Thursday, January 23, 2025

ÀS PORTAS DE DAMASCO

 



"Esperei tanto o corpo daquele
que o meu coração ama
que ele acabou naturalmente por
se misturar ao meu cheiro com
o cheiro das romãs e das uvas
ao primeiro arrepio do outono
e ser aquele fugaz clarão que
me traz novo sangue e nova pele para
correr o mundo à sua procura
nas madrugadas em que os inimigos
varrem as casas e incendeiam as cidades

e só por isso sei que uma noite
hei-de tombar às portas de damasco
e ouvir em todos os rumores de ocultas águas
a voz que me há-de devolver purificada
ao corpo daquele que o meu coração ama"


Alice Vieira, O Que Dói às Aves, 2.ª ed., Alfragide: Caminho, 2014, p. 65.

Tuesday, January 21, 2025

HISTÓRIA DA CASA

 


"A vida moderna afrouxa o vigor destas imagens. Por certo ela aceita a casa como um lugar de tranquilidade, mas trata-se apenas de uma tranquilidade abstrata que pode assumir muitos aspectos. Esquece-se de um: o aspecto cósmico. É preciso que nossa noite seja humana contra a noite desumana. É preciso que seja protegida. A casa nos protege. Impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa."


Gaston Bachelard, A Terra e os Devaneios do Repouso - Ensaio sobre as imagens da intimidade, trad. Paulo Neves, 2.ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 89. 

Sunday, January 19, 2025

A PORTA

 



"Não é a primeira vez que me queixo,
ninguém me escuta.
Esta noite a chuva entrou-me pelos ossos
e não há quem acenda o lume.
Quem partiu levou consigo
o rapazito com olhos de coral,
deixando atrás de si a porta aberta."


Eugénio de Andrade, "O Outro Nome da Terra", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 448.

TRANSDISCIPLINARIDADE

 



"Neste panorama de ecletismo generalizado adquirem uma crescente importância e visibilidade as práticas artísticas transdisciplinares, propondo estimulantes desafios aos discursos especializados estanques, tradicionalmente confiados a disciplinas artísticas com fronteiras claramente identificáveis.
Um filme, uma performance, uma banda sonora ou uma série de frases numa parede podem ser obras de artes plásticas. A dança pode ser literatura e o vídeo pode ser dança. (O teatro pode não ser texto e o texto pode ser música. E tudo pode ser silêncio ou, pelo contrário, apenas ruído.)
O uso da palavra transdisciplinaridade tornou-se tão generalizado ao longo da última década que começou a adquirir as características das palavras que entram na moda."


Alexandre Melo, Arte e Poder na Era Global, Lisboa: Documenta, 2016, pp. 21-22.

Saturday, January 18, 2025

CURVA

 




"antevê a curva seguindo a deriva
da matéria.

segue a artéria que brota
substância proscrita.

antevê a solvência inaudita
da terra açudada.

segue na cabeça a matéria da escrita
ou na palavra dita.

antevê que existe e que o corpo passa
num golpe de fome. desatina.

e só dentro da distância e só dentro do silêncio
e só dentro da unidade, a vê."


Óscar Possacos, Curva, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2024, p. 54.

Friday, January 17, 2025

CORPO AUSENTE (para a memória de David Lynch)

 



"Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fôra o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre."


António Franco Alexandre, "Duende", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 508.

Thursday, January 16, 2025

OS SUPLICANTES

 


"Olhavam-se os suplicantes, interditos: tinham esperado outra fala, algo de transcendente! Afinal, expressava-se como qualquer um deles, abstraindo das faculdades espantosas de ouvir e ver, talvez perceber..."


Filomena Cabral, Em Demanda da Europa, Porto: Campo das Letras, 1997, p. 21.

DIXIT

 



"Assim disse:
- Sou condenado a ver, ainda que fechasse os olhos, me tapasse com a veste, tal como serei condenado a ouvir, mas não sofrais por mim, duvido que pudesse sofrer por vós! O tempo em que os deuses e os homens se sacrificavam por amor ao próximo, passou, assim não poderei dizer-vos que vejais naquele que vos segue um irmão, sim que nele estais vós, não ignorais que, actualmente, tendo-se perdido o sentido de grupo, resta a preocupação com a própria pele!"



Filomena Cabral, Em Demanda da Europa, Porto: Campo das Letras, 1997, p. 21.

Monday, January 13, 2025

ESPECTÁCULO

 


"A natureza era espectáculo grande e simples. Os sábios é que, com suas pesquisas imprudentes, suas exigências excessivas a des-serviam, como que, debruçado sobre uma poça de água límpida, não se contentando com a imagem pura que ela espelha, agita as águas e revolve o fundo, em busca da alma das linhas e das cores, que ninguém atinge."


Antero de Figueiredo, "Leça da Palmeira", in Jornadas em Portugal, 7.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d. p. 304. 

Sunday, January 12, 2025

EXÓTICO


 "O mal, tal como o fundamentalismo religioso, é, entre outras coisas, uma nostalgia de uma civilização mais antiga e simples, na qual havia certezas, como a salvação e a condenação, e onde sabíamos onde estávamos. Neste sentido, o Pinkie de Greene é um moralista estrito e antiquado. Num sentido curioso, o mal é um protesto contra a qualidade degradada da existência moderna. O Diabo é um reacionário da classe alta que acha a existência moderna repugnante. Nem sequer é suficientemente profundo para ser danado. O seu objetivo é injetar nela algo um pouco mais espiritualmente exótico."


Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 121. 

Friday, January 10, 2025

AS MEIAS DISTÂNCIAS

 



"Como te hei-de fazer ver
as meias distâncias
que nos separam das coisas?

É o nosso conforto num outro sítio
que nos proporciona
o arrepio de estarmos aqui."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Malva 62, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 95.

Thursday, January 9, 2025

RELÂMPAGO NEGRO

 


"Na nossa atual condição desvirtuada, diz Nat, o amor de Deus parecer-nos-ia «negação pura». Sem forma ou vazio. Estás a ver? Uma espécie de relâmpago negro que destrói tudo a que chamamos «vida». Deus é uma espécie de nada sublime. É um terrorista do amor, cujo perdão implacável está condenado a parecer uma afronta intolerável àqueles que não podem entregar-se. Os danados são os que experienciam o infinito «bom» de Deus como um infinito «mau». Do mesmo modo, podemos experienciar aquilo a que os historiadores da arte chamam o sublime (montanhas enormes, tempestades no mar, céus infinitos) como terrível ou magnífico, ou ambos."


Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, pp. 36-37. 

Wednesday, January 8, 2025

OS SONHOS




"De facto, os seres humanos podem alcançar um certo nível de autodeterminação. Mas só o podem fazer no contexto de uma dependência mais profunda de outros semelhantes, uma dependência que é aquilo que faz deles humanos. É isto, como veremos, que o mal nega. A pura autonomia é um sonho do mal."


Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 23.

Tuesday, January 7, 2025

BARROCO PORTUGUÊS

 


"Música e canto; arte formosa moldada, lavrada, bordada, tecida por artistas de fama; e, no conjunto das formalidades, a graça dos movimentos harmoniosos.
Tudo, nesse religioso ambiente de beleza, é lirismo festivo nas almas e nas coisas, desde os artesões da abóbada às fisionomias dos santos, em suas esculturas e seus painéis; no profuso ornato da talha dourada, no retábulo e nas capelas - barroco português onde, nas voltas e arquivoltas, nos frisos (estes, às vezes, séries de cabecitas de querubins alados); nas pilastras gregas, entre silvas de curvas decorativas, bailam, uns com outros, meninos gordinhos, nuzinhos; as grinaldas abraçam-se nos fustes salomónicos; criancinhas, de corpos rosados, afagam pombas que depenicam cachos de uvas; e minhotas flores cristãs, mutuamente, boamente se congratulam com as pagãs folhas de acanto dos capitéis coríntios." 

Antero de Figueiredo, Traição à Arte, 2.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, 1952, pp. 61-62.

Monday, January 6, 2025

OS ADORADORES

 



"É nos estuários que se concentram os adoradores
porque sabem que algo chega ao fim, algo se cumpre.
Também o vento do mar com os canaviais
e o canto imenso das aves migratórias
os fazem prosternar-se. São adoradores
de ver passar as águas mantendo-se enxutos
na veneração. Movem os templos ao longo das margens
acompanhando as águas para o justo fim.

Mas os mais amados, os verdadeiramente
tocados pela loucura, esses sobem e remontam
fixando-se para sempre as fontes e nascentes."


Carlos Poças Falcão, "A nuvem", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 310.

Sunday, January 5, 2025

MUNDO INCERTO

 



"Eis aqui mil caminhos. Por ventura
Qual destes leva a gente ao povoado?
Todos vão sós; só este vai trilhado;
Mas, se por ser trilhado, me assegura?

Não, que desde o princípio há que lhe dura
Do erro este costume ao mundo dado:
Ser aquele caminho mais errado
O que é de mais passage é fermosura.

Enfim, não passarei, temendo a sorte?
Também, tanto temor é desconcerto;
A quem passar avante, assi lhe importe.

Que farei logo, incerto em mundo incerto?
Buscar nos Céus o verdadeiro norte,
Pois na terra não há caminho certo."



D. Francisco Manuel de Melo, As Segundas Três Musas, 2ª. ed., selec. António Correia de A. E Oliveira, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1966, p. 100.

Saturday, January 4, 2025

FUNÇÕES

 



"Durante os séculos XIX e XX a escola assumiu pouco a pouco todas as funções da educação - nomeadamente as que pertenciam antes de mais - à comunidade e, depois, à família. Hoje é na escola que se aprende a andar na rua e nas estradas, a respeitar o Estado e a Pátria, a obedecer a todas as suas minuciosas prescrições policiais e fiscais - e até mesmo a fazer amor."


Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 18. 

CORTESIA

 



"A cortesia, um dos conceitos então mais difundidos, não constituía uma virtude de pequena importância. A sua origem era ilustre: «A Cortesia desceu do Céu, quando Gabriel saudou a Nossa Senhora e Elisabeth veio ao seu encontro.» Ela abrangia simultaneamente regras de boas maneiras e uma moral comum: não mentir, não se endividar, falar «com honestidade», e também: servir bem o seu senhor à mesa, na intimidade, no trabalho, na corte, na guerra e na caça, saber guardar segredos."


Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 13. 

Friday, January 3, 2025

A ALMA DEPÕE-SE NO OLHAR

 


"Para que o fundo bom de uma criança se manifeste por todos os lados (e ele reluz sobretudo no rosto), o seu olha deve ser doce, respeitador e honrado; os olhos duros são um indício de violência; olhos fixos, sinal de atrevimento; olhos errantes e vagos, sinal de loucura; eles nunca devem olhar de viés, o que é próprio de um sonso, de alguém que prepara uma maldade; também não devem ser desmesuradamente abertos, como os de um imbecil; baixar as pálpebras e piscar os olhos é um indício de frivolidade; mantê-los parados é indício de um espírito preguiçoso - e disso acusou-se Sócrates; olhos perscrutadores denotam irascibilidade; olhos demasiado vivos, ou muito eloquentes, um temperamento lascivo: convém sim que reflitam um espírito calmo e respeitosamente afectuoso. Não foi por acaso, com efeito, que os velhos sábios afirmaram: a alma depõe-se no olhar."


Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 71. 

ANTIGUIDADE

 


" - En la Antigüedad - prosiguió la implacable acusada -, el vicio era sagrado porque el ser humano era fuerte. En nuestro siglo es vergonzoso, porque nace de nuestro agotamiento. Si fuéramos fuertes, y si además tuviéramos quejas contra la virtud, estaría permitido ser vicioso, haciéndose creador, por ejemplo."


Rachilde, Monsieur Venus - Novela materialista, trad. Rodrigo Guijarro Lasheras, Oviedo, KRK Ediciones, 2017, pp. 163-164.