Tuesday, January 31, 2023

EXISTÊNCIA

 


"Tudo existira sempre e ele nunca o vira; ele não estivera presente. Agora estava presente, pertencia ali. Através dos seus olhos corriam a luz e a sombra, através do seu coração corriam as estrelas e a lua."


Hermann Hesse, Siddhartha - um poema indiano, 13ª ed. trad. Pedro Miguel Dias, Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2006, p. 54. 

Monday, January 30, 2023

O DESPERTADO



"Olhou em redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era belo, o mundo era colorido, o mundo era estranho e misterioso! Isto era azul, isto era amarelo, isto era verde, corria o céu e o rio, a floresta e a montanha erguiam-se, tudo belo, tudo enigmático e mágico, e no seu meio ele, Siddhartha, o Despertado, a caminho de si mesmo. Tudo isto, todo este amarelo e azul, rio e floresta, entrava pela primeira vez nos olhos de Siddhartha, já não era a magia de Mara, já não era o véu de Maja, já não era a multiplicidade absurda e acidental do mundo das aparências, desprezível aos olhos dos profundos pensadores brâmanes, que rejeitam a multiplicidade e procuram a unidade. O azul era azul, o rio era rio, e quando o uno e divino em Siddhartha viviam ocultos no azul e no rio, essa era justamente a forma e o espírito divino de ser aqui amarelo, aqui azul, além céu, além floresta, e aqui Siddhartha. O espírito e o ser não estavam algures por detrás das coisas, estavam nelas, em todas elas."

Hermann Hesse, Siddhartha - um poema indiano, 13ª ed. trad. Pedro Miguel Dias, Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2006, p. 47.

Sunday, January 29, 2023

RIOS

 



"O mar chama-se princípio e fim das águas porque dele saem os rios, e nascem as fontes, e nele tornam a parar; como se escreve no Eclesiástico cap. 2 dizendo: todos os rios tornam a seu lugar, para que outra vez tornem a correr. E ainda que é verdade, que entram cada dia e hora no mar milhares de rios, nem por isso transverte, nem cresce mais que se não entrassem: a causa é porque o mar é lugar e recetáculo natural de todas as águas, e também porque tem seus sumidouros e sorvedouros no lugar onde se some,e sai tanta água como recebe, e entra no dito lugar. Os rios procedem, e se causam da congregação e ajuntamento de muitas fontes: e assim como se juntam poucas, ou muitas, assim os rios vêm a ser pequenos, ou grandes, e dilatados."


Jerónimo Cortez, Fisiognomia e Vários Segredos da Natureza, Lisboa: Vega, 1993, pp. 113-114.

Saturday, January 28, 2023

TRAJECTÓRIA

 



"A poesia é o desenho das trajectórias de um som finito até aos pontos infinitos dos seus ecos."



Carl Sandburg, Antologia Poética, trad. Vasco Gato, Porto: Flâneur, 2017, p. 97.

Friday, January 27, 2023

OS QUE TÊM

 



"A semelhança que se nota entre as feições de alguns homens com a cara de certos animais faz conhecer que igual semelhança existe entre o carácter de uns e outros.
Assim por exemplo os homens que têm cara de águia, isto é que têm o nariz recurvado, bicudo, em forma de bico de águia, olhos mui vivos e penetrantes, e o queixo recuado, tais homens são como a águia, audazes, empreendedores e astutos.
Os que têm cara aguda como a raposa são engenhosos, astutos e satíricos.
Os que têm a cabeça achatada como o boi e o cavalo, distinguem-se mais por sua força corporal que por suas faculdades intelectuais.
Os que têm a cabeça e a cara como os gatos e os tigres, são valentes, mas sanguinários, cruéis e folgam com a destruição. Robespierre tinha a cabeça deste feitio.
De Platão se disse que parecia um cão de caça, e por isso não era de admirar que tivesse tão rara sagacidade."


Jerónimo Cortez, Fisiognomia e Vários Segredos da Natureza, Lisboa: Vega, 1993, pp. 14-15.

Wednesday, January 25, 2023

A VIAGEM ETERNA


 

"Sei que tenho o melhor do tempo e do espaço, e nunca fui medido e nunca serei medido.

A minha viagem é eterna (venham todos ouvir-me!),
Os meus sinais são uma gabardine, bons sapatos e um cajado que cortei no bosque,
Nenhum dos meus amigos se instala na minha cadeira,
Não tenho cadeira, nem igreja, nem filosofia,
Não conduzo ninguém à mesa de jantar, à biblioteca, à Bolsa,
Só te conduzo a ti, homem ou mulher, a um outeiro,
A minha mão esquerda aperta-te a cintura,
A minha mão direita assinala a paisagem dos continentes e do passeio público.

Nem eu nem ninguém pode percorrer por ti esse caminho.
Deves percorrê-lo por ti mesmo."


Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo, trad. José Agostinho Baptista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 131. 

Tuesday, January 24, 2023

MÚTUO

 



"Alimento um do outro, conversa
que é preciso ter, passear, viajar,
pensar em viajar, por vezes discutir.
Até chegar o momento da mútua
alegria, do mútuo consentimento.

Quando nos dávamos mal, ali,
naquele sítio, dávamo-nos bem.
E era um sono verdadeiro esse
que dormíamos, metidos dentro
de um problema com solução.

Se a vida é este meu nulo afirmativo,
condutor de palavras, umas
mais ditas do que outras por toda
a gente, então nada há, mesmo
nada, e eu sou um cantor de vazio.

Cantando o vazio e sem acreditar
em pássaros jubilantes trazendo melodias
de beleza, à minha voltam estoiram
vozes e crentes na sua convicção
de literatura. Para quem falam os grandes
génios? Para outros grandes génios?
Olhando de lado para os livros
empilhados, marcados, anotados,
sublinhados, tenho a certeza que já vi
esta imagem em qualquer lado."


Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, pp. 53-54.

Monday, January 23, 2023

LOUVA-A-DEUS



"Tantos dias curvados sobre sim
como se fossem louva-a-deus,

sôfregos devoradores de torsos e antenas.
Dias informativos, cultos,
alusivos, revoltados, cúmplices.

Fecho as páginas do jornal.
Volto aos livros de horas,
trinco o pão.

Dar liberdade extrema a todos
os que aqui chegam.
Tirar-lhes os sapatos e as carteiras.
Apagar os nomes de família.

Despedir-me eu também.

Escolher andar pelas veredas
                                                   - as mais inesperadas."



Elisabete Marques, Estranhos em Casa, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 41.

Sunday, January 22, 2023

GENTE DE DOMINGO

 



"Depende dela, da alegria e da segurança dela, como um vidro enorme que alguém leva pela rua, a minha permanência nesta vida. Por isso aos domingos levo-a a passear. Os olhos estão cada vez mais cansados, e vê cisnes no lugar de lenços, toda a gente com a boca rodeada de formigas, perde os dígitos das horas para se orientar. Ainda assim, gosta de passear, de ver as formas como o mundo sofre.
Gosta de casinhas arranjadas e de igrejas cheias de flores, ajaezadas como burros numa procissão. Gosta de parques e de shoppings de geometria funcional, benigna. Ri-se das piadas menos sofisticadas. Espreita as confeitarias sobreaquecidas onde o pasteleiro inventa a excrescência de uma nova iguaria e pessoas bem vestidas celebram os filhos corados, comem croissants.
Vemos a gente de domingo aconchegadas em bons carros e camisas de lã, em casamentos como o fruto agridoce de um magro cabaz. Gente cujos pais dormiam sob o ventre das ovelhas. Na manhã seguinte voltam ao trabalho com a cara em gume, com uma guelra esclerosada de tão pouco respirar. Sentimos juntas a pobreza disto tudo, que é também a nossa. Ela, que cresceu entre cavalos magros e avós de rins desfeitos, trabalhou como uma louca para que eu pudesse ser igual a esta gente. Mas para mim não há esperança. Tenho fomes simples de batatas e feijão. Bebo nos ossos o sol de inverno."


Andreia C. Faria, Clavicórdio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 29.

Saturday, January 21, 2023

PROMESSA

 


"O mal é a boca fechada de Deus. É aí que ele promete falar-nos, desfigurar-nos ou nunca se pronunciar."

Andreia C. Faria, Clavicórdio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 33.

Friday, January 20, 2023

SEBASTE

 



"Para que além dos séculos despontes,
Senhor das nossas vidas e destino,
Subo aos eirados e, saudoso, inclino
Meus olhos pelos vagos horizontes:

E sigo por desertos e altos montes
Os passos dum incerto peregrino...
À tarde, pelo assomo vespertino,
Segredam tua ausência ignotas fontes!

Ó Rei! Sol da claríssima pureza,
Senhor da nossa Fé, - vem alumiar
Com teus olhos a terra portuguesa!

Por ti, as ondas quebram, a chorar,
Dos sinos, à noitinha, tombam ais,
E marulham saudades os pinhais!"


Mário Beirão, Lusitânia, 2ª. ed., Porto: Livraria Tavares Martins, 1964, p. 98.

Thursday, January 19, 2023

EUGÉNIO

 



"Terra: se um dia lhe tocares
o corpo adormecido,
põe folhas verdes onde pões silêncio,
sê leve para quem o foi comigo.

Dá-lhe o meu cabelo para o sonho,
e deixa as minhas mãos para tecer
a mágoa infinita das raízes
que no seu corpo um dia hão-de beber."


Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos, 20ª ed., Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2004, p. 47.

Wednesday, January 18, 2023

EXCESSO



"A literatura tem, aliás, um privilégio: excede o lugar e o momento actuais para se situar na periferia do mundo e como que no fim dos tempos, e é daí que fala das coisas e que se ocupa dos homens."


Maurice Blanchot, A Literatura e o Direito à Morte, trad. Sara Soares Belo, Sr. Teste Edições, 2021, pp. 78-79.

Tuesday, January 17, 2023

RETIRAR-SE

 


"Ele retira-se de ti, mas é nas tuas coisas, nos lugares, na luz dos lugares que deixas de vê-lo. O teu rosto ingressa na escuridão e olhas para tudo como o coveiro lívido do esforço, rodeado pela terra escura que esteve a abrir."

Andreia C. Faria, Clavicórdio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 17.

Monday, January 16, 2023

QUEBRAR O MUNDO

 


"E morrer, sem dúvida, essa é a nossa preocupação. Mas porquê? É que nós que morremos, deixamos justamente tanto o mundo como a morte. É este o paradoxo da hora derradeira. A morte trabalha connosco no mundo; poder que humaniza a natureza, que eleva a existência ao ser, está em nós como a nossa parte mais humana; só é morte no mundo, o homem só a conhece porque é homem, e só é homem porque é morte em devir. Mas morrer é quebrar o mundo; é perder o homem, aniquilar o ser; é também, portanto, perder a morte, perder o que nela e por mim fazia dela a morte. Enquanto vivo, sou um homem mortal, mas quando morro, deixando de ser um homem, deixo também de ser mortal, não sou mais capaz de morrer, e a morte que se anuncia horroriza-me porque a vejo tal como é: não mais morte, mas impossibilidade de morrer."

Maurice Blanchot, A Literatura e o Direito à Morte, trad. Sara Soares Belo, Sr. Teste Edições, 2021, p. 76.

Sunday, January 15, 2023

RETRATO

 



"Dirigia-se a um velho de monóculo que o interrompera no começo e permanecera calado, sem um sorriso, talvez mais pálido, durante toda a conversa.
- Desculpe, Relvas, desculpe. Mas almas dos homens é Deus quem põe o dedo.
- Não diga isso, conselheiro. Deus põe o barro, mas nós é que lhe damos o jeito. É uma questão de paciência, de chicote e de açúcar... Tudo na altura própria. E o segredo, todo o segredo, está nisso."

Alves Redol, Barranco de Cegos, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1976, p. 84.

Saturday, January 14, 2023

ESPARGIDA

 



"Aos mortos devo os modos de criar
silhuetas ou sinais,
de olhar cadeiras delicadamente sem porquê
no delírio da hora nocturna.

Mas com eles também aprendi a estremecer,
a perder as feições,
a esfregar-me nas diferentes matérias
como um gato.

Já não posso pensar em gerânios
sem que um cresça no meu umbigo
e me doa a cor espargida
como a marca de um crime.
Porque alguém colheu gerânios
com alegria firme
e de flor viveu a sua vontade.

Heras crescem nas escadas,
invadem devagar o quarto desalumiado.
Como a recordação de uma casa antiga.
Quem teria plantado tal vegetação?
Quem a teria regado no verão dos seus anos?
Herdei gerânios e maravilhas crescidas por acaso,
herdei a lembrança descompensada
do amor por alguém que nunca conheci,
e a ferrugem, as fotografias, os nomes, um jardim."


Elisabete Marques, Estranhos em Casa, Lisboa: Língua Morta, 2022, pp. 63-64.

Friday, January 13, 2023

SOLEIRA

 



"Os mortos desenvolvem-se nas fissuras,
alastram à maneira dos líquenes.
Não sabem de terras enfeitadas,
com estátuas ou com bandeiras,
nem dos utensílios elementares.

Por vezes ficam parados nas soleiras,
suspensos por uma linha."


Elisabete Marques, Estranhos em Casa, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 7.

Thursday, January 12, 2023

AR

 


"A criação começou com o ar e com a luz, os dois símbolos do «espírito». O ar é a primeira coisa em que pensamos quando pensamos em coisas que não conseguimos ver, mas que sabemos existirem; e, num certo sentido, nós também não vemos a luz: a um nível metafórico, o que vemos é fogo, uma fonte ou reflexão da luz. A luz e o ar são o meio através do qual vemos: se pudéssemos ver o ar, não veríamos mais nada, e viveríamos no nevoeiro denso que é uma das raízes da palavra «vaidade»."


Northrop Frye, O Código dos Códigos - a Bíblia e a Literatura, trad. Judite Jóia, Lisboa: Edições 70, 2021, p. 162.

Wednesday, January 11, 2023

CONTRARIEDADE

 


"O sono chegou depressa, pois levava uma vida fisicamente activa, conquanto fosse emocionalmente árida. No entanto, os escassos momentos entre o deitar naquele calor bem-aventurado e o sobrevir da inconsciência representava o seu único período de inteira liberdade, de forma que Missy contrariava sempre o sono quanto podia."

 

Colleen McCullough, As Senhoras de Missalonghi, trad. J. Teixeira de Aguiar, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988, p. 27. 

Monday, January 9, 2023

NO MUNDO

 


"Há no mundo beleza suficiente, mas uma que confunda os sentidos só agora chega com as cores do fogo. Inventa a noite com o seu estranho brilho, chama as casas para o seu declive, engole o mapa da mais situada pele. É o fósforo, o lume a desfolhar-se, a montanha de respiração oculta, esta cama nua, o detalhe nu do sexo. E se abrimos as janelas entram cinzas, por enquanto de madeira e animais no sono."

 

Andreia C. Faria, Canina, Lisboa: Tinta-da-China, 2022, p. 75. 

Sunday, January 8, 2023

ESTRELA AZUL

 



"Depois das geadas
a magnólia respira
um lume mais brando, mais leve
que o ar. E eu caminho
com os olhos um clarão,
abrigo-me em igrejas onde
a vida dos mártires me arranca
as costuras da luz. Sofrer
é um lento ardor de aquário.
A magnólia abre as pálpebras
feridas. Azul, não sarará."


Andreia C. Faria, Canina, Lisboa: Tinta-da-China, 2022, p. 54.

Saturday, January 7, 2023

MANIFESTAÇÃO

 



"No momento em que a decadência do edifício destrói a unidade da forma, as partes separam-se de novo, revelando o seu antagonismo original e universal, como se a forma artística fosse apenas um ato de violência do espírito a que a pedra se tivesse submetido contra vontade, como se a pedra sacudisse gradualmente o jugo para regressar à lei autónoma das suas forças.
Apesar disso, a ruína é uma manifestação mais significativa, mais importante do que são os fragmentos de outras obras de arte destruídas."


Georg Simmel, Filosofia da Aventura e Outros Textos, trad. Helena Topa, Lisboa: Relógio D'Água, 2019, p. 42.

Friday, January 6, 2023

ESTRELA DE GRAÇA

 



"
Baltasar

Por prenda do vosso amor,
Menino, me queirais dar
Esses vossos lindos pés,
Para haver de os beijar.
Porque são a melhor prenda,
Que de meu posso lograr,
Entre ouro, e fazenda,
E meu terreno reinar.
A vossa Estrela de graça
Nos queira sempre guiar
Cá deste Belém terreno
A Jerusalém Celestial.
E vós, Mãe esclarecida,
E vosso Esposo não menos,
Nos concedei permissão,
Que à nossa Pátria voltemos."


"Colóquio de Pastores ao Nascimento do Menino Deus", in Drama dos Reis Magos, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 248.

Thursday, January 5, 2023

DOBRA




"Dobrou-se
vivo
aos textos
como a amendoeira sobre
a via sacra."


Andreia C. Faria, Alegria Para o Fim do Mundo, Porto: Porto Editora, 2019, p. 199. 

Tuesday, January 3, 2023

RETIRADA



"Repara como Deus se retira de todas as coisas. Só um fio ténue e voluntário te prende ainda a ele. És um aranhiço que dança em redor dos seus ombros.
Ele é o namorado terno que cedo, por descuido ou acidente, revela um traço de carácter violento e sombrio, um traço que não fora desenhado antes do amor e que ao aparecer torna o amor impossível.
Ele é o teu rival. Ama-te como uma mulher ama outra mulher. Sois duas mulheres que se descobrem num baile usando vestidos iguais e reconhecem uma semelhança mais profunda."



Andreia C. Faria, Alegria Para o Fim do Mundo, Porto: Porto Editora, 2019, p. 190.

Monday, January 2, 2023

O PRÓPRIO AR

 



"Ninguém sabe como recuava a luz,
que ângulo derramava nas pupilas, nem a terra conhecia
a dor súbita da perfuração.

A lua não tinha pegadas na cara,
nem o crepúsculo
cuspia sangue ao respirar.
O poeta interrogava a caveira
e apodrecia em paz.

Agora pensamentos densos viajavam
sob lajes e solas, uma métrica de milhas
soterra ervas e tendões. Agora
amamos falsa carne de coral.

Inflama a língua o próprio ar,
e que faríamos, sem lasca
que ignifique o espírito,
sem o teatrinho
de sombras da identidade?

Dormem as borras da noite nos sulcos
que lhe oferece um rosto, os interstícios da cidade.
O céu exausto e compassivo
mostra a sua pele

onde um dedo mais humano pousa
uma carícia, o assomo
negro de uma constelação."



Andreia C. Faria, Alegria Para o Fim do Mundo, Porto: Porto Editora, 2019, pp. 142-143.

Sunday, January 1, 2023

PAINEL

 



"Por muito que te digam o contrário, a beleza
é a melhor candeia, o braseiro
onde escaldá-la até soltar-se
a rouca pele do coração

Nenhum esforço se compara à comoção
que nasce de uma forma, mulher,
rapaz, indómito fauno
ou flora, fronte, nuca,
caule, casco, veio, uma linha basta,
movente, o vislumbre
do imerso ser para te redimir
do remorso, da vida limpa que forjaste
sem desejo ou derisão."



Andreia C. Faria, Alegria Para o Fim do Mundo, Porto: Porto Editora, 2019, p. 79.