Wednesday, November 30, 2011

ÁGUAS 3


"Aqui     o rio é Homem
homem da raça de Orfeu:
Seu ofício   noite e dia
é replantar a voz nas pedras
no osso   nas raízes que o cercam

- para que a beleza e a rebeldia
não se percam
Luís Veiga Leitão, Longo Caminho Breve, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 93.

Tuesday, November 29, 2011

ÁGUAS 2



"Tudo nos mostra duas caras, pois tudo é interior e exterior ao nosso ser. Somos a realidade idealizada e o ideal realizado. Tudo nos mostra duas caras, até o sol. Tem uma, de oiro, e outra, de prata. Ou nos visita directamente, dum modo esplendoroso, ou nos envia o seu espectro de noite."

Teixeira de Pascoaes, Pensamentos e Máximas, selecç. e apresentação de António Cândido Franco, Maia: Cosmorama Edições, 2010, p. 108.

Monday, November 28, 2011

ÁGUAS 1


" - O que é essencialmente repugnante? - disse. - Pressupõe-se teoricamente que o amor é qualquer coisa ideal, elevada, mas na prática o amor é uma coisa repugnante, suína, até dá nojo e vergonha falar dele, lembrá-lo. Como é nojento e vergonhoso, deveríamos entendê-lo como tal. Mas não, faz-se de conta que o nojento e o vergonhoso é o belo e o elevado. Quais eram os primeiros indícios do meu amor? Era entregar-me aos excessos animais, sem me envergonhar e, sabe-se lá porquê, orgulhando-me desses excessos físicos, sem pensar minimamente na vida espiritual dela nem, sequer, na sua vida física. Eu espantava-me, não percebia donde provinha a nossa raiva, mas o problema era perfeitamente claro: a raiva não era mais do que o protesto da natureza humana contra o animal que a oprimia."

Lev Tolstói, A Sonata de Kreutzer, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2010, p. 55.

Sunday, November 27, 2011

PROLEGÓMENOS DE UMA VISITA A CEIDE



"- Sim, eu sei - gritava mais alto do que nós o senhor grisalho -, os senhores referem-se àquilo que é considerado existente, mas eu falo do facto. Qualquer homem, em relação a uma mulher bonita, sente aquilo a que os senhores chamam amor.
- Ah, é horrível o que está a dizer; é que há mesmo entre as pessoas um sentimento que se chama amor e que não dura apenas anos ou meses, mas toda a vida. De acordo?
- Não, isso não existe. Supondo até que um homem prefira determinada mulher para toda a vida, o mais provável é que essa mulher prefira outro homem, e sempre assim foi e continuará a ser neste mundo - disse ele. Tirou a cigarreira e acendeu um cigarro.
- Mas também é possível o amor recíproco -  disse o advogado.
- Não, não é possível - retorquiu o senhor -, é impossível, da mesma forma que é impossível que, numa carroça cheia de ervilhas, duas delas, marcadas, fiquem juntas. Além do mais, o problema não é apenas o da impossibilidade, mas sim, isso de certeza, o da saciedade. Amar toda a vida uma pessoa é a mesma coisa que dizer que uma só vela arderá toda a vida - disse ele, inspirando avidamente o fumo."
Lev Tolstói, A Sonata de Kreutzer, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2010, p. 19.

Saturday, November 26, 2011

O LIRISMO D' OUTR'ORA


"É tão franzina, tão leve,
Que a gente, vendo-a passar,
Fica-se pasmada a olhar
Com medo que o vento a leve.

Mas, vendo a flor por quem peno,
Ninguém, ninguém imagina
Que o seu sorrir tem veneno,
Que o seu olhar assassina.

Porém nada há de mais belo
Que essa mulher que me atrista.
Suprema glória a do artista
Que a tivesse por modelo!

Vá na rua, entre na sala,
Vendo-a indolente e sem pose,
Ergue a voz a Apoteose
Por toda a parte a saudá-la,

Desde a alemã, flor gelada,
Até à ardente sultana,
Da moderna sevilhana
Às deusas da antiga Helada.

Qual que em graça a sobreleve
E mais belezas encarne?
Diluí rosas em neve,
Ter-lhe-eis o misto da carne.

Delgada, esbelta e altaneira,
Tem a elegância dos mastros
Basta e preta a cabeleira
É-lhe uma noite sem astros.

Seu braço jáspeo e venusto,
Quando ela me acinge ao seio,
Enrosca-se no meu busto
Tal como a vide no esteio.

Vendo-a passar tentadora,
Mais atraente que o mal,
Eu julgo-a a Eva d' outrora
E creio Adão meu rival.

É bela, sim, mas traidora!
Dum nervosismo de gata,
A cada beijo devora,
A cada carícia mata.

Porém que morte tão bela
A nos seus lábios bebida!
Quero bebê-la, bebê-la...
É morte que dá mais vida."

Rodrigo Solano, "Ela" [1900], poema não incluído em Fumo (1915 [2010]) 

Friday, November 25, 2011

TEIA E FANTASMA


"Vindo o Natal, lembrou-se a gente da Levada de que somente um ano decorrera sobre o aparecimento da menina, conquanto mais lhe parecesse que ela estava em tudo o que a memória recordasse. Era uma memória adormentada que se movia entre um pó de ouro e escuridão. Iluminava-se uma e outra cena, numa escolha do acaso, e não havia maneira de as ligar logicamente.
Estavam os Levadeiros fatigados, como se se tivessem concedido demasiado tempo para o sono. E poder-se-ia mesmo dizer a seu respeito que viviam aquela angústia dos fantasmas quando fazem as suas expedições terrenas junto dos que pensavam ser-lhes familiar e se tornou para sempre estranho e inacessível."
Hélia Correia, Insânia, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 125.

Thursday, November 24, 2011

A POBREZA DOS POETAS (EM DIA DE GREVE NACIONAL)


"A meu ver, no conceito do versejador, Camões tinha que trazer o cinto bem atarraxado senão escorregavam-lhe os calçotes pela barriga abaixo. Era portanto dos que, à margem da boa sociedade - essa que cumpria com os mandamentos da Igreja e consorciava em bródios e aniversários -, tocava berimbau, isto é, fazia-lhe seus acrósticos, seus vilancetes, suas odes e ditirambos. A troco de quê? Além doutras espécies de salário, de vitualhas. Dêem-lhe as voltas que quiserem, à semelhança dos aedos que enchiam a escudela à porta, onde se celebravam bodas e dionisíacas, Camões recebia em casa a sua merenda aviada. Não a ia comer à mesa dos fidalgos; comia-a na mesa de pinho do Mal-Cozinhado de suciata com outros do seu pendão, ou na casinha da Mouraria, no recanto silencioso da pobreza e conformidade."

Aquilino Ribeiro, Luís de Camões, vol. I, Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 167.

Wednesday, November 23, 2011

AS VIS PRISÕES (ONTEM COMO HOJE)


"Nada de mais arbitrário que dar a Camões o conde de Linhares como seu patrono no Paço. D. Francisco de Noronha devia cuidar do reumatismo contraído nos nevoeiros do Norte. O fidalgo, o galgo e o taleigo do sal junto do fogo os heis-de achar.
Além da qualidade de escudeiro, que não levava longe, Storck prevalece, para introduzir Camões no Paço, do prestígio que lhe advinha com o seu saber humanista e a aura, que soprava já, de sua arte primorosa. Está-se mesmo a ver Goethe na corte de Weimar, esquecido o nosso doutor Storck do tempo e do espaço. E na mesma ordem de transposições emite a respeito dos vates que se apinhavam às portas de el-rei, como hoje os famintos no átrio das Cozinhas Económicas: quem quisesse ter foros de poeta devia apresentar como prova de concurso uma écloga.
Àquela altura da vida, Camões, concedendo de barato que era um humanista consumado, não tivera o ensejo de manifestar-se. Os tempos eram pouco propensos à intelectualidade."
Aquilino Ribeiro, Luís de Camões, vol. I, Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 119.

Tuesday, November 22, 2011

O MANTO DIÁFANO, ETC.


"O excelente Willelm Storck fantasia Luís de Camões de rucksack às costas como um wandervolgel, distanciando-se de Coimbra pela «ponte lapídea do Mondego» depois de ouvir os paternais e salutares conselhos de D. Bento. No bornal, a meio das duas peças de roupa branca, um Virgílio e um Ovídio, um Petrarca e um Ariosto; na escarcela, uns magros cruzados.
Como se trata de cinco a seis dias de marcha para o Sul - pedibus calcantibus, já se deixa ver -, vai batendo à aldraba de mosteiros e hospícios e pedindo dormida. Ninguém nega a hospitalidade ao douto sobrinho do Dom Prior, pessoalmente um simpático e jucundo andarilho. A jornada com tal agasalho lhe é amena. Faltam-lhe só entoar pelos velhos caminhos, entre madressilvas e vidoeiros, uma canção tirolesa. "
Aquilino Ribeiro, Luís de Camões, vol. I, Lisboa: Livraria Bertrand, 1974, p. 87.

Monday, November 21, 2011

NINGUÉM SE ACOITE


"Os astros virginais, as límpidas estrelas
Que eu vejo reluzir nas amplidões do ar!
Pintam com mimo e graça extraordinária as telas.
São artistas de Deus: sabem também pintar!

A sua luz desenha estranhas aguarelas
À superfície da água, e vão assim criar
As estrelas gentis, tão simples e tão belas
Que vivem nas regiões fantásticas do mar.

Cada estrela do céu, silenciosa e calma,
Com sua luz imprime, e forma, estampa e cria
Uma estrela do mar, dando-lhe vida e alma.

O mar é, pois, o céu; mas, ah! ninguém se acoite
Nesse infinito azul... que se na Altura é dia,
Nesse outro mundo, o oceano, é noite... e sempre noite!"
António Nobre, Primeiros Versos, Porto: Lello & Irmão Editores, 1984, p. 142.

Sunday, November 20, 2011

FAMINTA A TRISTE NATUREZA


"Se eu me vira num bosque, onde não desse
Sinal, vestígio humano de habitado,
De verdenegras ramas tão fechado
Que inda ali de dia anoitecesse;

Se então lá de ua balça ao longe houvesse
Gemendo um mocho, e tudo o mais calado;
Só dentre alguns rochedos pendurado,
Com som medonho, um rio ali corresse;

Enfim num lugar tal onde os meus dias
Consumindo-se fossem na certeza
De não tornarem mais as alegrias;

Faminta ainda a triste natureza,
Cercada ali de tantas agonias,
Nem então se fartara de tristeza."
João Xavier de Matos, in Poetas Pré-Românticos, selec. Jacinto do Prado Coelho, 2ª ed., Coimbra: Atlântida, 1970, p. 35.

Saturday, November 19, 2011

OS ENCÓMIOS


"- Volta um pouco a cabeça - dizia-lhe eu. - Assim. Obrigado. Não te mexas, peço-te. És tão bela como um chapéu alto, lisa, redonda sobre ti mesma, com os cotovelos fincados no chão. O teu corpo é como um ovo posto à beira-mar. És concentrada como  salgema e transparente como um cristal de rocha. És um prodigioso desabrochar, um turbilhão imóvel. O abismo da luz. És como uma sombra que desce a profundidades incalculáveis. És como uma erva multiplicada milhares de vezes."
Blaise Cendrars, Moravagine, trad. Ruy Belo, 2ª ed., Lisboa: Cotovia, 1992, p. 60.

Friday, November 18, 2011

CELEBRAR DAGUERRE (224º ANO)


"Toda a fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que a sua invenção introduziu na família das imagens. As primeiras fotos que um homem contemplou (Niepce diante da Mesa Posta, por exemplo) devem ter-lhe parecido tão semelhantes a pinturas como duas gotas de água (sempre a camera obscura); contudo, ele sabia que se encontrava face a face com um mutante (um marciano pode assemelhar-se a um homem.) A sua consciência colocava o objecto encontrado fora de toda a analogia, como o ectoplasma «daquilo que tinha sido». Nem imagem, nem real, um ser novo, verdadeiramente: um real que já não pode ser tocado.
Talvez tenhamos uma resistência invencível em acreditar no passado, na História, a não ser sob a forma de mito. Pela primeira vez, a Fotografia acaba com essa resistência: o passado é, a partir de agora, tão seguro como o presente, aquilo que se vê no papel é tão real como aquilo que se toca. É o advento da Fotografia - e não, como foi dito, o do cinema, que partilha a história do mundo."

Roland Barthes, A Câmara Clara (Nota sobre a fotografia), trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 98.

Thursday, November 17, 2011

CIVILIZAÇÃO


"A civilização actual é a guerra acesa; está ligada ao assassinato em massa, como o tuberculoso ao Contrato Social e o leproso à Bíblia."

Teixeira de Pascoaes, Pensamentos e Máximas, selecç. e apresentação de António Cândido Franco, Maia: Cosmorama Edições, 2010, p. 144.

Wednesday, November 16, 2011

DESEJAR UMA IMAGEM DE CONTRADIÇÃO OU O CONFRONTO DOS ELEMENTOS



"Já afirmei que a actividade da consciência é uma alucinação congénita. Como a nossa origem é aquática, a vida é o ritmo perpétuo de uma água amornada. Temos água no ventre e nos ouvidos. Percebemos o ritmo universal  no peritoneu, que é o nosso tímpano cósmico, um contacto colectivo. O nosso primeiro sentido individual é o ouvido, que percebe os ritmos da nossa vida particular, individual. É por isso que todas as doenças começam por perturbações auditivas que são, à semelhança das eclosões da vida submarina, a chave do passado e as primícias de um devir inexaurível. Portanto, não era que eu, médico, quisesse fazer parar semelhante desenvolvimento. Encarava antes a possibilidade de acelerar, de multiplicar esses acidentes tónicos e de conseguir realizar, mediante uma modificação prodigiosa, o acorde perfeito de uma nova harmonia. O futuro."
Blaise Cendrars, Moravagine, trad. Ruy Belo, 2ª ed., Lisboa: Cotovia, 1992, p. 38.

Tuesday, November 15, 2011

A VONTADE DE PARTIR


"Metido anda o mundo em grande mudança e mais difícil nos é entender os sinais dela do que os pássaros migradores saber quando têm de partir."

Luís Filipe Castro Mendes, Correspondência Secreta, 2ª ed., Lisboa: Quetzal Editores, 1999, pp. 34-35.

Monday, November 14, 2011

ASSIMETRIAS


"Honram, por ignorância, o mundo
Os homens, nesta desprezível vida;
Por ele se combatem, como cães, que a fundo
Se atiram sobre caça ferida."

Ibn Sara (séc. XII), in Adalberto Alves, O Meu Coração é Árabe - a poesia luso-árabe, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 105.

Sunday, November 13, 2011

GREEN IS THE ANSWER


"Que terá este Portugal - penso eu - para assim me atrair? Que terá esta terra, por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Não sei; mas quanto mais lá vou mais desejo voltar. Cheguei a crer que estes extremos ocidentais deram as mãos espirituais aos extremos orientais, aos da Índia, e chegaram ao triste miolo da sabedoria, à compreensão da inutilidade final de todo o esforço. Dir-se-ia que ali pousa a lúgubre sabedoria do Eclesiastes. Nesse povo triste, tristíssimo, a gente diverte-se, sem dúvida, mas diverte-se como se dissesse: comamos e bebamos, que amanhã morreremos."
Miguel de Unamuno, Por terras de Portugal e da Espanha , trad. José Bento, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 59.

Saturday, November 12, 2011

ACIMA DA VERDADE


"Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.

Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,

Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza."

Ricardo Reis (Fernando Pessoa), Odes, org. António Quadros, 3ª ed., Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 113.

Friday, November 11, 2011

ONZE DO ONZE DO ONZE

(museu regional de Lamego)

"O que me dá prazer não é o vinho, não!
Nem a música, nem o canto.
Apenas os livros são o meu encanto
E a pena: A espada que tenho sempre à mão."

Al-Kutayyr (séc.XIII), in Adalberto Alves, O Meu Coração é Árabe - a poesia luso-árabe, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 138.

Wednesday, November 9, 2011

DAS PALAVRAS À ACÇÃO 2


"5.1. José chamou o seu filho à parte e repreendeu-o: «O que te deu? Estas pessoas sofrem, detestam-nos e querem mandar-nos embora.» Jesus respondeu: «Eu sei que as palavras que dizes não vêm de ti; também por respeito para com a tua pessoa, eu me calarei. Mas eles receberão o seu castigo.» Logo os queixosos foram fulminados de cegueira."
Evangelho do Pseudo-Tomé, in Evangelhos Apócrifos, 2ª ed., trad. Madalena Cardoso da Costa, Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 103

Tuesday, November 8, 2011

DA PALAVRA À ACÇÃO 1


"4.1. Uma vez, Jesus passeava pela aldeia, quando uma criança, correndo, o magoou no ombro. Irritado, Jesus disse-lhe: «Tu não prosseguirás a tua estrada.» No mesmo instante, a criança caiu morta. Perante isto, alguns exclamaram: «Donde vem esta criança, cujas palavras se tornam imediatamente realidade?»
2. Os pais do jovem morto foram queixar-se a José: «Com um filho como o teu, não podes ficar connosco na aldeia, ou então ensina-lhe a abençoar em vez de amaldiçoar, pois ele mata as nossas crianças.»"

Evangelho do Pseudo-Tomé, in Evangelhos Apócrifos, 2ª ed., trad. Madalena Cardoso da Costa, Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 103.

Monday, November 7, 2011

OS BEM-AVENTURADOS


"Há pessoas que possuem tudo quanto há, mas ninguém acredita; ricos tão pobres e nobres tão ordinários que a incredulidade que suscitam acaba por os tornar tímidos e lhes dar uma atitude suspeita. Em certas mulheres, as mais belas pérolas parecem falsas. Em outras, ao contrário, as pérolas falsas parecem verdadeiras. Do mesmo modo, há homens que inspiram uma confiança cega e gozam de privilégios a que nunca poderiam pretender naturalmente. Guilherme Tomaz pertencia a essa raça bem-aventurada.
Acreditavam nele. Não precisava de tomar quaisquer precauções nem de fazer quaisquer cálculos. Uma estrela de mentira levava-o aos fins que almejava sem rodeios. Nunca arvorava, por isso, a máscara perturbada e perseguida dos malandros. Não sabendo nadar, nem patinar, era capaz de dizer: sei patinar e sei nadar. Todos os viam imediatamente a patinar e a nadar. Este condão é dado à nascença por uma fada especial. Há pessoas que conseguem triunfar, não tendo tido na hora do nascimento nenhuma fada, a não ser essa.
Nunca acontecia a Guilherme fazer o seu exame de consciência ou pensar: «Como poderei eu sair deste beco?», ou «Estou a fazer batota», ou «Sou um homem de génio». Vivia profundamente o seu próprio mito.
Quanto mais o vivia, melhor se incorpava, mais fogo lhe trazia, dando-lhe aquela franqueza que convence naturalmente."
Jean Cocteau, Tomaz, o Impostor, trad. António Quadros, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., pp. 69-70.

Sunday, November 6, 2011

PALAVRAS E SERES


"Dividia as gemas das claras dos ovos estrelados e quando comia uma não comia a outra. Dizia que há dias para comer a gema e outros para comer a clara.
- Repete comigo o que eu disser, Jozef. As palavras são tudo. Olha: a palavra frio desce. A palavra calor sobe. A palavra ninho tem ovos lá dentro e um pássaro a dormir. Há quem não queira que confundamos as palavras com as coisas, que o mapa não é o território, mas as palavras é que são as coisas. Há mapas, mas não há nenhum território. A palavra porta abre e fecha; e a palavra janela, se for velha, tem o vidro partido. A palavra água ou se bebe ou afoga-nos. Porque há pessoas com sede e pessoas que se afogam. É assim que se separa a humanidade: uns pegam nas coisas para morrer e outros para viver. E há a palavra mar que afunda todos os navios.
Frantiska olhava em frente enquanto, com o pé, desenhava círculos na terra.
- Olha: são tão importantes, Jozef, que sem elas éramos ocos. Sem a palavra vertical andávamos a rastejar e sem a palavra horizontal só poderíamos sonhar acordados. Os sonhos de dormir são mais distantes e vêm de lugares tão antigos que nunca lá poderemos chegar a caminhar pelo tempo, pelo passeio, pelos jardins. Só lá chegamos deitados, adormecidos até ao chão. Repete comigo, Jozef: cova, dedo mindinho, sete..."
Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Lisboa: Editorial Caminho, 2011, p. 46.

Saturday, November 5, 2011

DAS COISAS BANAIS


"- Parece-me uma grande felicidade que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que é a primeira vez que o fazemos.
- É uma grande tristeza - disse ela a soluçar.
- É a maior infelicidade. Eu, quando olho para as coisas quero que elas me sejam familiares, como o meu tio e o meu marido, como o pão que se come às refeições. Quero deitar-me sempre com o mesmo homem, com os mesmos lábios. Quero que os lençóis de hoje me pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam diferentes. Não quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam velhos, quero que sejam os de sempre. Não me quero sobressaltar como quando era jovem. Uma pessoa só pode ter paz quando está aos pés das mesmas coisas, quando nem repara nelas, porque elas já fazem parte de si, como se as tivese comido e mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue. Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés."
Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Lisboa: Editorial Caminho, 2011, pp. 16-17.

Thursday, November 3, 2011

A EXCELENTE SENHORA 3



"Algum tempo depois deixou de se ouvir falar dela. Mas ao fim de cinco anos o homem dos exorcismos morreu, e ela arriscou-se a reaparecer. Tinha, no entanto, modificado o carácter e era agora tratável e melhor educada.; rodava por ali em silêncio e limitava-se a uma aparição de cinco em cinco anos. A acreditar no barão, ela manteve-se sempre fiel a este hábito; ele está absolutamente persuadido de que, em cada dia cinco de Maio de cada quinto ano, logo que o relógio dá a uma hora, a porta da sala adoptada por ela abre-se (notai que esse aposento foi condenado há quase um século) e o fantasma avança com o seu candeeiro e o seu punhal, desce a escada da torre de Leste e atravessa o salão. Nessa noite o porteiro deixa todas as portas do castelo abertas, por respeito desta aparição; não porque essa precaução seja de qualquer modo entendida como necessária, uma vez que ela poderia facilmente passar pelo buraco da fechadura, se isso lhe apetecesse, mas simplesmente por delicadeza e para a impedir de perder, por uma saída inconveniente, a sua dignidade de fantasma.
- E para onde vai ela, ao abandonar o castelo?
- Para o céu, espero. Mas, se vai, o lugar não é seguramente do seu gosto, uma vez que regressa passado uma hora. Vai então para o seu aposento e fica sossegada por mais cinco anos."
Matthew Gregory Lewis, O Monge, trad. Egito Gonçalves, Porto: Editorial Inova, 1974, p. 131.

Wednesday, November 2, 2011

A EXCELENTE SENHORA 2


"- Nunca falou com aqueles a quem encontrava? - perguntei-lhe.
- Não. As amostras que ela dava, no meio da noite, do seu talento de conversação não eram evidentemente de molde a tentar quem quer que fosse. Algumas vezes o castelo estremecia com juramentos e imprecações; pouco depois repetia um Padre Nosso! ora uivava as mais terríveis blasfémias, ora cantava o De Profundis tão metodicamente como se ainda estivesse no coro. Em resumo, tinha o ar duma pessoa singularmente caprichosa. Mas, quer praguejasse quer rezasse, quer fosse ímpia ou devota, tratava sempre de apavorar os seus ouvintes. O castelo tornou-se praticamente inabitável, e o proprietário assustou-se de tal modo com essa festa nocturna que uma bela manhã foi encontrado morto, na cama. Esse acontecimento deu à monja um grande prazer, porque ela fez mais barulho do que nunca. Mas o barão seguinte mostrou-se demasiado esperto para ela: fez a sua entrada, acompanhado por um célebre perito em exorcismos que não receou encerrar-se toda a noite na sala que ela assombrava. Segundo parece, ele teve um rude combate a travar contra ela antes de lhe arrancar a promessa de que iria ficar sossegada. A monja era teimosa, mas ele era ainda mais, e por fim ela consentiu deixar os habitantes do castelo dormir a noite inteira."
Matthew Gregory Lewis, O Monge, trad. Egito Gonçalves, Porto: Editorial Inova, 1974, pp. 130-131.

Tuesday, November 1, 2011

A EXCELENTE SENHORA (DIA DE TODOS-OS-SANTOS)



"- Oh, não! - respondeu ela. - É a invenção duma cabeça mais forte que a minha. Como é possível que tenhais estado três meses em Lindenberg sem ter ouvido falar da monja sangrenta?
- Sois a primeira pessoa a quem ouço pronunciar o seu nome. Peço-vos, quem é essa dama?
- Não vos poderei dizer mais do que sei, que não é muito. Trata-se de uma velha tradição desta família, tradição que se transmitiu de pais para filhos, e à qual se dá crédito firme nos domínios do barão. Ele próprio a crê, e quanto à minha tia, que é naturalmente arrastada pelo maravilhoso, ela duvidaria mais depressa da verdade da Bíblia do que da monja sangrenta. Quereis que vos conte a história?
Respondi-lhe que ela me obsequiaria muito ao fazê-lo. Retomou o desenho e prosseguiu nestes termos, num tom de gravidade burlesca:
- É surpreendente que em nenhuma das crónicas dos tempos passados se faça menção desta notável personagem. Gostaria bem de vos contar a sua vida, infelizmente foi só depois da sua morte que a sua existência se tornou conhecida. Foi então, e pela primeira vez, que ela entendeu ser necessário fazer barulho no mundo, e, com essa intenção, apoderou-se do castelo de Lindenberg. Como tinha bom gosto, alojou-se na mais bela sala da casa e, uma vez ali instalada, divertiu-se a fazer dançar as mesas e as cadeiras no coração da noite. Talvez tivesse insónias, mas não é coisa que eu tenha podido verificar. Segundo a tradição, esse divertimento começou há cerca de cem anos; era acompanhada por gritos, uivos, gemidos, juramentos e outros ruídos agradáveis da mesma espécie. Embora a citada sala fosse especialmente honrada com as suas visitas, a verdade é que ela não se limitava a esse aposento; de tempos a tempos, aventurava-se nas velhas galerias, ia e vinha pelas vastas salas e por vezes, parando às portas dos quartos, chorava e lamentava-se com grande pavor dos seus habitantes. Nessas excursões nocturnas foi vista por várias pessoas que lhe descrevem o aspecto exterior tal como aqui o vedes, traçado pela mão do seu indigno historiador."
Matthew Gregory Lewis, O Monge, trad. Egito Gonçalves, Porto: Editorial Inova, 1974, pp. 129-130.