Monday, October 31, 2022

ASSOMBRADO

 


"Infeliz aquele cujas memórias de infância só lhe trazem medo e tristeza. Desafortunado aquele que só evoca horas solitárias em vastos aposentos escuros com cortinas pesadas e filas intermináveis ​​de livros antigos, ou vigílias assombradas na espessura sombria de árvores gigantescas cobertas de trepadeiras cujos galhos retorcidos balançam silenciosamente lá em cima."

H. P. Lovecraft, "The Outsider", in El miedo que acecha, trad. Francisco Torres Oliver, Madrid: Valdemar, 2012, p. 121. 

Sunday, October 30, 2022

CONSTRUIR

 



"Construir um objecto com a cena da leitura é interrogação da leitura.
Construir objectos com o ponto de vista luminoso do quotidiano."


Maria Gabriela Llansol, Escrito nas Margens - Livro de Horas VIII, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 61. 

Saturday, October 29, 2022

FOLHAS

 

´

"no divã onde meu olhar se pousou, na realidade, a cama onde dormia, vi repousando a asa de um daimon, trazida pelo prato esquerdo na balança da justiça, e pensei que tudo podia servir, ser daimon, mas sem a forma divina infantil a que tantas vezes o associamos, uma asa seria bastante

meu deus, por que não nos contentamos com indícios?"


Maria Gabriela Llansol, O Senhor de Herbais, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 232. 

Friday, October 28, 2022

JUDAS TADEU

 



"O interesse não está na resposta que desse, mas na prova de que seria possível perguntar onde está guardada a cor do mundo, sem que a linguagem se nos estilhaçasse na boca. Os mundos não acabariam. Nem tal apocalipse seria de tentar. Apenas teria sido possível acrescentar-lhe outro. Deixando a fraternidade a cuidar do sapiens, como tem tratado, os objectos tratariam de se colorir de vivo. Não que Deus não durma, e continuará a dormir enquanto a literatura o acusar de ter criado um esqueleto inclassificável, mas passaria a ocupar-se de coisas mais acessíveis como, por exemplo, feno, palha, imagens indomáveis e ossos calcinados."


Maria Gabriela Llansol, O Senhor de Herbais, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 77. 

Thursday, October 27, 2022

PRECE

 



" O que é uma pessoa que escolheu o belo quando é texto ardente, senão o orante desse enigma? As coisas ignoram se ainda é ser humano __________humano é decisivo. Terreno é um limite. Humano como as ervas deste e do novo mundo. Consciente de que a semente de umas e de outras é, provavelmente, a mesma. Prece é pedir
é também, pensa o corpo
- Pegar nas mais ínfimas das minhas linhas
insiste o caderno"


Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 137. 

Tuesday, October 25, 2022

LIMIAR

 


"Coloquei, por fim, o pé no segundo degrau. Aquele em que aprendemos com a morte dos poetas. E fiquei à escuta. Iria até ao fim, sem ditar uma lágrima à escrita, fossem qual fossem os sons que me chegassem do pátio."

Maria Gabriela Llansol, O Senhor de Herbais, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 42. 

Sunday, October 23, 2022

AFIRMAÇÃO

 



"mas por outro lado poderia romper-se também
num relâmpago visível pelo que se chama céu
a nossa alegria

e voariam pássaros inacreditáveis pelo que se chama céu
e poldros de crinas longas até ao vento
bateriam os cascos nunca ferrados em galope sobre
o que semelhasse campina

e alguém poderia afirmar que nos viu
pela força incontrolável da nossa alegria"


Glória de Sant'Anna, "Poemas do Tempo Agreste", in Amaranto - Poesia 1951-1983, Lisboa: INCM, 1988, p. 235. 

Saturday, October 22, 2022

CHUVA

 


"Caímos lá todos, procurando às apalpadelas um prazer que o mundo inteiro raivosamente ameaçava. Tínhamos vergonha desse desejo, mas a verdade é que tínhamos de nos entregar a ele! É mais difícil renunciar ao amor do que à vida. Neste mundo gastamos o tempo a matar ou a adorar, e fazemo-lo em simultâneo. «Odeio-te! Adoro-te!» Defendemo-nos, sustentando-nos, passamos a vida ao bípede do século seguinte com frenesi, a todo o custo, como se fosse formidavelmente agradável continuar; como se isso, afinal de contas, nos fizesse eternos. Apesar de tudo desejo de nos beijarmos como se nos coçássemos."


Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, pp. 78-79. 

Friday, October 21, 2022

LACUNAS

 



"Quando levantei os olhos da folha em branco:
ali estava o anjo na sala.

Um anjo vulgar,
provavelmente uma das graduações mais baixas.

Não faz ideia, disse ele,
quão desnecessário você é.

Uma só entre as quinze mil cambiantes
da cor azul, acrescentou,

tem mais peso no mundo
que tudo o que você faz ou deixa de fazer,

para nem falar do feldspato
e das Nuvens de Magalhães.

Até a vulgar bonina, que nem mete vista,
deixaria uma lacuna, você não.

Fitei-o nos olhos claros, ele esperava
réplica, uma longa disputa.

Não me mexi. Fiquei à espera
até que ele desapareceu, em silêncio."



Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 115.

Wednesday, October 19, 2022

ABERTURA

 


"Este sonho provoca-me um desejo intenso de conhecimento. Tirar da bruma, extrair do azul para ver a trama do todo e suas ramagens. A memória surpreende-me. A memória é o inverso de conhecer. Mas conhecer tem a sua memória."


Maria Gabriela Llansol, O Sonho é um Grande Escritor  - Livro de Horas VII, Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, p. 175. 

Tuesday, October 18, 2022

REALISMO

 


"Em tudo, a grande derrota é esquecer, sobretudo o que nos fez bater a bota, e batê-la sem nunca chegarmos a compreender até que ponto os homens são sacanas. Quando estivermos de pés para a cova de nada vale armar em espertos mas também não devemos esquecer, devemos contar tudo, sem trocar uma palavra, sobre o que mais perverso vimos nos homens, e só então esticar o pernil e descer. É trabalho que vale a vida inteira."

Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 37. 

Monday, October 17, 2022

CASAL PEDRO 3

 



"Eu levantei-me em pé sobre o catre de pau castanho, pintado de amarelo, e presenciei com os cabelos eriçados o desfecho daquela tremenda luta. O dono da estalagem e o meu criado vieram protocolizar a desordem, distribuindo alguns murros indistintamente, de que resultou a fuga desordenada das galegas, para o seu arraial, ficando considerado o meu quarto campo neutro."

Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1977, p. 199. 

Sunday, October 16, 2022

CASAL PEDRO 2

 



"Descompunham-se em raivosas apóstrofes por causa das mantas, que algumas delas monopolizavam com grave escândalo e frialdade das outras. Dos impropérios passaram a vias de facto. Socaram-se, esgadanharam-se, revolveram-se, creio eu, como uma matilha de cadelas, e vieram de encontrão à porta do meu quarto, que não resistiu ao choque, e deixou entrar aquele embrulho indecifrável de gorgonas em fralda de camisa, que me pareciam, à luz mortiça da vela, executarem uma dança macabra, uma mazurca de demónios!" 


Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1977, p. 199. 


CASAL PEDRO

 



"Pernoitei aí uma vez na minha vida. Compreendi, no quarto que me deram, os suplícios do cristão primitivo atirado ao circo. «Cristão às pulgas!», deveria ser, no Império Romano, um grito de prazer para o paganismo sanguinário, como o fatal «Cristão às  feras!»
Era alta  noite, e eu não podia transigir, dormindo, amigavelmente, com a ferocidade dos insectos, se é que não podemos chamar cetáceos àquelas pulgas, de horrível recordação. No sobrado imediato ao da pocilga em que eu me contorcia nas vascas duma agonia de novo género rosnavam uma boa dúzia de galegas, que vinham da terra a visitarem os respectivos galegos residentes no Porto."


Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1977, pp. 198-199. 

Saturday, October 15, 2022

CENTENÁRIO

 




"- Não acho nada - disse o Touro Azul. - Tem uma certa lógica, mas nada me garante que os milagres tenham alguma lógica.
- Não sou candidata a nenhum milagre. Não sou digna disso com certeza. Eu creio que Nossa Senhora foi subestimada e só lhe deram um papel muito apagado na vida de Cristo. Quando quem levou avante a missão dos apóstolos e financiou a cruzada deles pelo mundo foi ela e mais ninguém. Ensinou-lhes línguas e deu-lhes dinheiro para as viagens. Não herdou uma grande fortuna? É isso que eu quero saber. É tempo de saber como as coisas se passaram realmente. As mulheres são sempre postas de lado quando se trata de grandes causas."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos, 6ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 123. 

DELEITE

 


"Para despertar a alma, Nosso Senhor também costuma usar de outros meios: às vezes, a desoras, estando ela em oração vocal e sem pensar em coisa alguma interior, acha-se de deliciosamente abrasada ou como que repentinamente invadida por um aroma, ou coisa assim, tão penetrante que lhe apanha todos os sentidos. Não digo que cheire mesmo, pois isto não passa de uma comparação mas faz com que a alma sinta realmente que o Esposo ali está; eis que lhe desperta um doce desejo de com ele se deleitar e a dispõe a grandes manifestações de amor e louvor a Deus, bem como a dar-lhe muitas graças."


Santa Teresa de Ávila, "Moradas Sextas", cap. II, in Moradas do Castelo Interior, trad. Manuel de Lucena, Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, pp. 115-16. 

Friday, October 14, 2022

POBREZA

 



"Pobre estética,
esta do asseio da língua!
Limitar, limitar, limitar...
Pobre estética, 
e pobre vida!
Porque a minha estética
(e a dos outros?)
é a consequência, 
o real reflexo
da minha acanhada vida."


Irene Lisboa, "Um Dia e Outro Dia", in Poesia I, Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 182. 


Tuesday, October 11, 2022

TENDER

 



"é o tempo da ferrugem que mede o espaço
da contenção, 
do mito temperado com o verniz das fogueiras, 

da suspensão da fala, do estremecimento
da literatura cordata
desviada da língua

em torrente seguem anaximandro e sebastião
rumo aos cardos electrizados nos silos indecifrados
em busca d'engatilhar o indefinido num porto dizível
na paisagem bramida
nas bandeiras da noite abrumada, imberbe, 
estética de uma divagação anoitecida:
o que vem antes e depois do finito, tende a ser infinito"


Luís Filipe Pereira, Elogio da espera [61+43 poemas], Lisboa: Poética Editora, 2022, p. 233. 

Monday, October 10, 2022

CULTURA

 



"Toda a cultura de subversão artística foi reduzida a um nicho, com a nossa bênção. Os nichos são como animais de estimação que disputam a nossa atenção: citações de Ulisses, de Joyce, numa caneca; a famosa fonte, de Duchamp, numa t-shirt. Os Desportistas, de Malevich, feitos de papier-machê e em todos os tamanhos, desde os que cabem na palma da mão a estátuas para o jardim. O mercado transformou-nos, com a nossa autorização, num rebanho educado que adora arte. A arte (literatura, pintura, filme, música...) é o nosso parque de diversões preferido."


Dubravka Ugresic, A Idade da Pele, trad. Rita Costa, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2022, p. 145. 

Sunday, October 9, 2022

A VIDA ENTRE OS ESCOMBROS

 


"A vida entre os escombros é um processo, uma condição contínua. Pois somente dessa maneira aqueles que produziram os escombros podem sobreviver, aqueles que os sustentam e aqueles que não fizeram absolutamente nada para os evitar. É como se não fossem pessoas, mas engrenagens da máquina de destruição, a máquina da autodestruição."

 

Dubravka Ugresic, A Idade da Pele, trad. Rita Costa, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2022, p. 189.  

Saturday, October 8, 2022

OUTUBRO

 



"Ai, que podem os vestidos, 
que podem os espelhos?
Tempo!
Tu é que tens a última palavra!
Corres, 
e, sem dó, tudo inutilizas. 
Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal, 
de todos o pior, 
é esperar, 
sempre esperar."


Irene Lisboa, "Um Dia e Outro Dia", in Poesia I, Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 41. 

Friday, October 7, 2022

ANIVERSÁRIO




"Viver de amor? É dar___ e não ter___
Medida que compare o quanto se deu
Sem medir____como calcular o Amor?
Se amor não mede __ a medida que perdeu.
Ao teu coração transbordante de ternura,
Dei todo o divino__e meu não era__Corro leve__
Conto apenas com a riqueza que me deste___
O amor que me dá vida."



Thérèse Martin, de Lisieux, O Alto Voo da Cotovia, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 97. 

Wednesday, October 5, 2022

FERIADO

 


"A imperatriz está de férias, os seus amantes estão na guerra. Como ela tem medo dos ladrões de corações com chaves que violam fechaduras, aproveita a ausência dos Orlov para mandar pela calada substituí-las. Muda com rapidez os ferrolhos e cadeados, e ri-se com a partida que vai pregar-lhes."


Princesa Lucien Murat, A vida apaixonada da grande Catarina, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2022, p. 107. 

Tuesday, October 4, 2022

FICAR-SE

 



"Fico-me a olhar os pássaros.
É o mole, longo, estirado desenho dos voos, a
linha bamba dos coos, ora cortada, sacada, ora
retrocedida e inversa, oposta e repetida... ou a
figura negra e viva dos pássaros que mais nos 
interessa?
Que olhamos com mais gosto?
Que se fixa mais impressionante no plasma da
nossa mente?

Pintores e poetas, que escolher?
Formas ou linhas?
Linhas, tremor, movimento, agitação do espírito?
Formas, corpos, envasamentos?

Os pássaros indiferentes não param..
Amigos!
Ondeiam, sobem, vão e retrocedem, infatigavelmente retrocedem..."



Irene Lisboa, Outono havias de vir - Poesia I, org. Paula Morão, Lisboa: Presença, 1991, p. 320.   

Monday, October 3, 2022

DESMESURA E PENUMBRA

 




"a espera
é uma trajectória
no sentido do silêncio


é corpo deslocado da multidão
conduz as funestas orquídeas,
à vizinhança do que vibra

é corpo d'anfetaminas
exilado na insuturada ferida,
do torso resta o tronco
a sombra rumo à sombra

à finitude d'alguém
que fala

entre a desmesura
e a penumbra"



Luís Filipe Pereira, Elogio da espera [61+43 poemas], Lisboa: Poética Editora, 2022, p. 155.

Sunday, October 2, 2022

A VÓS AS DELÍCIAS

 



"A vós as delícias 
Do amor e as carícias 
Que sabem a mel...
A nós o vinagre
E o travor mais agre
Da taça do fel...

A vós as macias 
Horas pelos dias
E as noites serenas
No colchão de penas...
A nós os cilícios, 
E o sangue e os suplícios
Da coroa de espinhos
E os desertos de todos os caminhos!..."


Fausto José, "O Livro dos Mendigos", in Obra do Poeta Fausto José - Vol. I, Armamar: Edição da Câmara Municipal de Armamar, 1999, p. 344. 

Saturday, October 1, 2022

A CRENÇA

 


"Quando canto a felicidade do Céu, a posse eterna de Deus, não sinto nenhuma alegria, porque canto simplesmente o que quero acreditar. Às vezes, é verdade, um pequeníssimo raio de sol vem iluminar as minhas trevas; então a provação cessa por um instante. Mas depois, a recordação desse raio, em vez de me causar alegria, torna as minhas trevas ainda mais densas."


Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, História de uma Alma, Paço de Arcos: Edições do Carmelo, 1996, p. 274.