Wednesday, April 30, 2008

JUNTO À ABSOLUTA IRREALIDADE 1



"Há sítios, como aquele pedaço de parede a que se encoste um espelho, que, embora existam, estão mesmo à beira da absoluta irrealidade, a qual de tal maneira neles mergulha às vezes as raízes que quase os diríamos definitivamente transportados para o lado de que só deus pode apreender a luz."


Luís Miguel Nava, O Céu sob as Entranhas, in Poesia Completa, org. Gastão Cruz, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 201.

Wednesday, April 23, 2008

SEMPRE CARO MI FU QUEST'ERMO COLLE

"Cara me foi sempre esta erma colina
E esta sebe, que por diversos lados
o extremo horizonte veda ao meu olhar.
Mas, sentado e olhando, intermináveis
Espaços para além dela, e sobre-humanos
Silêncios, e sossego profundíssimo
No pensamento imagino; então por pouco
O coração não se sobressalta. E, quando o vento
Nas folhas ouço sussurrar, aquele
Infinito silêncio a esta voz
Vou comparando: e lembro-me do eterno,
E das mortas estações, e da que agora passa
E vive, do seu rumor. Assim no meio
Desta imensidade o pensamento se me afoga:
E naufragar me é doce neste mar."

Giacomo Leopardi, Cantos, trad. Albano Martins. Lisboa: Vega, s/dt, pp. 40-41.

Sunday, April 20, 2008

NOW THE LIGHT FALLS ACROSS THE OPEN FIELD

(palácio do Bucoleon, Istambul)



"No começo está o meu fim. Uma após outra
As casas erguem-se e caem, desmoronam, são aumentadas,
São mudadas, destruídas, restauradas, ou onde estavam
Fica um descampado ou uma fábrica ou um desvio.
De pedra velha a edifício novo, de lenha velha a fogos novos,
De fogos velhos a cinzas e de cinzas à terra
Que é já carne, pele e fezes,
Osso de homem e bicho, haste de trigo e folha.
As casas vivem e morrem: há um tempo para edificar
E um tempo para viver e para procriar
E um tempo para o vento quebrar a vidraça solta
E abanar o lambril onde se apressa o rato do campo
E abanar o arrás em farrapos lavrado com uma divisa silenciosa.

No meu começo está o meu fim. Agora cai a luz
Ao longo do descampado e deixa a funda vereda
Encoberta por ramos, escura na tarde,
Onde te encostas a um talude enquanto passa uma carroça.
E a funda vereda insiste no rumo
Da povoação, no calor eléctrico
Hipnotizada. Numa névoa quente a luz sufocante
É absorvida, não refractada, por pedra cinzenta.
As dálias dormem no silêncio vazio.
Espera pela primeira coruja."


T. S. Eliot, East Coker, in Quatro Quartetos, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, pp. 38-39.

Thursday, April 17, 2008

APONTAR NA DIRECÇÃO DA DÚVIDA


"De entre todas as espécies de fracassos, cada pessoa escolhe aquele que menos compromete o seu orgulho, que menos a decepciona. Eu tinha fracassado na Arte, na Religião e nas minhas relações com as pessoas. O meu fracasso artístico (isto ocorreu-me agora) tinha por origem a minha falta de fé na discreta personalidade humana. «As pessoas - escreveu Puserwarden - mantêm-se continuamente iguais a si próprias, ou, pelo contrário, perdem-se e tornam a encontrar-se numa cadência tão rápida que lhes dá a ilusão de uma continuidade, como o tremular das imagens no velho cinema mudo?» Não cria na realidade autêntica das pessoas, nem pensava que houvesse qualquer possibilidade de descrevê-las com a mínima probabilidade de veracidade."


Lawrence Durrel, Justine, trad. Daniel Gonçalves, 8ª ed., Lisboa: Ed. Ulisseia, 2004, p. 163.

Monday, April 14, 2008

O MUNDO QUANDO NÃO ESTAMOS A OLHAR


"O mundo quando não estamos a olhar: as paisagens
mudam de lugar, vão mudando o mundo. Quando
olhamos só os vestígios ficam
da mudança. E não sabemos antes a figura
em que pouco se demoram as paisagens. Só o poema
a dá enigmática e evidente.
Dirão que é esse o rosto da morte que nos olha, mas
não o creias e canta antes a figura do que desapareceu
como a própria doação da figura enquanto as paisagens
mudam com o mundo. Para a frente há ainda a noite
da terra que apaga e acende a última praia

e o seu elogio por quem se despede enquanto dura."


Manuel Gusmão, A Terceira Mão, Lisboa: Ed. Caminho, 2008, pp. 46-47.

Sunday, April 13, 2008

A NOITE NASCENTE



"O crepúsculo do entardecer
sobre o eixo do tempo e sobre si mesmo rodando
abria a venenosa vertigem, a sua grande flor azul

e negra, esta flor do luto fechando-se sobre a terra.

É então que tendo talvez mudado a mão das águas
ou interrompido o tempo a mão do mundo
se terá lançado contra a solidão a voz sem mais -

era a noite nascente : a noite que apenas nascia"


Manuel Gusmão, A Terceira Mão, Lisboa: Editorial Caminho, 2008, p. 24.

Saturday, April 12, 2008

A TREVA A NOSSA COMPANHEIRA O FUTURO



"Defraudada após tão longa espera
Toda a esperança se extingue
e em cada dia
é a treva a nossa companheira
o futuro
uma ruina distante no horizonte
inabitável
cinzas entre nós todos
Formas indefinidas de apagadas lembranças
De nada serve
avivar ou atiçar o fogo

Talvez um dia ainda salte
uma centelha
mas não maior
que este poema"


Günter Kunert, 90 Poemas, poema trad. Leopoldina Almeida, Lisboa: a páginas tantas, 1983, p. 110.

Friday, April 11, 2008

A LONGA AUSÊNCIA



"Há os que se deitam sobre a relva
Como sombras que dormem sobre túmulos.
Tu, porém, dormes sobre a morte
A longa ausência que há dentro dos poemas"



Daniel Faria, "A Casa dos Ceifeiros", in Poesia, ed. Vera Vouga, 1ª ed., V. N. Famalicão: Quasi Edições, 2003.

Tuesday, April 8, 2008

A ESCURIDÃO, A NUDEZ, A FORÇA DE SER-SE VULNERÁVEL


"Acordados, que máscara pode ser o nosso rosto?
- Se não nos atrevemos a defrontar ninguém
com nossa límpida nudez,
se o que somos a nós próprios ofende
e nem tentamos reparar quando nos injuriamos.
Ou, sem o confessarmos, vacilantes,
afastamo-nos de nossa condição, nosso desejo,
e continuamos,
configurando o alguém
que soterra quem somos.

O sono traz a força de ser-se vulnerável:
deitamo-nos, não tardamos a abdicar
da memória e do nosso frágil ceptro,
da ficção de usar um nome.
E abandonamo-nos a um regaço que engoda,
sem sabermos a quem pertencerá.

A escuridão vem insinuar
seu láudano,
as pálpebras deslassam-se:
morada somos, sem paredes,
- janelas ávidas sobre o abismo.
Contudo, morada irrespirável."

(...)

José Bento, Silabário, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 109.

Saturday, April 5, 2008

OBJECTO DE SOMBRA 1



"Estou cada vez mais cercado pelos astros
sou um frágil satélite do tempo
Como poderei saber o que não sei
o que nunca saberei se habito apenas
o vazio da minha ignorância circular
Procuro a identidade numa imprevisível estrela
no coração do instante
no rasgão fugidio do poema

Cada vez mais os círculos tenazes e monótonos
de um mundo que já não é dos deuses
nem dos homens
se apertam em torno do meu corpo sedento
de um espaço vivo de profundo universo
e de nascentes de silêncio e de estrelas de silêncio

Cada vez mais sou um ponto vazio
emparedado pelos círculos dos astros
e pelas linhas dissonantes do tráfego
um monossílabo no meio do nevoeiro
uma balança que só pesa a sua sombra"


António Ramos Rosa, "Clamores", in Antologia Poética, selec. Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 325.

Thursday, April 3, 2008

AUMENTAR INFINITAMENTE O PEDIDO QUE NASCE DA CARÊNCIA


"Não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos d'Ele extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado. ) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos d'Ele o que fatalmente nos busca, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta da nossa grandeza impossível - minha actualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.)"


Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 121.

Wednesday, April 2, 2008

REGRESSANDO À ELUCIDAÇÃO SENSÍVEL




"- Um móvel com olhos, a isso não chama também um voyeur?
- Como queira. Todos os seres com dois dedos de cabeça são voyeurs, Harrison. Não sabia?
- Não. Devo ter entrado em demasiados filmes de acção. Confesso que sinto o meu velho sexo a agitar-se.
- Não duvido. Por que não vai falar àquela mulher, uma vez que a deseja? Até é possível que ela o tenha reconhecido e que queira fazer cinema.
- Sou atreito a uma razoável dose de cinismo, como todos os móveis envelhecidos pelo tempo e a desilusão, mas o senhor bate-me aos pontos. O senhor pensa realmente aquilo que acabou de dizer?
- Não. Prefiro pensar que ela é tão indiferente quanto bela. Deste modo ela integra-se melhor na paisagem, faz parte da grande natureza que nos vê passar, a nós, seres transitórios, com um magnífico desprendimento.
- Não acredita no que disseram os poetas sobre a comunhão romântica das almas condenadas e a matéria da compaixão?
- Não. Deviam estar com os nervos bastante à flor da pele para proferirem tamanhas inépcias.
- O que é que procura, então, nesta paisagem?
- Já lho disse. Uma elucidação sensível. A indiferença ou até a crueldade não excluem a beleza e a inteligência."

Michel Rio, O Princípio da Incerteza, Lisboa: Ed. Teorema, 1997, pp. 20-21.