Sunday, March 31, 2019

ASAS



"O Apóstolo diz-nos que no princípio era a Palavra. Nada nos garante quanto ao final."


George Steiner, Linguagem e Silêncio - Ensaios sobre a Literatura, a Linguagem e o Inumano, tad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Gradiva, 2014, p. 33. 

Saturday, March 30, 2019

JAZER



"Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetelou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que
Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar."


Vinícius de Moraes, "Encontro do Cotidiano", in Obra Poética, Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, pp. 274-275.

Friday, March 29, 2019

CRISTAL (para a Divina Agnès Varda)



"Desabotoa-se por fim a cena
que se desenhava no baço
da janela do sonho (o sonho
é uma espécie de vidraça?)

e tudo o que se realiza vive
da necessidade, agora
que o motor do instante se agita
e vibra sua perfeição. Enfim, 

vem à luz a experiência
que se vinha elaborando no laboratório
de algum andar do sonho (o sonho
é uma espécie de edifício?): o mar

nasce de amar, e - cristalinas - águas
sem margens usurpam a cidade, 
arrastam inocentes, os amantes 
gozam, é justo que seja assim."


Eucanãa Ferraz, Cinemateca, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 34. 

Thursday, March 28, 2019

O SABER



"Falámos da vida escolar, dos meus tempos de estudante, e afirmei-lhe que esses tempos eram em verdade os mais felizes da vida de um homem, mas que os jovens não sabem disso.
- Se soubéssemos do futuro - acrescentei -, não poderíamos suportá-lo."


Maurice Baring, O Trono e o Altar, trad. Jorge de Sena, Lisboa: Editores Associados/Unibolso, s.d., p. 66. 

Wednesday, March 27, 2019

OS PRODÍGIOS



"Desertei das falanges do ouro
para vir sitiar a tua sombra.
Movias-te como se jamais te prendesse
outra lealdade
que não a interrogação
de um cais. E, porém, 
os teus olhos silenciosos, 
somando as imagens.
Qual pano, 
desce sobre a cidade o músculo
das coisas prementes. 
Das safras de pólvora colhi a tua incerteza
de rapariga. Depois, perdi-te
entre os prodígios."

Vasco Gato, Cerco Voluntário, Porto: Cadernos do Campo Alegre, 2009, p. 14. 

Tuesday, March 26, 2019

SERVIÇO



"A loucura serve-se aos cálices
galopa na solidão
à espreita do próximo abrigo

A loucura estoira 
num bar de cães
atira facadas
pela noite dentro

A loucura entontece
molda as palavras
torna-nos frágeis
e invencíveis

A loucura
não tem cura."


António Pedro Ribeiro, Café Paraíso, 2.ª ed., Porto: Edição Bairro dos Livros/Cultureprint, 2012, p. 47. 

Monday, March 25, 2019

TER NOS OLHOS



"É preciso estar cego
ou ter nos olhos aparas de vidro, 
cal viva,
areia a ferver, 
para não ver a luz que brota em nossos actos, 
que ilumina por dentro a nossa língua, 
a nossa palavra diária.

É preciso querer morrer sem um sinal de glória e de alegria, 
sem participação nos hinos futuros, 
sem ficar na lembrança dos homens que hão-de julgar o passado 
sombrio da Terra. 

É preciso querer já em vida ser passado, 
obstáculo sangrento, 
coisa morta, 
seco olvido."


Rafael Alberti, Antologia Poética, selec. e trad. Albano Martins, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 47. 

Sunday, March 24, 2019

TERREIRO



"Entre veneno e cura, 
eis-nos vassalos do tamborim
para o imemorial castigo da treva. 
Os nossos corpos, dois vocábulos
que se estudam. Dancemos, pois, 
para que entre nós se acerte a pronúncia, 
que o terreiro sempre foi dialecto
do suor, pano estendido que por vezes
nos cinge e reserva, para logo
uma pata descurada
nos apartar com um esgar. 
A tarântula rói já a um canto
a sua noite de esperanças, 
seu alimento de pó. 
Há braços que sobejam e regressam
Enquanto esta aflição durar, estaremos
a salvo da guilhotina do sol."


Vasco Gato, Cerco Voluntário, Porto: Cadernos do Campo Alegre, 2009, p. 9.

Saturday, March 23, 2019

ACEITAR



"aceita que tudo
pode ser perdido realmente
que o que perdeste agora não é um adiamento
algo a que poderás voltar mais tarde
alguma coisa morre em cada pausa
e essa é a única aprendizagem"

Tatiana Faia, Um Quarto em Atenas, Lisboa: Tinta-da-China, 2018, p. 32. 

Friday, March 22, 2019

OS DESEJOS



"Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada. 
Este edifício junto à praia, deixai-o
entregue à ruína, 
às folhas de milho, 
ao ar salgado. 

Que as crianças possam tropeçar nas lajes soltas
e no átrio ecoe, como uma pedreira, 
o desejo de muitas mãos. 

Deixai dormir as mariposas dentro de lâmpadas partidas
e as formigas engrossarem pelos cantos
como sal. 

Não inventeis mais nada, 
nem formas eloquentes de evitar que o bronze oxide. 
Aceitai o suor do tempo. 

Que algumas coisas apodreçam. 
Que os elefantes atravessem a planície. 
Que as veias rebentem 
do esforço de permanecer em pé. 

E que nem tudo se sustente como a rosa
se sustenta de florir. 

Deixai, deixai os vários pisos incomunicáveis, 
o desvão ser cortejado pelo giz dos aviões. 
que a lua pouse ali aberto o crânio, 
que lhe bata o sol. 

Ainda são precisos templos
onde o pó seja gentil
e incensado
como os pés pela caruma dos pinhais."


Andreia C. Faria, Tão bela como qualquer rapaz, s.l.: Língua Morta, 2017, pp. 54-55. 

Thursday, March 21, 2019

DA POESIA



"A pedra escolhida estalava nas mãos de Zorobabel
A pedra aos gritos, a pedra no fio de prumo

O livro aéreo ignorava ainda o ritmo das migrações
As mulheres com as asas da cegonha semeavam o alqueire
Entre a terra e o céu

As oliveiras antigas tinham a luz de várias luzes

Com olhos por dentro saíram os quatro cavalos eólicos
A pedra angulava-se para lançar o rebento"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 209. 

Tuesday, March 19, 2019

O FILHO DE SAUL


"os mortos às vezes carregam os vivos
um homem caminha pelos próprios pés
mas são os passos de outro
que assomam nas suas pegadas
no seu rosto
o olhar é o dos olhos de outro
e ao tocar os lábios com os dedos
estas não são as suas mãos
e não é este o seu gesto

e sábio
deve ser só quem se consegue lembrar
depois de tudo roubado 
do dever da própria memória

uma prece para sempre incompleta
estilhaça-me nos lábios
uma memória imprecisa
que não tem já força para sustentar os alicerces da casa
a mulher os filhos legítimos
o próprio nome
um peito que se enche de ar
um rei é o que pode salvar
um filho de ser cortado ao meio
um homem o que chega depois

por isso um nevoeiro
alastra dos campos
até à nossa memória 
e tudo se enche de vidro

mas nada disto se confunde sequer com o outono
das estações aquela em que se morre mais
ou com o mundo dos vivos
estas poucas horas não guardam pena nenhuma
congelam o sangue e seguem em frente

o espectador ao meu lado vai bebendo whiskey
enquanto sem nos mexermos
e sempre do mesmo ângulo do ecrã
vemos saul
lavar o corpo imóvel do filho
procurar um rabi
esperar pela última prece
como se esta fosse civilização
âncora do tempo e do mundo
e fosse imperturbável
e nada a fosse destruir nunca"


Tatiana Faia, Um Quarto em Atenas, Lisboa: Tinta-da-China, 2018, pp. 40-41. 

Monday, March 18, 2019

FALA DO FLÂNEUR



"Não, multidão, 
não tenho gritos para te dar.

Mas só esta solidão
das noites dos pés doridos
que me afasta de mim
num erguer de bandeira
- tão só e de todos ! - 
no cortejo dos fantasmas que me leva...

Só esta solidão
crespa de amor total
que me aproxima de tudo
e arrasa as paredes e as almas
como a treva."


José Gomes Ferreira, "Sonâmbulo", in Poesia - II, 4.ª ed., Lisboa: Portugália Editora, 1972, p. 152. 

Sunday, March 17, 2019

NUVEM


"Olho para o céu imenso
com desespero comovido...
Aquela nuvem sou eu que a penso
ou nada tem sentido."

José Gomes Ferreira, "Areia", in Poesia - II, 4.ª ed., Lisboa: Portugália Editora, 1972, p. 17. 

Saturday, March 16, 2019

OS LUGARES


"São os lugares que nos fogem ou
nós que lhes fugimos
tornando-os intocáveis como
estrelas para as quais nem era
legítimo apontar quando
há tão pouco ainda descobríramos
a sua posição no verão que da pele 
fazia um espelho igual ao céu?
Esses lugares é com o pensamento
que varremos o que foi vida neles?
Ou ela permanece percorrendo
a estrada até ao tempo que formaram 
lugares transformados pela mente?
Se os espaço forma o tempo então a vida
refaz-se quando o olhar
sobre o céu do verão de novo incide"

Gastão Cruz, Repercussão, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 13. 

Friday, March 15, 2019

IRRESTRITA


"Claro, a máscara em si própria não podia realmente saber as respostas às perguntas da minha cara. O futuro é meramente função do passado. Não pode haver plano de ação para amanhã para uma máscara que não conta nem vinte e quatro horas de vida. A equação social humana, em suma, é, como uma criança, demasiado irrestrita."

Kobo Abe, A Máscara, trad. Daniel Gonçalves, Porto: Civilização Editora, 1970, p. 163. 

Thursday, March 14, 2019

ANÉIS


"É certo que a expressão surge como os anéis que crescem anualmente no tronco da árvore, e por outro lado talvez seja absolutamente impossível rir sem qualquer preparação. Consoante a vida que uma pessoa leva, a tendência para repetir certas expressões faz com que estas se tornem fixas sob a forma de flacidezes e rugas."

Kobo Abe, A Máscara, trad. Daniel Gonçalves, Porto: Civilização Editora, 1970, p. 130. 

Wednesday, March 13, 2019

PODER



"O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras."

Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico, trad. Fernando Tomaz, Lisboa: Difel, 1989, p. 15. 

Tuesday, March 12, 2019

VEGETAL



"O filósofo respondeu à pergunta dizendo estas palavras:
- Naquele dia em que Jesus Cristo veio a cavalgar humildemente sobre o asno, isso significou que Deus participa, na natureza humana de Cristo, de todas as criaturas; pois através do corpo de Jesus Cristo significou que as árvores participam com a natureza vegetativa de Cristo, porque queria que a vegetativa das árvores honrasse o seu corpo, no qual há natureza vegetal."


Ramon Llull, "Livro das Maravilhas", in Obra Escogida, trad. Pere Gimferrer, Barcelona: Penguin Clásicos, 2016, p. 130. 

Sunday, March 10, 2019

TERRA BREVE



"Eis os sais de uma terra breve
o que resta de um rosto a face
sempre oculta que mantemos
aqui escrevo enquanto me dou
deixo a posse dos metais os passos
os abraços o fogo e a água por
que juro o compasso os passos
no templo a pedra onde me sento"


José Viale Moutinho, Retrato de Braços Cruzados seguido de Páginas de Itália, Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 82. 

Saturday, March 9, 2019

AÉREOS 2



"Devia ser maio a cor que nos desenhava. 
Só o ar nos vestia, de uma vida mais

leve
que ele."


Eucanaã Ferraz, "Sentimental" in Poesia, Lisboa: IN-CM, 2016, p. 221. 

AÉREOS 1



"Que estranha matéria move os homens e seus destinos.

Da mesma matéria que os deuses
e as gasolinas. 

Mola de mover ônibus
alavanca de navio
pavio de trens aéreos. 

Cansaço de aço e ossos
sapato de asa e vapor. 

O infinito é esquisito 
cheio de embarques entradas e saídas
sonho e toalhas de hotel.

Que estranhos destinos nos traz a escada rolante."


Eucanaã Ferraz, "Livro Primeiro" in Poesia, Lisboa: IN-CM, 2016, p. 569. 

Thursday, March 7, 2019

REFREAR


"Os primeiros Profetas, os mais antigos Legisladores, os Pastores das nações nascentes, os Reis fundadores de cidades e instituidores de justiça, os Mestres sábios e santos, cedo começaram a dominar os instintos bestiais. Pela palavra falada e esculpida domesticaram os homens-lobos, desbravaram os selvagens, refrearam os bárbaros, instruíram verdadeiras crianças cobertas de cãs, adoçaram os ferozes, dobraram os violentos, os vingativos, os inumanos. Pela suavidade da palavra ou o terror dos castigos, Orfeus ou Dragões, prometendo em nome dos Deuses do alto ou ameaçando em nome dos Deuses subterrâneos, cortaram as garras arreganhadas, protegeram os indefesos, os viandantes, as mulheres."

Giovanni Papini, História de Cristo, trad. Francisco Costa, Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 97. 

Wednesday, March 6, 2019

CINZAS



"Quando Lhe dizem que a filhinha de Jairo está morta, responde: não está morta, mas dorme. 
Não pretende ressuscitar, mas acordar. Para Ele, a morte não é mais do que um Sono: um sono mais profundo de que o sono vulgar do quotidiano. Tão profundo que só um amor sobre-humano o pode quebrar. Amor mais pelos sobreviventes do que pelo adormecido. Amor de alguém que chora ao ver o pranto dos que ama."


Giovanni Papini, História de Cristo, trad. Francisco Costa, Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 140. 

Monday, March 4, 2019

MÁSCARAS


"Com as fivelas ajustei na face
minha máscara de couro e de verniz:
tudo mudou, à minha volta nasce 
da mesma natureza outro matiz. 
Com os outros mudando o mesmo faz-se
em mim que mudo no que disse e fiz
e com mudar-me a mesma muda dá-se
nos outros que são espelhos vis-a-vis. 
E assim me fui esquecendo de quem era
até já estar esquecido de quem sou
e apenas só por sonhos o relembre!
Separam cada rosto, - fenda e cera - 
abismos de milénios por que vou
do aparente até Deus, voando sempre!"

Jorge Guimarães, A Dor de Deus, Lisboa: Guimarães Editora, 1985, p. 22. 

CALÇADA


"São de quando estas árvores que balançam
cabelos e vestidos com o vento, 
a mesma voz gemendo igual lamento
uma contra as outras, livres, lançam. 
De quando o céu azul e o mar que cansam
saudades dum e doutro, que tormento
estará em no mar pôr o pensamento
ou na terra pensar se as ondas dançam!
Que iguais também são das criaturas
as vozes que repetem mesmas coisas 
marés de gerações que os sinos dobram, 
árvores, gentes, mar, dor e venturas, 
apagados dizeres em mesmas loisas
que sempre as minhas vidas me recordam."


Jorge Guimarães, A Dor de Deus, Lisboa: Guimarães Editora, 1985, p. 13. 

Friday, March 1, 2019

DIREÇÃO


"E cada vez mais embriagado por aquela luz meridional e por aqueles perfumes primaveris em pleno inverno, meteu por uma viela e dirigiu-se para o campo.Ao sair do antigo bairro da Judiaria, vendo-se em plena campina, respirou livremente, como se quisesse meter nos pulmões toda a vida, toda a frescura e todas as cores da sua terra."

Vicente Blasco Ibañez, Por Entre Laranjeiras, trad,  Moraes Rosa, 4.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 9.