Monday, July 29, 2013

PODER



"La véritable grandeur des saints consiste en ce pouvoir - insurpassable entre nous - de vaincre la Peur du Ridicule. Nous ne saurions pleurer sans honte; eux, ils invoquent le «don des larmes»."


Emile Cioran, Précis de décomposition, Paris: Gallimard, 1990, p. 128.

Sunday, July 28, 2013

HYPNOS


"Veio a mim, em sonho, mulher balbuciante no falar, vesga no olhar, torta no caminhar, disforme nas mãos, pálida na tez. Fitava-a, e assim como o Sol aquece os membros que pela noite o frio agrava, sob o efeito do meu olhar ela movia a língua, alçava o corpo e já no lívido, desbotado semblante surgiam cores agradáveis, como o quer o amor. Tendo, pois, libertado o seu falar, principiou a entoar tão doce, inebriante canto, que muito me custaria desviar dele a atenção.
"Sou", dizia, "a sereia insinuante. Nos mares desgarro os navegantes, tamanha sedução se desprende do meu canto. Cantando seduzi Ulisses. Do enlevo a que conduz este cantar, poucos logram escapar!"


Dante, A Divina Comédia, "Purgatório", canto XIX, trad. Hernâni Donato, São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 184.

Saturday, July 27, 2013

PENITENCIAL



"Desta sonolência fui subitamente acordado por multidão de almas que à nossa retaguarda e em nossa direção se encaminhava. E como os rios Ismeno e Asopo, outrora, viram-se cruzados por bandos desesperados de tebanos, dentro da noite clamando em altas vozes pelo deus Baco; assim aquela turba penitente, por desejo reto e por justo amor impelidos, apressavam-se, ofegantes, a cruzar o círculo."


Dante, A Divina Comédia, "Purgatório", canto XVIII, trad. Hernâni Donato, São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 183.

Friday, July 26, 2013

ASCENDER



"Naquelas fundas paragens há um ponto que dista tanto de Belzebu quão largo é deste o sepulcro, o qual ponto não há de ser localizado pela vista, mas pelos ouvidos. Anuncia-o o murmúrio de arroio que o seu curso tortuoso escavou na rocha e que pouco pende. Ao longo de seu manso curso, pelos ouvidos seguindo ínvio trilho, meu guia e eu buscamos regressar ao claro mundo superior. Sem jamais considerar, nem ele nem eu, em pelo caminho tomar descanso, fomos subindo, o mestre à frente eu em segundo, até que por abertura circular pude perceber do escuro céu as grandes maravilhas. E saindo, voltamos a ver as estrelas."


Dante, A Divina Comédia, "Inferno", canto XXXIV, trad. Hernâni Donato, São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 126.

Wednesday, July 24, 2013

INDÚSTRIA



"trabalhamos
unicamente para o poder de dançar. Aventuras
com papéis do lado da gasolina, daqui observo
o ranger oleado da inteligência
artificial, a hemorragia sufocante do bosque mineral.
Desta minha casa tatuada a resina e nuvens
fio o novelo carbónico de hordas, vigília,
silvo de hulha no plexo. Aprisionado em
palavras de libertação inútil."


Paulo da Costa Domingos, Carmina, Lisboa: Edições Antígona, 1995, p. 92.

Tuesday, July 23, 2013

QUÍMICO



"A espessura do horizonte
constrói-se: reactores e turbinas
e um silvo surdo no pedaço de cérebro
com portas-treva que abrem alma
que se fecha ao moroso verdete
do crescer dos musgos. Não será inovador
tão precário - silenciada morte - horizonte,
e nele fluímos, todos,
descontaminadamente."


Paulo da Costa Domingos, Carmina, Lisboa: Edições Antígona, 1995, p. 91.

Monday, July 22, 2013

LABIRÍNTICO



"Qual touro que, sob golpe mortal perdendo o tino, já não pode reger-se e vacila para cá e para lá, assim o Minotauro abandonou-se à impotência e ao desespero."


Dante, A Divina Comédia, "Inferno", canto XII, trad. Hernâni Donato, São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 60.

Sunday, July 21, 2013

OS OUVIDOS DA FORTUNA


"Pois eis que um povo domina, outro sucumbe conforme os caprichos da Fortuna, serpente oculta na relva da campina. Contra ela de nada valem o vosso poder e o vosso querer. Ela provê, ajuíza e rege em seu domínio, como sobre ela mesma impera a vontade divina. Sem jamais cessar, vai provendo as suas mudanças, pois ser veloz é imperativo da Fortuna. É por isso que, no mundo, tanta sorte tão rapidamente muda. Tal é a Fortuna, muita vez insultada com censuras injustas, mesmo por aqueles que razões teriam para louvá-la. Feliz, porém, nada disso ela escuta. Primitiva como as criaturas originais, em ser como é encontra a sua felicidade. Mas agora desçamos a ver o espetáculo ainda mais triste. Já desmaiam as estrelas que brilhavam quando partimos. Mais tempo não podemos estar aqui."
 
Dante, A Divina Comédia, "Inferno", canto VII, trad. Hernâni Donato, São Paulo: Abril Cultural, 1981, pp. 46-47.

Saturday, July 20, 2013

PRÓLOGO


"As latas pareciam fora do seu alcance e fiz por isso menção de a ajudar; mas ela fuzilou-me com o olhar, qual avarento a quem alguém oferecesse para contar as moedas.
- Não preciso de ajuda - ripostou. - Sou perfeitamente capaz de lá chegar sozinha.
- Peço-lhe que me perdoe - disse de imediato.
- Foi convidado para o chá? - perguntou, colocando um avental sobre o vestido preto irrepreensível e mantendo uma colher cheia de folhas de chá suspensa sobre o bule.
- Aceito uma chávena com muito prazer - retorqui.
- Foi convidado? - insistiu.
- Não - admiti, esboçando um sorriso. - A senhora é a pessoa mais indicada para me fazer o convite."

Emily Brontë, A Colina dos Vendavais, trad. Ana Maria Chaves, Lisboa: RBA Editores, 1994, p. 23.

Friday, July 19, 2013

AS PEQUENAS VINGANÇAS



"La bonne qui ne disait rien,
Et à qui ne parlait personne.
Il suivit jusqu' au bout aux côtés de la bonne.
Au cimetière, tous les deux au dernier rang
Ils écoutèrent le discours du président
De la Société des Auteurs Dramatiques.
A la fin, las du pathétique,
Le chien s'avança posément
Et, pour venger un peu la bonne,
Il pissa sur une couronne."


Jean Anouilh, Fables, Paris: La Table Ronde/Folio, 1978, p. 17.

Wednesday, July 17, 2013

LE CHAGRIN


"Le chien suivait l'enterrement du maître.
Il pensait aux caresses;
Et il pensait aux coups.
Les caresses étaient plus fortes...

Dans le cortège, on s'indignait beaucoup.
On excusait la veuve - elle était comme morte.
On pardonnait à la maîtresse
(Elle était morte aussi).
Mais, qu'en la présence du prêtre,
La bonne ait pu laisser vagabonder ainsi
Ce chien au milieu du cortège!
Ah! Ces filles vraiment ne se font nul souci.
Quelqu'un, l'ordonnateur, la famille, que sais-je?
Aurait dû l'obliger à attacher le chien!
Elle-même, voyons!C'est une propre à rien
Que n'avait même pas l'excuse du chagrin.
Pourquoi la gardaient-ils? Une ménage d'artistes..."


Jean Anouilh, Fables, Paris: La Table Ronde/Folio, 1978, p. 16.

Tuesday, July 16, 2013

MAR-DE-ÁGUAS


"8. E Deus chamou      à arcada        céufogoágua
E foi tarde e foi manhã
dia segundo

9. E Deus disse     que se reúnam as águas
sob o céufogoágua     num sítio uno
e que se aviste        o seco
E foi assim

10. E Deus chamou ao seco     terra
E às águas reunidas      chamou mar-de-águas
E Deus viu           que era bom"
  Haroldo de Campos, Bere'shith - a cena da origem, São Paulo: Editora Perspectiva, 1993, p. 46.

Monday, July 15, 2013

FÁTUO





"Havia uma cadeira - um quarto - pedra-ara
com seu ícone e eu rezava ao acre coalho
ali deposto como um peixe fundido.
Não nego o lábio; e a cidade nómada revelou-se-me
do fundo do mar. Devolveu-me o tempo o fátuo
e a seda dos lenços de novo a sinto
sarar-me as feridas. Até dos objectos
recebo, afinal, teu sopro."

Paulo da Costa Domingos, Carmina, Lisboa: Edições Antígona, 1995, pp. 114-115.

Saturday, July 13, 2013

NO COMEÇAR



"1. No começar    Deus criando
O fogoágua          e a terra

2. E a terra      era lodo      torvo
e a treva          sobre o rosto do abismo
E o sopro-Deus
revoa              sobre o rosto da água

3. E Deus disse       seja luz
E foi luz

4. E Deus viu    que a luz     era boa
E Deus dividiu
entre a luz         e a treva

5. E Deus chamou à luz      dia
E à treva                chamou noite
E foi tarde e foi manhã
dia um"

Haroldo de Campos, Bere'shith - a cena da origem, São Paulo: Editora Perspectiva, 1993, p. 45.


Friday, July 12, 2013

AS IMAGENS



"Os deuses morrem se o sangue
falta onde as palavras não conseguem
dar da realidade uma ideia suficiente
mente simples para evitar o suicídio.
Próprio dos deuses é a escolha
do momento propício mas nada
se parece mais com o homem
do que do meio da vida lançar
redes à corrente à espera
que migalhas do ser o saciem
da dor que nele deixou
da sua ferida a poesia.
Porque ao escrever comportamo-nos
como deuses que julgam reparar
pela palavra os danos causados
pela sua passagem na memória
que os homens abandonam
aos pássaros da planície.
Não é portanto de estranhar
que do poema desapareçam
as imagens que nele permanecem
de um culto antigo; esquecido
o sacrifício, resta o vestígio
dos símbolos com que a dor
como rezes nos tresmalhou
pelos trilhos dos caminhos."


Fernando Guerreiro, Caminhos de Guia, Lisboa: Black Son Editores, 2002, p. 51.

Tuesday, July 9, 2013

ESVASÃO



"As pessoas viviam apenas para si próprias, para a sua própria satisfação e tudo o que diziam de Deus e do Bem não passava de mentiras. E, se por acaso, alguém perguntasse porque é que sobre a terra tudo está organizado de tal maneira que os homens não cessam de fazer mal uns aos outros, se alguém perguntasse porque é que eles sofrem, não havia oportunidade para reflectir sobre isso. Vem o tédio: um cigarro, um copo de aguardente ou, melhor ainda, um pouco de amor, e tudo se esvai!"
 

Leão Tolstoi, Ressurreição, trad. Alfredo Brás e Maria Clarinda Brás, Lisboa: Círculo de Leitores, 1978, p. 149.


Sunday, July 7, 2013

PERFECTUM


"Nekliudov evocou as suas relações com a mulher do marechal da nobreza e foi assaltado por uma infinidade de recordações vergonhosas. «É repugnante a animalidade que existe no ser humano» pensou ele «mas quando se manifesta na sua forma primitiva o teu senso moral pode descobri-la e desprezá-la; vencido ou vencedor, tu manténs-te igual a ti próprio. Mas quando essa bestialidade se dissimula sob aparências poéticas ou estéticas, e exige que te submetas, então, divinizando a animalidade, tu integraste nela, sem mais distinguir o bem do mal. E isso é terrível.»"

Leão Tolstoi, Ressurreição, trad. Alfredo Brás e Maria Clarinda Brás, Lisboa: Círculo de Leitores, 1978, p. 338.

Saturday, July 6, 2013

MANTO


"E ainda Homero, falando acerca do escuddo feito por Hefesto: «sobre ele forjou a terra, e o céu, e o mar» (Ilias, XVIII, 483); e «sobre ele colocou a grande força do rio Oceano» (ibidem, 607). Ferécides, o Sírio, diz: «Zas faz um manto grande e belo, e nele borda Ge e Ogenos, e as moradas de Ogenos.»
Clemente de Alexandria, Stromata, VI, 9, in Fernando Bastos, A Teogonia de Ferécides de Siro, Lisboa: IN-CM, 2003, p. 41.

Friday, July 5, 2013

ANTROS


"Falando Ferécides de Siro das grutas, das covas, dos antros, das portas e das saídas e, através destas coisas, referindo-se enigmaticamente aos nascimentos e às extinções das almas..."


Porphyrius, "De antro nympharum", in Fernando Bastos, A Teogonia de Ferécides de Siro, Lisboa: IN-CM, 2003, p. 45.

Thursday, July 4, 2013

AS IRMÃS


"Afasta, pois, de ti a tristeza, disse ele, esta é também irmã da dúvida e da ira. - Mas, Senhor, perguntei, como é ela irmã destas? De facto, a mim, a ira parece-me uma coisa, a hesitação outra e a tristeza outra! - Não és, disse ele, um homem inteligente! Não vês que a tristeza é o mais iníquo de todos os espíritos; o mais temível para os servos de Deus dentre todos os espíritos: Ela arruina o homem, contristece o espírito santo e volta a salvar."
 
Hermas, O Pastor [séc. II], trad. M. Luís Marques, Lisboa: Alcalá-Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, 2003, 40(1), p. 193.

Wednesday, July 3, 2013

HOMO POLITICUS


"Como todos os outros homens, Nekliudov era feito de dois seres contraditórios: um ser moral, preocupado apenas com bens que satisfizessem ao mesmo tempo a si próprio e aos outros, e um ser bestial pronto a sacrificar o universo inteiro ao seu prazer exclusivo."
 
Leão Tolstoi, Ressurreição, trad. Alfredo Brás e Maria Clarinda Brás, Lisboa: Círculo de Leitores, 1978, p. 62.

Tuesday, July 2, 2013

DA VIOLÊNCIA E DO CONHECIMENTO


"Do mesmo modo, não há várias tonalidades para o amor. Por uma razão simples: o amor dá muito trabalho, pois é fruto de uma inteligencia ecuménica, que conhece só quando mais quer conhecer, e de um espírito reflexivo intimamente desperto para a diversidade do Uno. Quem defendeu algo semelhante a isto caminhava para a fogueira, há trezentos anos atrás, com uma máscara de ferro de onde saía um enorme prego que lhe entrava pela boca e lhe perfurava o palato até ao nariz. Esse homem chamava-se Giordano Bruno, e era um homem de amor, isto é, um homem que soube utilizar a sua violência para se tentar compreender a si mesmo, ao mundo e ao universo, caminhando sempre no sentido de mais compreensão, isto é, de mais violência para se compreender a si mesmo, ao mundo e ao universo, não excluindo nada, mas ecumenicamente incluindo tudo na mais bela das harmonias. A sua fé era o conhecimento, que sobreviveu à tortura e, finalmente, às chamas do auto-de-fé levado a cabo por piedosos agentes da verdade. A sua fé era o conhecimento, e o seu conhecimento é, para mim, o seu amor. A sua fé era o conhecimento, e esse conhecimento era, para quem o matou, uma violência feita à verdade, e que devia ser punida com a tortura e a morte."
  Manuel Frias Martins, As Trevas Inocentes, Lisboa: Aríon Publicações, 2001, pp. 20-21.

Monday, July 1, 2013

DESFECHO


"Ele, por sua vez, logo que ouviu dizer a um cidadão de Rodes que Ântia tinha sido encontrada, pôs-se a correr, como se fosse um louco, pelo meio da cidade a gritar «Ântia». Acabou por encontrar Ântia rodeada por uma multidão perto do templo de Ísis. A população de Rodes seguia-a em massa. Mal olharam um para o outro, reconheceram-se imediatamente. Era isto de facto aquilo que eles mais ambicionavam. Abraçaram-se um ao outro e caíram ao chão. Foram tomados de muitas emoções ao mesmo tempo: prazer, dor, medo, a recordação de acontecimentos passados e receio pelo futuro. Por seu turno, o povo de Rodes deu gritos de alegria e aclamou-os, invocando Ísis como uma grande deusa. «Mais uma vez vemos Habrócomes e Ântia, o par de jovens belos», foi esta aclamação que se fez ouvir. Eles, por sua vez, assim que voltaram a si e se levantaram, entraram no templo de Ísis e dirigiram-lhe as seguintes palavras: «É a ti, ó grande deusa, que temos de dar graças pela nossa salvação. Ó deusa que nós veneramos mais do que qualquer outra divindade, foi por teu intermédio que nos reencontrámos». Prestaram também culto diante do recinto sagrado e prosternaram-se perante o altar."
Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L. V, p. 66.