Raul Brandão, A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore. Lisboa: publ. Dom Quixote, 2003, p. 90.

Saturday, May 5, 2007

NO ESTADO DA LINGUAGEM (para A.)

"Vegetalizar é uma operação de inervar, tornar lúcidas as nervuras do texto, operação delicada que pode tornar turva a
imagem
que surge
e se transforma em texto
É mais fácil compreender quando se olha o texto com a língua dos pássaros, sons, ritmos, morfemas,
que ora são língua, ora são imagem, ora são este corpo que escreve, ora são nada
diz-se, por vezes, palimpesto
mas não

compreender um texto é como compreender um cão, uma
previsão do tempo,
ou seja,
é aceitar que não se fala,
que se não compreende, excepto pela companhia,
é não confiar no tempo que fará
vê-lo como prometido e como incerto
como nadas objectivos que podem ser o algo concreto a que o meu corpo se liga"

Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 74