Wednesday, June 30, 2021

ACUMULAR

 


"Acumulam ainda uma grande quantidade de coisas umas sobre as outras: discursos de profetas, círculos sobre círculos, ribeiros da Igreja celeste e da circuncisão, virtudes que emanam de uma virgem Prunicos, alma vida, céu que para viver deve ser imolado, terra degolada pela espada, homens que só viverão se forem massacrados, morte que cessará no mundo pela morte do pecado, nova descida por lugares estreitos, portas que se abrem por si sós. Por toda a parte misturam a árvore da vida e a ressurreição da carne pela madeira, provavelmente porque o mestre deles foi pregado na cruz e porque era carpinteiro. Tivesse sido ele precipitado do cimo de um rochedo, ou atirado a um abismo, ou enforcado com uma corda, ou se tivesse sido sapateiro, canteiro ou serralheiro, não deixariam de pôr no cimo dos céus o rochedo da vida, ou o abismo da ressurreição, ou a corda da imortalidade, a pedra da beatitude, o ferro da caridade ou o coiro da santidade. Haverá alguma velha que não tivesse vergonha de contar tais frivolidades para adormecer uma criança?"


Celso, Contra os Cristãos, III, 73., trad. José Henrique Botelho Júnior, Lisboa: Editorial Estampa, 1991, p. 81. 

Tuesday, June 29, 2021

CHAVE

 



"Já deixei de estar na incerteza a teu respeito. Se me perguntares que divindade me serve de garante, dir-te-ei; aquela que nunca engana ninguém, ou seja, a alma que apenas ama o que é justo e bom. A melhor parte de ti mesmo já se encontra a salvo."


Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, 82, trad. J. A. Segurado e Campos, 6.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 359. 

Monday, June 28, 2021

A QUALIDADE

 



"Ora qual é a qualidade suprema do homem? A razão: graças a ela, o homem supera os outros animais e aproxima-se dos deuses. Por conseguinte, o bem específico do homem é a razão perfeita, todas as suas restantes qualidades são comuns com os animais e as plantas. O homem tem força: também os leões. É belo: também os pavões. É veloz: também os cavalos. Não digo que em relação a todas estas qualidades ele seja superado, nem me interessa qual a qualidade que o homem tem mais desenvolvida, mas sim qual é a sua qualidade única, específica. O homem tem corpo: também as árvores. Tem a capacidade de se mover instinta e voluntariamente: os animais e os vermes também. Tem voz: mas muito mais sonora é a voz do cão, mais estridente a da águia, mais grave a do touro, mais doce e ágil a do rouxinol! Qual é a qualidade exclusiva do homem? A razão: quando a razão é plena e consumada proporciona ao homem a plenitude."


Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, 76, trad. J. A. Segurado e Campos, 6.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 312. 

Sunday, June 27, 2021

ALEGORIA

 



"Mas o Augusto disse: «Não esqueçamos que há uma realidade, mesmo que estejamos limitados a alegorias para a exprimir e lhe dar forma... estamos vivos... e essa é a realidade, a simples realidade.»
É só na alegoria que se pode captar a vida, só na alegoria se exprime a alegoria; infinita é a cadeia de alegorias, e sem alegoria é apenas a morte, em direcção à qual ela se estende, como se fosse o último elo, se bem que já fora da cadeia - como se todas as alegorias tivessem tomado forma unicamente por sua causa, para, apesar de tudo, apanharem a sua ausência de alegorias, sim, como se só através dela a linguagem pudesse  voltar a obter a sua simplicidade primordial, como se a morte fosse o lugar de nascimento da linguagem terrena e simples, do mais terreno, mas também mais divino símbolo; em toda a linguagem humana sorri a morte."


Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. Maria Adélia Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 274. 

Saturday, June 26, 2021

O RUMOR

 




"é no silêncio
que melhor ludibrio a morte

não
já não me prendo a nada
mantenho-me suspenso neste fim de século
reaprendo os dias para a eternidade
porque onde termina o corpo deve começar
outra coisa outro corpo

ouço o rumor do vento
vai
alma vai
até onde quiseres ir"



Al Berto, "Uma Existência de Papel", in O Medo, 5ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 543. 

Friday, June 25, 2021

PENITÊNCIA

 


"Ai do homem que não se mostra à altura da graça que lhe coube em sorte, ai do penitente que não suporta a sua penitência, ai do que resta de um ser que não se quer despojar do ente, ah, que não se pode despojar, porque a memória extinta continua a existir no vácuo; ai do homem que, apesar da sua penitência, inalterável e sem solução, se encontrava condenado à sua natureza humana!"


 Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. Maria Adélia Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 130.

Thursday, June 24, 2021

SOL DEBAIXO DE NUVENS

 



"Quis soltar-se. Palavra
Que a frio me arrebatas e incendeias, 
Espírito a correr nas minhas veias, 
Sangue em meu cérebro, - sustento
Do que, sem Ti, só fora
Fingir um fingimento!
Quis soltar-se, Palavra, 
Rainha toda poderosa, e escrava
Coberta de cadeias!
Quis descerrar-te, aurora!
Sol debaixo de nuvens, quis abrir
Nas frestas dos teus muros
O rasgão de infinito em que brilhasses!
Minha língua e meus lábios são impuros:
Impurificam tudo;
Quase sempre me deixam falar mudo; 
Falaram antes que falasses.
Ao vento andam dispersos
Os sons antecipados que soltaram. 
Mas se, de longe em longe, o Poeta alcança versos, 
É só porque, Verbo impoluto, 
Aos minúsculos nossos universos
Quaisquer sinais chegaram 
Do teu inacessível Absoluto."


José Régio, Colheita da Tarde, Porto: Brasília Editora, 1984, pp. 115-116. 

Wednesday, June 23, 2021

TESTEMUNHO

 



"os santos quase permanecem
dançando no lugar onde o vento
crava as patas, os astros sobre a terra, caminham
dentro do ar, tão brusca e não-memória
da grande infância americana, e o rosto
enrugado do corpo, transmitem

a transição dos meses, as fronteiras
onde a ribeira da água anoitecera, eram os campos
longe da guerra, fechados sobre a noite, 
quero dizer: as suas palavras seriam 
como pequenas imagens ilustrando
a queda súbita dos dias, 

não sabendo que o fogo se levanta
na mãe das despedidas, 
escolhidos para
testemunhar a não-vitória.
e o vento os arrasta, e eles dançando
acontecem, no meio da guerra, os terrestres."


António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 295. 

Tuesday, June 22, 2021

A CARNE

 



"A carne, atravessada por tantos e variados sentimentos quantos e quão variados os solutos onde poderiam mergulhá-la, por um sol que ela, depois de ter sido impenetrável, acabasse por fazer correr dentro de si como uma espécie de cinema a que de súbito se abrisse, a carne, pura projecção dum tempo fulgurante cuja consistência fosse momentaneamente a sua, um tempo que sobre ela desterrasse o sol sem que por isso escurecesse porque ele próprio brilharia, carne que através dessa ferida anoitecesse e amanhecesse, quem agora a visse - assim arqueada até ao espírito - julgá-la-ia, irmanada a um relâmpago, entre imagens de que fosse tanto o écran como a raiz."


Luís Miguel Nava, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 224. 

Monday, June 21, 2021

SUBANIMALIDADE

 


"Sim, era o horror rígido da pseudomorte e o rosto de animal, quase já não um rosto, era apenas a transparência da planta, saído de um caule, emaranhado em caules, dobrado em caules-de-cauda, controlado pelos caules de serpente, surgido dos imensos, insondáveis reinos subterrâneos das raízes, surgido da unidade de imensos emaranhados de raízes, cuja infra-animalidade lhe está incorporada, esse rosto de animal desnudou-se para o horror da ausência da particularidade, alimentado pelo nada do centro. Não havia medo da morte que se pudesse comparar com este, o mais terrível de todos, porque era o horror da pseudomorte, rodeado pela subanimalidade, pela pré-animalidade, nenhum medo de feridas ou de dores ou de asfixia se comparava a este horror asfixiante, cuja indefinibilidade já nada deixava reter, porque na criação ainda incriada, na sua não-respiração, na sua falta de ar, nada se deixa reter"


 Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. Maria Adélia Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 134. 

Sunday, June 20, 2021

TODAS AS RUAS VAZIAS

 



"      deus tem de ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos. 

        a dor de todas as ruas vazias. 

        sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio, e na sua simplicidade, na sua claeza, no seu abismo. 
        sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo. 

       a dor de todas as ruas vazias. 

       mas gosto da noite e do riso de cinzas, gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados. 
       pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo. 

      a dor de todas as ruas vazias. 

      pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr um lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame. 
      é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro. 

      a dor de todas as ruas vazias. 

      sujo os olhos com sangue, chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca. 

      a dor de todas as ruas vazias. 

      os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto e, por vezes, ouço-os no transe da noite, assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo. 
      o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar. 

      a dor de todas as ruas vazias."



Al Berto, Horto de Incêndio, 3.ª ed, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 39-40. 

Saturday, June 19, 2021

PERPASSAR

 



"Tinha sido vã esta esperança e o mundo, de novo afundado na pré-criação, de novo afundado no sem-significado, de novo afundado no não-nascido, rodeado pelas montanhas de sombra da sua morte pré-natal, por sobre a qual não havia asas de mortes terrenas que o pudessem elevar, o mundo estendia-se perante ele, o mundo que a beleza perpassava, o que o riso fazia explodir, perdida a linguagem e a comunhão, causa do juramento quebrantado, de que também tinha a culpa; em vez do deus desconhecido, em vez de levar com ele o juramento que conduzia ao dever, tinham vindo aqueles três: os portadores da falta do cumprimento do dever."


Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. Maria Adélia Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 107.

REPLETO

 



"Porque as imagens estão repletas de realidade, porque a realidade, por sua vez, só pela realidade pode ser representada -, imagens e mais imagens, realidades e mais realidades, nenhuma verdadeiramente real, enquanto permanece isolada, mas no entanto cada uma símbolo de uma definitivamente real incognoscibilidade, que é a sua totalidade."


Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. Maria Adélia Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 65. 

Thursday, June 17, 2021

NO CHÃO

 



"Tudo isto são demónios.
Não, 
são pernas, 
pernas mal desenhadas.

Pernas bailarinas, 
desobedecem à lei
do silêncio. 

Outrora, 
não me lembro bem, 
devo ter escarrado
na carpintaria. 

Nunca poderei chegar
de surpresa. 
Ouvir-me-ás, 
antes que eu apareça, 

o pé direito, 
metrómono que marca
o tempo musical
da minha aparição. 

Como no cinema, 
o monstro chega
sempre através do som; 

No amor
é um susto idêntico, 
é certa
a violência, 
da cena final.

Mas escolhemos
a banda sonora."


Nuno F. Silva, Epilepsy Dance, Figueira da Foz: DSO, 2020, pp. 20-21. 

Wednesday, June 16, 2021

BUSCA

 



"Andava em busca de uma alma semelhante à minha, e não podia encontrá-la. Procurava por todos os recantos da terra: era inútil a minha perseverança. E, no entanto, não podia continuar só. Precisava de alguém que aprovasse o meu carácter; precisava de alguém que tivesse as mesmas ideias que eu."


Isidore Ducasse, conde de Lautréamont, Os Cantos de Maldoror, II, trad. Pedro Tamen, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 95. 

Tuesday, June 15, 2021

DESLUMBRAMENTO

 



"Que seja alva a morte do poeta
como o silêncio da madrugada.
Mostrem-lhe a luz em graça
pois dedicou a vida
a estudar o relevo das sombras
e tacteou sempre as rosas
pelo lado soturno do deslumbramento."


Nuno F. Silva, Lunescer, Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2016, p. 35. 

Monday, June 14, 2021

LINTEL

 


"Anda com a minha alma ao collo, 
Como se fosse uma creança, 
Uma tristeza, um desconsôlo,
Um amôr ao que não se alcança..."


Fernando Pessoa, Poemas - 1915-1920, ed. João Dionísio, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 39. 

A PRISÃO FIGURATIVA DO MUNDO

 



"As flores sobrepostas ao teu peito, 
o lampião com a luz fraca e amarelecida
que tentava enganar as sombras presentes naquele quarto.
Os lençóis brancos, destinados aos nossos suspiros
e a todas as nossas doenças anatomicamente mentais.
As almofadas que nos confinavam à prisão figurativa
do mundo. 
O suor do cansaço da vida e da angústia daquilo que nos 
ultrapassa. 
Os dedos estão frios como a mármore e as árvores neste
inverno. 
As flores adquiriram o modo lúgubre do teu peito. 
Os teus olhos fecharam Pondero ficar a ver-te dormir. 
O mundo acabou!"


Nuno F. Silva, Lunescer, Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2016, p. 61. 

Saturday, June 12, 2021

MAIOR DO QUE A TERRA

 



"Maior do que a terra é a luz, maior do que os homens é a terra e jamais poderá o homem subsistir sem inspirar o ar da terra natal, voltando à terra, terrenamente regressando à luz, recebendo sobre a terra terrenamente a luz, só através dela recebido pela luz, pela terra que se transforma em luz" 


Hermann Broch, A Morte de Virgílio, trad. Maria Adélia Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 18. 

Thursday, June 10, 2021

NAVEGAR PELAS ÁGUAS

 



"Alicuto

As conchinhas da praia que apresentam
a cor das nuvens, quando nace o dia;
o canto das Sirenas, que adormentam;
a tinta que no múrice se cria; 
navegar pelas águas que se assentam 
co brando bafo quando a sesta é fria,
não podem, Ninfa minha, assi aprazer-me
como ver-te ua hora alegre ver-me."


Luís de Camões, Lírica Completa, vol. III, ed. Maria de Lourdes Saraiva, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 1994, pp. 333-334. 

Wednesday, June 9, 2021

ENTRAR

 



"A mão que parte do dilúvio entra por mim como um focinho na água

Isto escrevo como se fosse capaz de gerar uma palavra inundada
Uma gota no deserto
Como se a sede me ensinasse a caminhar sobre a palavra"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 334.

Tuesday, June 8, 2021

VOLÚVEL



"A poesia... Ora...
No que ela tem de belo de volúvel de insano
é que está o engano."


Raul de Carvalho, Lâmpadas Acesas para Aumentar o Dia, selec. e apresentação de Diogo Martins, Lisboa: Língua Morta, 2020, p. 175. 

Sunday, June 6, 2021

COMO O PAVÃO

 



" - Sou um néscio, mas só nesta metáfora entendi seria o tropel de chistes estupendo, porque, para multiplicar patadas, faz das mãos pés. 
- Agora fiquei como o pavão. 
- Dá cá o pé papagaio; que lhe pareceu o dito?
- É uma flor o menino!"


D. Francisco Manuel de Melo, Feira dos Anexins, fixação do texto, notas e nota introdutória de Maria Sofia Silva Santos, Lisboa: Guerra e Paz, 2021, p. 66. 

Saturday, June 5, 2021

CABEÇADAS

 


" - Pois vocês cuidam que tudo o que é seguir metáforas é saber dizer equívocos? É o dizer anexins sem pés, nem cabeça? Nem aos metaforistas da moda lhes pode cair na cabeça que coisa seja metáfora ou alegoria. Eu dou com a cabeça pelas paredes de ver trazer pelo cabeção anexins sem propósito. 
- Homem, o entendimento não é fazenda que ande em cabeça de morgado; quem não tem cabeça sempre é mais cabeçudo.
- Não repara em cabeçadas.
- Dizem despropósitos e quebram-nos as cabeças com se quererem meter na cabeceira do rol dos discretos."


D. Francisco Manuel de Melo, Feira dos Anexins, fixação do texto, notas e nota introdutória de Maria Sofia Silva Santos, Lisboa: Guerra e Paz, 2021, p. 29. 

Thursday, June 3, 2021

FESTA DO CORPO DE DEUS

 



"Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa, 
anunciando a paixão: 
"Ó crux ave, spes unica
Ó passiones tempore". 
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra. 
Ó mistério, mistério, 
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus. 
É próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo, 
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime, 
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos 
os demónios porfiaram 
em nos cegar com este embuste. 
E teu corpo na cruz, suspenso. 
E teu corpo na cruz, sem panos:
                  olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor, 
amor do corpo, amor."


Adélia Prado, "Terra de Santa Cruz", in Com Licença Poética - Antologia, org. Abel Barros Baptista, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 55. 

Wednesday, June 2, 2021

AS CORES

 




"Não há cores puras: azul em nuvens
cinzas e o prata das luzes de mercúrio 
confundem-se

A árvore toca o céu numa beira, 
precipício

E uma placa, 
aqui, é proibido jogar lixo

A árvore mínima se projeta
na atmosfera à beira de um barranco

Os troncos contra um fundo de listras:
árvore no fim da tarde em ramos

A casa se avista com telhado
junto à terra, 
casa-árvore

A casa com um telhado-morro
e com alguém no interior

A mesma casa se vê, lateral
branca, triângulo sobre retângulo

De repente, 
semicírculo
como uma lua que se precipita

Estrada curva que desaparece, 
sobre um morro verde desaparece
na paisagem

Estrelas agora são personagens"


Régis Bonvicino, Lindero Nuevo Vedado - antologia poética, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, pp. 49-50. 

Tuesday, June 1, 2021

INFANTE

 



"Parece que em todos
Os lados ruins
Há sempre uma criança
Que tudo perdoa."


Raul de Carvalho, Lâmpadas Acesas para Aumentar o Dia, selec. e apresentação de Diogo Martins, Lisboa: Língua Morta, 2020, p. 216.