Friday, December 31, 2010

COMPLETAS



"Há cem anos guardadas no livro mais mito que há em Portugal, sonham imagens de pura alegria onde se forma um mundo novo, dicionário magnífico de cores.

Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
- Mas qual a vila, qual a aldeia, qual a serra
Que este Palácio da ventura encerra?
- O Espírito, a Nuvem, a Sombra, a Quimera!

E o primeiro homem, deslumbrado dirá:

- Que grande é o mundo! E eu sou! Que ventura tamanha!
Ninguém! Meu pai é o céu. Minha mãe é a montanha.

Que diz, António? Não foi bem assim que escreveu? Foi, foi, deve estar tudo num qualquer futuro manuscrito que já vi. Adeus, eu parto, mas volto, breve (...) Adeus! Os ventos são meigas brisas / E brilha a lua como um farol! Que vista admirável! Que lindo! Que lindo! Ó sol! Ó sol! Ó sol! (as lavandiscas noivas, piando, piando!) Adeus, tão longe, tão longe a terra! Adeus. Adeus. Adeus.

Fecho o envelope ideal.


Regresso a este século só com o meu coração.


Vera Vouga, "À Esquina do Planeta", in Cem anos de gratidão, org. Francisco Topa, Anexo XIII da Revista da Faculdade de Letras, Série «Línguas e Literaturas», Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2008, p. 23.

BALANÇO DO MÊS 12



"A beleza, a meia-noite, a visão fenece.
Que sopre suave o vento errante
Da aurora sobre a tua cabeça adormecida,
Desvelando um dia de tanta doçura
Que agracie o olhar e o coração pulsante,
Bastando-lhes o mundo mortal;
E que te saciem, na árida secura,
Os poderes involuntários,
E possas passar, nas noites de injúria,
À guarda de todo o humano amor."


W. H. Auden, Outro Tempo, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D' Água, 2003, p. 83.

Thursday, December 30, 2010

O TERCEIRO CORO E UMA VOZ



" Coro 3.º

Mentira, tú eres
Luciente cristal,
Color de oro y nácar
Que encanta al mirar.


Una Voz

Feliz a quien meces.
Mentira en tus sueños,
Tú sola halagüeños
Placeres nos das,
Ay!, nunca busquemos
La triste verdad!
La más escondida
Tal vez, qué traerá?
Traerá un desengaño!
Con él un pesar!"


José de Espronceda, "El Diablo Mundo", in El Diablo Mundo. El Pelayo. Poesías, 2ª ed., ed. Domingos Yndurain, Madrid: Cátedra, 1992, pp. 326-327.

Wednesday, December 29, 2010

UMA VOZ



"Verdad, te buscamos,
Osamos subir
Al último cielo
Volando tras ti,
Con noble avaricia
Y ansia sin fin
De ver cuanto ha sido
Y está por venir."


José de Espronceda, "El Diablo Mundo", in El Diablo Mundo. El Pelayo. Poesías, 2ª ed., ed. Domingos Yndurain, Madrid: Cátedra, 1992, p. 326.

Sunday, December 26, 2010

ANGELORUM CHORUS CANEBAT



"Ai!, um mortal, ai!, com pressa e saudade,
assalta o seu trabalho no ventre subjugado;
mas o grande amplexo, que ele não enche,
para Deus estava preparado."


Rainer Maria Rilke, Poemas, trad. Paulo Quintela, 5ª ed., Porto: Edições Asa, 2003, p. 286.

Friday, December 24, 2010

SINE LABE ORIGINALI


"Andando ele a pensar nisto, eis que um Anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, e lhe disse: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e pôr-Lhe-ás o nome de Jesus; porque Ele salvará o povo dos seus pecados.
Tudo isto sucedeu para que se cumprisse o que foi dito pelo senhor e anunciado pelo profeta: « Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho; e chamá-Lo-ão Emmanuel que quer dizer: «Deus connosco». Despertando José do sono, fez como lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua mulher. E, sem que a tivesse conhecido, ela deu à luz um filho, ao qual ele pôs o nome de Jesus."

Mat 2, 20-25

Thursday, December 23, 2010

HOJE ESTÁ FRIO



"Revelar o meu segredo? Não, por certo;
Talvez, quem sabe, um dia em breve.
Mas hoje não; tombou geada e neve.
Se a curiosidade te hei desperto
E, sem pudor o que queres ouvir, pois bem:
O segredo é meu, não conto a ninguém.

Talvez nem haja nada que contar:
Imagina afinal não há segredo,
Era só a brincar.
Hoje está frio, é um dia azedo
Em que faz falta uma roupa abafada,
Um xaile e mantas que nos aqueçam;
Não posso abrir a todos quanto peçam,
Deixar o vento entrar-me de rajada,
Rodear-me, cercar-me,
Aturdir-me, assustar-me,
Enregelar-me sob este disfarce
Que me aconchega;
Pois quem quer desnudar-se
Ao vento frio que o há-de fustigar?
Não me fustigarias? Obrigada,
Mas deixa essa verdade inda velada."


Christina Rossetti, O Mercado dos Duendes e outros poemas, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 81.

Tuesday, December 21, 2010

A BIRTHDAY


"Meu coração é um pássaro cantante
Cujo ninho é um rebento orvalhado;
Meu coração é uma macieira
Vergando o tronco de frutos pesado;
Meu coração é um búzio irisado
Vogando na corrente com langor;
Meu coração mais que tudo se alegra
Porque a meus braços chegou meu amor.

Dai-me um dossel tingido de cor roxa;
De seda debruada de mil folhos;
Bordai nele romãs, pombos alados,
Pavões com caudas de mais de cem olhos;
Ornai-o de uvas, de rubis e prata,
Folhas douradas, pomares em flor;
Porque hoje é dia que nasce m'nha vida,
Hoje a meus braços chegou meu amor."


Christina Rossetti, O Mercado dos Duendes e outros poemas, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 69.

Monday, December 20, 2010

RODIN EM ROMÂNICO?



"Primeiro é um alvor trémulo e vago,
risco de inquieta luz que corta o mar;
depois faísca e aumenta, dilatando-se
em ardente explosão de claridade.

O cintilante lume é a alegria;
a temerosa sombra é o pesar.
Ai, nesta escura noite da minha alma,
- quando amanhecerá?"


Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 131.

Sunday, December 19, 2010

O QUE ELE NÃO TERÁ DITO


"Ele não disse: sede
criadores

Ele disse: servi
a fé

Tão pouca é a sua fé
na criação"


Reiner Kunze, Poemas, trad. Luz Videira e Renato Correia, Porto: Paisagem Editora, 1984, p. 137.

Saturday, December 18, 2010

BELEZA DE ESCURIDÃO



"Tu não deves, disse a coruja ao galo silvestre,
tu não deves cantar o sol
O sol não é importante

O galo silvestre tirou
o sol do seu poema

Tu és um artista,
disse a coruja ao galo silvestre

E foi uma beleza de escuridão"


Reiner Kunze, Poemas, trad. Luz Videira e Renato Correia, Porto: Paisagem Editora, 1984, p. 29.

Thursday, December 16, 2010

ORAÇÃO DEVOTA



"Dos homens pequeninos,
libera nos Domine.

Dos homens pequeninos que são poetas
libera nos Domine.

Dos homens pequeninos que são poetas e críticos
libera nos Domine.

(Devia ser proibido que alguém,
pretendendo-se a poeta e crítico,
tivesse menos de 10 cm da altura média
da raça a que pertença)."


Jorge de Sena, Dedicácias, 2ª ed., Lisboa: Guerra e Paz, 2010, p. 27.

Wednesday, December 15, 2010

VERDADES



"Os santos esculpidos tiveram muito maior influência no mundo do que os santos vivos."


Lichtenberg, Aforismos, trad. João da Fonseca Amaral, Lisboa: Estampa, 1974, p. 19.

Tuesday, December 14, 2010

REBENTAÇÃO



"São outras as paisagens quando alguém
as vê pela janela do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida."


Luís Miguel Nava, "Rebentação", in Poesia Completa, org. Gastão Cruz, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 127.

Sunday, December 12, 2010

A VERDADE



"Pois quem não sente bater o coração, nem de tristeza, nem de alegria, não pode ser considerado um verdadeiro ser humano."


Selma Lagerlöf, O Imperador de Portugal, trad. Esther de Lemos, Lisboa: Ulisseia, 2006, p. 11.

Saturday, December 11, 2010

À FORMA



"A Forma não se agarra fotograficamente:
é entre as mentiras
a que menos mente.
Seria falta de respeito pô-la de lado,
ou pedantismo, ou cultivada ignorância.

Porque a Forma não habita as viscosas vísceras,
Não nasce de um semítico (e não somítico!)
clamor,
nem de uma raiva
contra as ditas cujas convenções
literárias ou sociais
mas começa a partir dos abanões da atenção
quando estamos sentados num ócio moderno
e tocamos com os lábios o café forte
e a língua se torna escura como a morte.

Como não ressurgem os espelhos
que mostram a saliva acastanhando-se
só a chávena se torna evidente no seu vazio lacado
com a borra inútil e muita do café turco.

A Forma vem depois das definições:
essa idade pré-histórica de conceitos
onde os sentidos são dinossáurios escorreitos
e se camuflam de acordo com os "hiperescópicos" comentadores
fazendo derivar qualquer coisa do seu inconsequente anseio.

A Forma, meus caros, é a cristalização do entusiasmo,
é a ninfa sorrindo nas ondas atapetadas de azul,
é a casa pensada nocturnamente
como uma varanda sobre o mar apaziguado,
aplainado,
liso,
cool,
cortado obliquamente pelo sulco de um navio."


Pedro Proença, O Homem Batata, Lisboa: Parque das Nações, 2000, pp. 156-158.

Thursday, December 9, 2010

AUTOBIOGRAFIA ?



"E eu fico abandonada
na cerca de gelo ferida.

Inda a neve me não pôs
nos olhos a sua venda.

Agarram-se a mim os mortos,
Nenhuma voz me nomeia.

Ninguém me ama, nem por mim
acendeu uma candeia."


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado, trad. João Barrento e Judite Berkhemeier, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 85.

Wednesday, December 8, 2010

DOS NEGÓCIOS E SUAS CONTRAPARTIDAS



" EU (sentindo um vento extremamente glacial): - Como? Isso é novo para mim. Que significa essa cláusula?
ELE: - Significa renúncia, e nada mais. Pensas, acaso, que os ciúmes têm o seu domicílio somente nas alturas, e não nas profundezas também? Tu, ó distinta e bem-feita criatura, prometeste-te e uniste-te a nós. Não te será permitido amar.
EU (rindo-me involuntariamente): - Não amar? Ó pobre Diabo! Queres então justificar realmente a tua reputação de burrice e pendurar ao teu pescoço um chocalho, como se fosses um gato? Como é possível que tenciones basear negócios e promessas num conceito tão maleável e capcioso como é... o amor? Desejará o Diabo proibir a volúpia? Caso contrário, deverá aceitar em troca a simpatia e até mesmo a caritas, sob pena de ser burlado, como está escrito no Livro. Aquilo que apanhei e que, segundo afirmas, faz com que me tenha prometido a ti - de que, dize-me, deriva aquilo, a não ser do amor, ainda que este haja sido envenenado por ti, com a licença que Deus te outorgou? A aliança que nos liga, se é que te devo crer, tem, ela mesma nexo com o amor, imbecil que és! Pretendes que eu consinta e que me encaminhe para o bosque, para a encruzilhada das quatro veredas, em prol da minha obra. Mas assevera-se que a própria obra anda ligada ao amor.
ELE (proferindo uma risada nasal): - Dó, ré, mi! Podes ter a certeza de que as tuas fintas psicológicas não produzem sobre mim maior efeito do que as teológicas! Psicologia? Por amor de Deus! Ainda acreditas nela? Mas isso é a mais execrável mentalidade burguesa do século XIX! A nossa época está saturada dela até aqui. Em breve esse modo de pensar provocará apenas a sua raiva, e quem incomodar a vida, introduzindo nela a psicologia, vai simplesmente levar uma pancada na cabeça. Nós entrámos num período, meu caro, que não quer ser importunado pela psicologia... Isto, só de passagem. A minha condição era clara e correcta, determinada pelo legítimo zelo do Inferno. O amor fica-te proibido, porque queima. A tua vida deve ser frígida, e, portanto, não tens o direito de amar pessoa alguma."


Thomas Mann, Doutor Fausto, trad. Herbert Caro, 4ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 337-338.

Tuesday, December 7, 2010

EM SHANGRI-LA



" - A gema tem facetas - disse o chinês -, e é possível que muitas religiões sejam moderadamente verdadeiras.
- Concordo com isso - declarou Bernard, entusiasmado. - Nunca acreditei em zelos sectários. Chang, você é um filósofo, não me quero esquecer dessa sua observação. «Muitas religiões são moderadamente verdadeiras.» Vocês lá de cima da montanha devem ser um grupo de tipos sensatos, para terem-no descoberto. E têm razão, estou absolutamente certo disso.
- Mas nós - respondeu Chang, sonhador - estamos apenas moderadamente certos."


James Hilton, Horizonte Perdido, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1986, p. 81.

Monday, December 6, 2010

AVISOS À NAVEGAÇÃO 4



"- É o que me faz ter piedade de vós - diz-lhe então Dom Pedro.
- E porquê? - perguntou Dom Rodrigo.
- Porque uma mulher inteligente vos engana mais cedo ou mais tarde - respondeu Dom Pedro. - Sabeis - acrescentou -, pelo relato que vos fiz das minhas aventuras, como fui defraudado e juro-vos que se encontrasse uma mulher tão estúpida como sei que as há inteligentes, daria largas por ela tudo o que sei de galantaria e preferi-la-ia à própria sensatez, quisesse ela escolher-me para seu namorado."


Paul Scarron, Precaução Inútil, trad. Honório Marques, Lisboa: Teorema, 2004, p. 15.

Sunday, December 5, 2010

SOB AS OLIVEIRAS


"Eu tinha então nove anos, tinha pneumonia e era Domingo de Ramos.
«Que queres que te traga, Musia, da festa de Ramos?» - a minha mãe já vestida para sair rodeada assimetricamente - por um lado Andriucha com a sua nova capa do colégio que o fazia ver-se maior ainda e por outro Asia, com o meu casaco do ano anterior, que a ela chegava até aos pés e a tornava ainda mais pequena. «Um diabo numa garrafa!» - disse imediatamente, com a mesma impetuosidade com que o Diabo havia saído da garrafa. «Um diabo? - surpreendeu-se a minha mãe -, e não um livro? Ali também os vendem, há lojas inteiras com eles. Por dez copeques podem-se comprar até cinco livritos sobre a defesa de Sebastópolis, por exemplo, ou sobre Pedro, o Grande. Pensa nisso.» - «Não, mesmo assim... um diabo...» - disse, em voz muito baixa, com dificuldade e vergonha. - «Bom, se queres um diabo trago-te um diabo.» - «Eu também quero um diabo!» - disse imediatamente a minha eterna imitadora Asia. - Não, não terás nenhum diabo!» - repliquei eu em voz baixa e ameaçadora. «Mamã! Ela diz que eu não vou ter nenhum diabo!» - «Bom, claro que não... - disse a mamã -. Em primeiro lugar, Musia disse primeiro, em segundo, para quê comprar duas vezes a mesma coisa e ainda por cima uma tontice dessas? De qualquer maneira, vai partir-se.» - «Mas eu não quero um livro sobre Pedro, o Grande! - começou a guinchar Asia -. Também se partirá!»"


Marina Tsvietaieva, O Diabo, trad. Manuel Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, pp. 51-52.

Saturday, December 4, 2010

NOVA DEMONOLOGIA


"«Isso mesmo... Mas é engraçado, filho, que tu tenhas acertado com certas coisas que estou certa que nunca te contei. É claro, não tem importância nenhuma... Que coisas curiosas que são os sonhos! Como é que se pode arranjar assim uma história, em que há coisas verdadeiras - e que a própria pessoa não podia adivinhar - e tantos grandes disparates, como o comboio e a ponte e o subterrâneo?»

Ingrata humanidade! Assim se agradeceu ao Diabo!"



Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 66.

Friday, December 3, 2010

DA TENTAÇÃO, QUE PODIA SER DE PESSOA



"EU: - Então quereis vender-me tempo?
ELE : - Tempo? Unicamente algum tempo? Não, meu caro, não é só com esse artigo que o Diabo faz negócios. Só ele não nos faria merecer o preço do fim que será nosso. O que importa é a espécie de tempo que se fornece! Um tempo grandioso, um tempo louco, um tempo totalmente endiabrado, com fases de júbilo e de folia, mas também, como é natural, com períodos um tanto miseráveis ou mesmo inteiramente miseráveis. Não tento negá-lo e até o realço orgulhosamente; pois é assim que deve ser, de acordo com a natureza e a mentalidade dos artistas, que, como se sabe, tendem a exceder-se em ambas as direcções, e para os quais é perfeitamente normal ultrapassarem um pouco os limites. Na sua vida, o pêndulo vai ininterruptamente de cá para lá, entre a exuberância e a melancolia. Esse vaivém é comum; é, por assim dizer, ainda burguesmente moderado à maneira dos nuremberguenses, em comparação com aquilo que nós propiciamos. Pois, nesse género, oferecemos o máximo: proporcionamos enlevos e iluminações, experiências de desembaraço e desregramento, de liberdade, segurança, facilidade, sensações de poder e triunfo, que fazem o nosso homem perder a fé nos seus próprios sentidos e ainda lhe proporcionam uma admiração colossal pelas suas próprias realizações, que até pode induzi-lo a renunciar de bom grado a qualquer estima que venha de outros e de fora, sob o frémito do narcisismo e até mesmo o delicioso horror a si, cujo efeito o leva a considerar-se porta-voz da Graça e monstro divino. E, do outro lado, há de vez em quando descidas igualmente profundas, igualmente gloriosas, não só a vácuos e ermos e impotentes desolações, mas, também a dores e enjoos. Esses são, aliás, males familiares, que sempre existiram e pertencem à índole da gente; apenas se intensificam notavelmente em virtude da iluminação e da já mencionada embriaguez. São dores que se aceitam com prazer e orgulho em troca de enorme gozo, dores que conhecemos dos contos de fada, as dores da Pequena Sereia, à qual parecia que facas afiadas lhe feriam as belas pernas humanas, adquiridas, após ter entregue o seu rabo de peixe. Conheces a Pequena Sereia, de Andersen, não é verdade? Ela poderia ser uma boa amante para ti. É só pedir, e meto-a já na tua cama.
EU: - Será que não te podes calar, animal cretino?"


Thomas Mann, Doutor Fausto, trad. Herbert Caro, 4ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 313-314.

Thursday, December 2, 2010

DA PROFUNDA CRUELDADE HUMANA



"Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
aos textos"


Adília Lopes, "Clube da Poetisa Morta", in Caras Baratas - Antologia , selecç. Elfriede Englemayer, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 126.

Wednesday, December 1, 2010

EM DEZEMBRO TREME DE FRIO CADA MEMBRO



"Ainda há pouco prometiam o vento
para amanhã; e a chuva, que vem com o vento,
pode vir também amanhã, quando o céu carregado
de nuvens atravessar o continente, em
direcção não sei aonde. E onde irei eu
estar, amanhã, quando essas nuvens tiverem
desaparecido, e só as árvores
com os ramos partidos lembrarem que o
vento lhes roubou as folhas? É possível que
eu possa vir a estar entre essas folhas,
ou debaixo delas, espessas com a humidade
da terra, como se fossem um manto; mas
não sei se era isso que o vento me queria dizer
quando me falava, por entre as frinchas da
porta, e só os ruídos secretos da noite
lhe respondiam. Talvez por isso, deixei-me
ficar acordado. Nem sempre se podem ouvir
esses diálogos; nem adivinhar, na manhã
futura, o destino previsível de um ser."


Nuno Júdice, Meditação sobre ruínas, 3ª ed., Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 93.