Sunday, July 31, 2022

SIMULACROS

 



"Por isso, agora podemos confessar o que era, o que é, o antigo terror que as fábulas continuam a provocar. Não é nada de diferente do terror primordial: o terror do mundo, o terror perante os seus mudos, enganosos, ardilosos enigmas. O terror perante este lugar da constante metamorfose, da epifania, que inclui acima de tudo a nossa mente, onde assistimos ao incessante turbilhão dos simulacros."

 

Roberto Calasso, Os quarenta e nove degraus, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa: Cotovia, 1998, p. 112.

VIDROS

 



"Vidros são vivos de luz, e as estrelas hecatombes de palavras, segundo Taurus era visto a defender-se na arena, ou a perecer na matadouro."


Maria Gabriela Llansol, Os Cantores de Leitura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 117. 

Friday, July 29, 2022

ANTIQUÍSSIMO

 



"cada nota deve salientar-se com nitidez. Desejo de livre arbítrio quando me sinto atraída para a schola de canto que foi determinada para o meio solar da casa. Há vários centros neste interior de fora. 
mas este desafia algumas regas, pois cada um de nós é novo para si mesmo e antiquíssimo para o centro solar."


Maria Gabriela Llansol, Os Cantores de Leitura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 89. 

Thursday, July 28, 2022

EXPRIMIR

 



"É preciso exprimir a noite - e a sua passagem corredia. Passagem ao recinto, ou domínio concentrado em que vivem os animais. 

Como a noite. Rorante corre, 
vejo-lhe nitidamente o movimento das pernas,          uma pousa no chão, depois a outra,        intercalada nos dois movimentos, ela voa______________de punhos cerrados e olhar certo. Noite não é um enigma, é o mistério do enigma onde ela quer ir."


Maria Gabriela Llansol, Os Cantores de Leitura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 60. 

Wednesday, July 27, 2022

ESTRAGAMENTO

 



"O amor inventou-o depois o estragamento dos bons costumes gregos e romanos, como coisa necessária e acirrante aos paladares botos dos filhos viciosos das cidades. 
Ainda agora nas aldeias, afastadas dos focos da corrupção, coisa que eu nunca ouvir dizer é: «A Maria do Ribeiro ama o António da Capela.» Lá não se diz ama; é querem-se. «Querem-se» é outra coisa; é amalgamarem-se num só ser, em uma só vontade, numa identidade de alma e corpo tal, e tão uma que nem sequer cogitam se há desgraça com força de desuni-los aquém da morte. E para lá da sepultura ainda eles têm como seguira a vida imortal em união de penas ou glórias."


Camilo Castelo Branco, Coração, Cabeça e Estômago, Lisboa: Aletheia Editora/Expresso, 2017, p. 172. 

Tuesday, July 26, 2022

SANTANA

 



"Senhor! Senhor!
Que nome tem
O amor de mãe?
Amor... e o dela, 
Da minha estrela?
Amor, também."


António Nobre, Primeiros Versos, Porto: Lello & Irmão Editores, 1984, p.  107. 

Monday, July 25, 2022

SANTIAGO

 



"Pôr a mão sensível na frialdade
da laje do túmulo do Apóstolo.
São cinco covas de infinitos dedos.
Alguém está sempre ali, mostra
que a carne mole em pedra
dura abre os cinco caminhos covos. 

Pentágono, depois, ou cifra, 
cada das mil mãos devolutas
moldou o seu não ser.
Asas de vime deixadas soltas, 
sovelas, meadas de lã e esparto, 
socapas, e tudo o que é corrupto
nos gestos rústicos ausentes
se tornam ofertas incorruptas. 

Preenchem as mãos desses devotos corpos
que veneram tão pequeno esquife
de pedra onde veio o Apóstolo
varar em nenhum contorno ibérico, 
mas sim no esplendor onírico."


Fiama Hasse Pais Brandão, "Três Livros - Poemas Galaicos", in Obra Breve, Lisboa: Teorema, 1991, p. 548. 

Sunday, July 24, 2022

TRANSFORMAÇÃO

 



" - Morreu?!
- Não morreu, meu caro Novais. Um filósofo não deve aceitar no seu vocabulário a palavra morte, senão convencionalmente. Não há morte. O que há é metamorfose, transformação, mudança de feito. Pergunta tu ao doutíssimo poeta José Feliciano de Castilho o destino que tem a matéria. Dir-te-á a teu respeito o que disse de Ovídio, sujeito que não era mais material que tu e que o nosso amigo Silvestre da Silva. «Ovídio cadáver», pergunta o sábio, «onde é que para?» Tudo isso corre fados misteriosos, como Adão, como Noé, como Rómulo, como nossos pais, como nós, como nossos filhos, rolando pelos oceanos, flutuando nos ares, manando das fontes, correndo nos rios, agregado nas pedras, sumido nas minas, misturado nos solos, viçando nas ervas, rindo nas flores, recendendo nos frutos, cantando nos bosques, rugindo nas matas, rojando nos vulcões, etc. isto, a meu ver, é exato e, sobretudo, consolador. O nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, anda repartido em partículas. Aqui faz parte da garganta de um rouxinol; além, é pétala de uma tulipa; acolá, está consubstanciado num olho de alface; pode ser até que eu o esteja bebendo neste copo de água que tenho à minha beira e que tu o encontres nos sertões da América, alguma vez, transfigurado em cobra-cascavel, disposto a comer-te, meu Faustino."


Camilo Castelo Branco, Coração, Cabeça e Estômago, Lisboa: Aletheia Editora/Expresso, 2017, p. 9. 

Saturday, July 23, 2022

ILUMINAÇÃO



 


"Em memória de uma poesia
Cuja iluminação maldita
Lembra a da estrela que medita
Sobre a putrefação do dia:

Verlaine, pobre aula sem rumo
Louco, sórdido, grande irmão
Do sangue do meu coração
Que te despreza e te compreende
Humildemente se desprende
Esta rosa para o teu túmulo."


Vinícius de Moraes, O Poeta Apresenta o Poeta, col. Cadernos de Poesia, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969, p. 71.

Friday, July 22, 2022

NO FUNDO DA CASA

 



"         Encontrei no fundo da casa viva de cores a borboleta que aprendeu a ler sobre a aurora de Nietzsche. 
Fiquei feliz que toda a noite caiu a meus pés e, de facto, a aurora era uma dessas cores vivas."



Maria Gabriela Llansol, Os Cantores de Leitura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 19. 

Wednesday, July 20, 2022

TRAJECTÓRIA

 



"O centro da espiral, para o qual converge a circulação do seu traçado, constitui como que o ponto final da trajectória da vida humana, como que o lugar geométrico da sua morte e do seu enterramento; e, em sentido inverso, o epicentro de onde irradiará o seu retorno à vida, a uma vida ressurrecta. Por outro lado, a forma agrária da «sobrevivência» implica a «morte» da relativa liberdade do nómada, o seu «enterramento» no húmus fértil e a sua fixação num lugar geograficamente definido e circunscrito. Impõe-se, assim, a ideia definitiva de «centro», correlativa de centro urbano, em torno do qual gravitará, a partir daí, a vida da comunidade sedentária."


Lima de Freitas, O Labirinto, Lisboa: Editora Arcádia, 1975, p.134. 

Tuesday, July 19, 2022

DESPERTADOR

 


"Mas o que há a perder? Somos devorados já, vivemos no próprio lugar do Minotauro - ainda que a besta nos coma sem que o apercebamos, sonâmbulos que somos. Talvez o labirinto seja, além do mais, um dispositivo «despertador», um convite à consciência da consciência."


Lima de Freitas, O Labirinto, Lisboa: Editora Arcádia, 1975, p. 8. 

Monday, July 18, 2022

BELA IMAGEM

 




"Bela imagem, emprego idolatrado,
Que sempre  na memória repetido, 
Estás, doce ocasião de meu gemido, 
Assegurando a fé de meu cuidado.

Tem-te a minha saudade retratado;
Não para dar alívio a meu sentido;
Antes cuido; que a mágoa do perdido
Quer aumentar coa pena de lembrado.

Não julgues, que me alento com trazer-te
Sempre viva na ideia; que a vingança
De minha sorte todo o bem perverte.

Que alívio em te lembrar minha alma alcança, 
Se do mesmo tormento de não ver-te, 
Se forma o desafogo da lembrança?"


Cláudio Manuel da Costa, Obras, Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 77. 

Sunday, July 17, 2022

CRIATURAS DO AR

 



- Heite querer sempre, Xálima, mentres o mundo sexa mundo.
- Non fales por falar; ti es home, carne sen consistencia que cobres de grinaldas e ferro para agachar a súa febleza. Os homens sodes criaturas do aire, paxaros sen asento, fume. Eu son como a serpe, arrastro o meu ventre pola terra e tomo alento da terra con todo o meu ser."


Ramón Caride, O Frío Azul, Santiago de Compostela: Urco Editora, 2015, pp. 68-69. 

Saturday, July 16, 2022

CINTILAÇÕES

 



"Sou cúmplice porque viajo, 
amo, 
gravo o teu nome no coração da árvore, 
as minhas raízes enlaçam-se nas tuas, 
são a lua e o anjo
no êxtase do voo."


Amadeu Baptista, Arte do Regresso, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 20. 

Friday, July 15, 2022

ANIVERSÁRIO

 



"não há texto para esse momento do caminho
a dor e o medo não vêm de estarmos sós mas de não haver 
texto
e, mesmo havendo que poderá ele fazer? Somos e fazêmo-lo
para a hora em que haverá apenas desconhecido
nessa hora escreveremos juntos, com ele ou com um amigo, 
um texto que será tão diferente deste e do amigo que nos perguntaremos
creio, aliás, que não perguntaremos"


Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 73. 

Thursday, July 14, 2022

MUNDO DAS ALMAS

 


"Assim acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Ele quis os grandes Santos, que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também outros mais pequenos, e estes devem contentar-se com serem margaridas ou violetas, destinadas a deleitar os olhares de Deus quando olha para o chão. A perfeição consiste em fazer a sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos..."


Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, História de uma Alma, Paço de Arcos: Edições do Carmelo, 1996, p. 37. 

Wednesday, July 13, 2022

RUFO

 


"Nas quatro noites que Soares passou fora de casa, Alfredo pela volta da uma hora cosia-se com a parede do longo corredor, entreabria a porta do quarto de Ermelinda e fechava-a depois por dentro. E até às quatro, cinco horas da manhã, o leito conjugal era desonrado nos delírios de um adultério, que uma lubricidade insaciada alimentava. Ermelinda tinha o cuidado de preparar o despertador para os alarmar antes que os criados acordassem, podendo surpreender Alfredo. E era o seu rufo metálico, áspero e irritante, que os fazia despegar os braços um do outro, meio embriagados de prazer, ainda co beijos vagos e frouxos, como as últimas pétalas caídas da flor desfolhada dos seus desejos..."

Luís de Magalhães, O Brasileiro Soares, Porto: Lello & Irmão, 1981, p. 116. 

Tuesday, July 12, 2022

HOMENS NOVOS

 



"Por isso, Bouvard e Pécuchet não é a história de dois pobres mentecaptos que tentam apoderar-se do Saber e que se vão atolando cada vez mais em areias movediças. É antes a única e inevitável Odisseia moderna, o itinerário enervante que cada «homem novo» é obrigado a percorrer, tanto na época de Flaubert como nos nossos dias. O Saber triunfa mal a Sapiência desaparece - e até o Gosto, que era o último, e o mais discreto e volátil, dos seus herdeiros. Sem iniciação, qualquer indivíduo se vê,  perante o Saber,  na mesma posição que Bouvard e Pécuchet. E, como eles, os «homens novos» são seres perfeitamente informes, ardósias não escritas (como pretendiam os filósofos, para poderem ser eles a escrever), corpos elásticos e vazios, privados de raízes, mas muito mais acicatados pela infernal boa vontade de criar o que não é possível criar e que só se pode ter de antemão: raízes. Agarram-se ao Saber, a cada simples ramo da grande árvore do Saber, para se esconderem entre a sua folhagem e aí deixarem que a terra os alimente. Mas todos os ramos se quebram. O seu nada é sempre demasiado pesado."


Roberto Calasso, Os quarenta e nove degraus, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa: Cotovia, 1998, p. 97.

Monday, July 11, 2022

LOUVORES

 


"Na Cabala conta-se que Deus cria a cada instante uma legião de novos anjos, cada um deles destinado, antes de se dissolver no Nada, a cantar louvores diante do Seu trono. Foi como um desses anjos que o novo se apresentou, antes de se decidir a dizer o seu nome. Receio bem que eu o tenha indevidamente impedido por muito tempo de cantar o seu hino. Nomeadamente aproveitando-se da circunstância de eu ter nascido sob o signo de Saturno - o astro da mais lenta rotação, o planeta das hesitações e dos atrasos -, para enviar a sua forma feminina ao encontro da masculina pela via mais longa e fatal, apesar de ambas em tempos terem estado intimamente ligadas, sem afinal se conhecerem."

Walter Benjamin, Diários de Viagem, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio &  Alvim, 2022, p. 341. 

Sunday, July 10, 2022

CABELOS DOURADORES

 



"Bem pode sobre o cândido Oriente
Soltar Febo os cabelos douradores, 
Que quem vive como eu, vê sempre as flores
Tintas da negra cor do mal que sente. 

Para mim não há prado florescente, 
Tudo murcham meus ais, meus dissabores, 
Nem me tornam cantigas dos Pastores
Jamais serena a pensativa frente. 

Se triste vou às danças, triste venho; 
E quando a noite estende húmido manto, 
A segurar o sono em vão me empenho. 

Não toco a flauta, versos já não canto; 
Cercada de pesar, mais bem não tenho
Que um triste desafogo em terno pranto."


Marquesa de Alorna, Poesias, selec. Hernâni Cidade, Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1941, p. 13. 

Friday, July 8, 2022

ESTRUTURA

 


"Reich está muito decepcionado com Plekhánov. Eu tentei explicar-lhe a diferença entre modos de representação materialista e universalista. O universalista é sempre idealista, porque não dialéctico, A dialéctica avança sempre numa direcção em que cada tese ou antítese com que depara é representada de novo como síntese de estrutura triádica, e por esta via penetra sempre mais fundo no cerne do seu objecto, e só representa um universo através dele. Qualquer outro conceito do universo é sem objecto, idealista."

Walter Benjamin, Diários de Viagem, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio &  Alvim, 2022, p. 126.

Thursday, July 7, 2022

RAMARIA

 



" - As palavras, no ninho do seu som, formam a ramaria
sentia-se exausto por ouvir tantos livros a cantar onde brilha a 
voz
- Há mil livros - disse de si para si: Miríades. Há mil mundos. Miríades, mesmo se só há um amor de amicícia. E muito do resto
dizia-me
já entrada no sono, 
«são apenas árvores ingloriamente derrubadas»"


Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 112. 

Wednesday, July 6, 2022

UMA PORTA


"E é vital desenhar na proximidade da dor
uma porta a abrir-se
ou um lugar precioso com a entrada fácil
um lado simples
um pequeno ângulo ligeiramente em cunha
onde se não vê ninguém, 
só alguns animais por detrás de um arvoredo
ou, quem sabe?, algumas palavras por detrás de uma rede
transportando imagens."


Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 128.  

Tuesday, July 5, 2022

SONS

 



" - Também a mim me expulsaram de casa por gritar no silêncio. 
Ao que a música lhe responde:
- Sempre desejei que os sons nascessem como crianças, não da carne mas da felicidade."


Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 110. 

Monday, July 4, 2022

UM LUGAR

 


"Só se conhece um lugar depois de o ter experimentado em todas as dimensões possíveis. Para desfrutar de uma praça temos de ter entrado nela a partir dos quatro pontos cardeais, abandonando-a também em cada uma dessas quatro direcções. De outro modo ela salta-nos ao caminho três ou quatro vezes de forma totalmente inesperada antes de nos termos decidido a dar com ela. Numa fase posterior procuramo-la e usamo-la como ponto de orientação. O mesmo se passa com as casas. O que nelas se esconde só o percebemos quando passamos por outras em busca de uma casa muito particular. Dos arcos dos portais, das ombreiras da porta de entrada, em letras negras, azuis, amarelas e vermelhas de vários tamanhos, salta como uma seta a imagem de botas ou roupa acabada de passar, e em forma de degrau gasto ou de lanço sólido de escadas toda uma vida de luta ensimesmada e muda. Também é preciso ter atravessado as ruas no carro eléctrico para perceber como esta luta se continua pelos andares, para chegar ao seu último e definitivo estádio nos telhados."


Walter Benjamin, Diários de Viagem, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio &  Alvim, 2022, p. 106. 

Sunday, July 3, 2022

SUPRATERRESTRE

 


"- Você não acredita na Imaculada Conceição? Não acredita na autenticidade do polegar de São João Nepomuceno que se encontra nos Piaristas de Praga? E, em suma, acredita mesmo em Deus? E, se não acredita, porque é que se fez capelão?
- Caro colega - respondeu Katz, batendo-lhe com familiaridade nas costas -, enquanto o Estado considerar que os soldados que vão morrer no campo de batalha têm necessidade da bênção divina, o ofício de capelão será bastante bem retribuído, e não fatiga demasiado uma criatura. No que me diz respeito, preferi-lo-ei sempre à obrigação de correr os campos de instrução, por exemplo, e assistir às manobras. Nesse tempo, dependia sempre de uma ordem dos meus superiores, enquanto agora eu sou o meu próprio patrão, faço aquilo que me apetecer. Eu represento alguém que não existe e sou o meu Deus apenas para mim. Quando me apraz não perdoar os pecados a alguém, não lhos perdoo, nem que ele me suplique de joelhos. Além disso, os tipos que seriam bastante burros para o fazer são velhacamente raros.
- Pois eu amo muito o bom Deus - replicou o outro, soluçando - amo-o muitíssimo. Dê-me um pouco de vinho. Considero muito o bom Deus - continuou ele -, eu venero-o muito e preocupo-me grandemente com ele. Não há ninguém que eu venere tanto.
Bateu com tanta força com o punho em cima da mesa que as garrafas estremeceram.
- O bom Deus é de uma natureza sublime, alguém supraterrestre. É muito honesto nos seus negócios pessoais. É como uma aparição em pleno Sol, ninguém é capaz de me refutar. Venero também muito São José e, enfim, todos os santos, salvo o São Serapião, por causa do nome que não me agrada."

Jaroslav Hasek, O Valente Soldado Chveik, trad. Alexandre Cabral, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971, p. 126. 

Saturday, July 2, 2022

MUTAÇÕES

 



"Teresa ouviu, mas os detalhes, as mutações rápidas e aquilinas sucediam-se, faziam parte daquele passeio em que me levava consigo. Não era milagre porque, aparentemente, nada se passava. Um dos efeitos do texto Joshua é precisamente, pensei, criar uma dis-junção__________tudo é anódino, a tender para um simples algo desbelo, como se pensasse des-lavado mas, algures, há um fulgor
inapreensível pelo estético."

Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 28. 

Friday, July 1, 2022

BRILHO

 



"Minimamente longe, para lá do rio, os lumes brilham, e as águas são amplas. Olhando, todavia, para dentro dos diferentes espaços há mosaicos de luz, cenas que se pintam com o pensamento, num sentimento de correr; o pensamento passa e intercepta o luar que principiava a delinear a ausência dos corpos
«peixes-cores, árvores-flor, velas e vestidos?»"


Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, Lisboa: Relógio d'Água, 1998, p. 17.