Thursday, April 25, 2024

CRAVOS

 


"Nada é hostil senão a barreira posta à confiança mútua. Nada é provocador senão a destituição do laço de identidade pelo qual as pessoas convivem,  mesmo nas desigualdades que as separam."

 

Agustina Bessa-Luís, Alegria do Mundo - II, Lisboa: Guimarães Editores, 1998, p. 253.

Wednesday, April 24, 2024

QUOTIDIANO

 




"Morre todas as noites uma águia
que só da minha vida se alimenta

Que mistura de cânhamo e de carne
no seu rasto de sangue me desvenda

Morre todas as noites no momento
em que volta a nascer de madrugada

E para lhe fugir ainda é cedo
E para celebrá-la já é tarde"



David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 257.

MONTANHA

 



"Se tens por vezes desses dias
em que as montanhas se confundem
ou com a neve que as oprime
ou com as nuvens que as circundam

também eu tenho destes dias
em que as montanhas me seduzem
desde que a neve as não agrida
nem vogue em torno uma só nuvem

Mas temos ambos outros dias
em que as montanhas são de lume
É quando a neve se expatria
mesmo que as nuvens não sucumbam"


David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 355.

Sunday, April 21, 2024

VISÃO

 


"As ideias sobre as quais a civilização moderna assentou estão gastas. Neste período de rotura, ou antes de transmutação, não nos devemos admirar muito se o papel da ciência e a missão do sábio sofrerem alterações. Quais serão essas alterações? Uma visão oriunda de um passado longínquo pode permitir-nos esclarecer o futuro. Ou, mais precisamente, pode refrescar-nos a vista para a pesquisa de um novo ponto de partida."


Louis Pawels e Jacques Bergier, O Despertar dos Mágicos, trad. Gina de Freitas, Lisboa: Círculo de Leitores, 1975, p. 51. 

Saturday, April 20, 2024

SEGREGAR/SAGRAR

 



"As pessoas segregam futuro
queremos aquilo que as pessoas segregam:
a vigília das montanhas, o vento mais quente do sul,
a manhã húmida e a certeza da expansão,
os raios de sol e o riso como ponte
a parte mais quente da sede antes de haver água.

As abelhas produzem sol
o Sol produz açúcar
as pessoas segregam futuro,

Queremos aquilo que as pessoas segregam."



Nuno Brito, As Abelhas Produzem Sol, Leça da Palmeira: Editora Exclamação, 2015, p. 44.

Friday, April 19, 2024

BARCOS NA SOMBRA

 



"Rangem os barcos na sombra,
como portas mal fechadas,
noite adiante quebradas
no segredo que as deslumbra.

Rangem os barcos, e o vento
com a sua voz incompleta,
a chicoteá-los, inquieta
o corpo todo sangrento

da praia que longe, absorta,
já se não move - mas grita,
na solidão infinita
de uma deusa quase morta."


David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 60.

Thursday, April 18, 2024

ASAS DE LUZ

 


"O Presente é este sincero desgosto de muitos e intermitente embriaguez da felicidade de poucos. O Futuro é um descuido do maior número e uma aflição de poucos espíritos que vieram sãos a um mundo cheio de aleijados. O Passado,  o Passado,  é já agora o único, seguro e abençoado refúgio de quem pode ir por trevas dentro a bater asas de luz e a poisar-se lá sobre ruínas, onde não chega a pedra destes fundibulários que têm seus arsenais nos enxurdeiros das cidades florescentes."


Camilo Castelo Branco, Cavar em Ruínas, 7.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira,1976, p. 6.

Wednesday, April 17, 2024

BALOUÇAR

 


"Queridas e dedicadas flores, como sois tranquilas. Não vos moveis, não tendes olhos nem orelhas e tão-pouco podereis dar um passeio, algo que, porém, é tão agradável. Às vezes parece mesmo que poderíeis falar, mas decerto que tendes sensibilidade e um sentimento próprio. Tantas vezes me deu a impressão de que pudésseis estar a meditar e a ter toda a espécie de pensamentos. Decerto me equivoco, mas penso em vós e de bom grado viveria convosco, com todo o prazer seria como uma de vós, deixando-me acariciar pela luz do sol, balouçando-me, num embalo, ao vento."


Robert Walser, Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos, trad. e seleç. Ricardo Gil Soeiro, Lisboa: Assírio & Alvim, 2023, p. 103. 

Monday, April 15, 2024

ARVOREZINHA

 




"Vejo-a, mesmo quando distraidamente passo por ela. Não foge, fica muito quieta, não consegue pensar, não consegue desejar seja o que for, não, limita-se a crescer, a estar no espaço e a ter folhas que ninguém toca e que se limitam a ser vistas. Diante da sombra que ela projecta passam a correr os apressados.
      Nunca te dei nada? Mas ela não precisa de felicidade. Talvez ela fique contente se alguém a achar bonita. Acham que sim? Quantas inocências sagradas falam através dela. Não se sabe de nada, apenas está ali para o meu bel-prazer. Nunca me vê sorrir à saudação que a própria me lança inadvertidamente.
     Por que razão não pode ela estimar o meu amor, quando lhe digo algo de bom, apesar de ela nada dizer em troca? Morrer aos pés deste ser, como que pintado por Courbet, que se despede para sempre!
     Mas se eu irei sobreviver, o que será de ti?"



Robert Walser, Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos, trad. e seleç. Ricardo Gil Soeiro, Lisboa: Assírio & Alvim, 2023, p. 85.

Sunday, April 14, 2024

PECULIARIDADE

 


"Agora, lanço ao leitor a pergunta, tão educada quanto devota, sobre se ele porventura alguma vez bateu na água com a palma da mão. É uma experiência muito interessante, repleta de estranheza e peculiaridade. Bater palmas na água é para mim um maravilhoso passatempo de Verão, se tal não for pecado. A água é tão agradável, possui uma leve dureza apetitosa, uma firme suavidade, uma elasticidade cheia de carácter. É, por assim dizer, algo que resiste para depois ceder por bondade. Quase que poderíamos dizê-lo assim. A água é em si mesma algo bastante curioso. De que forma chegou a existir? Terá havido um tempo em que não existiu água? Talvez possa sucumbir aqui nas mais intrincadas investigações, se não bater em retirada tão rapidamente quanto possível."


Robert Walser, Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos, trad. e seleç. Ricardo Gil Soeiro, Lisboa: Assírio & Alvim, 2023, pp. 30-31. 

Saturday, April 13, 2024

ILUDAMO-NOS

 




"Desenganos do passado,
Não servireis ao porvir?
Sempre a perder ilusões,
Sempre ilusões a sentir!

Não mais, não mais; nesta vida
Ainda esperar é loucura.
Sofrer: eis o destino!
Sonhar: eis toda a ventura!

Soframos, pois... Não, sonhemos,
Criando mundos ideais,
E com mentidos prazeres,
Curemos penas reais.

Ilusões, sede bem-vindas,
Povoai-me o pensamento:
Convosco, sim, a ventura
Se goza por um momento."


Júlio Dinis, Poesias, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 106.

Friday, April 12, 2024

BULÍCIO

 


"Notável: o tempo passava por cima de todos os bons princípios como por cima de todas as falhas que não se consegue domar. Havia nesta passagem do tempo uma beleza que fazia esquecer e perdoar. O tempo passava pelo mendigo como pelo Presidente da República, pela pecadora e pela mulher casta. Tornava as coisas pequenas e insignificantes, porque só o tempo que passa é grande e sublime. O que eram todo o bulício da vida, toda a agitação quando comparados com o tempo altaneiro, que não quer saber se um homem é um homem ou um basbaque, que é indiferente a quem busca a justiça e a bondade?"


Robert Walser, Os Irmãos Tanner, trad. Isabel Castro Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2009, p. 199. 

Thursday, April 11, 2024

ENTRADA

 




"- Então o que tem Badajoz melhor do que Elvas? acudiu Jaime sorrindo.
- Ora essa, tornou o espanhol, em Badajoz ninguém entra sem que os de dentro queiram. São canhões por todas as bandas. Fortes para aqui, muralhas para acolá. Ah! senhor, ali não entram, ni los pajarillos del cielo... ni Dios!
O bom saltimbanco fora enumerando com tal entusiasmo as maravilhas da sua terra natal, que estava vermelho como um tomate e chegara enfim a soltar a impiedade acima referida.
- Nem Deus! acudiu Jaime olhando para ele, pasmado da espanholada.
O saltimbanco entendeu que fora efectivamente muito adiante e julgou que devia transigir.
Tirou o barrete e acrescentou, com modo maus de condescendência do que de convicção:
- Deus, sim! Deus pode ser que entre... pero con alguna dificultad."


Manuel Pinheiro Chagas, Os Guerrilheiros da Morte, Lisboa: Esfera do Caos Editores, 2006, p. 125.

Wednesday, April 10, 2024

ANIVERSÁRIO

 



"A manhã move a pedra sem raiz
O seu repouso de árvore em flor.
Qualquer astro é menos que o repouso
De uma pedra em flor."


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 23. 

Tuesday, April 9, 2024

ÚLTIMA EXORTAÇÃO AO MEU ANJO (para a memória de Eugénio Lisboa)

 




"Um dia, quando a tarde, arrefecendo,
Cinzenta se fizer, e eu for, também, anoitecendo,
E as aves, já perdendo o gosto de cantar,
Se calem, quando eu próprio me calar,
Meu Anjo! ao meu gelado desespero
Baixa, mais uma vez,
Teus olhos inclementes!
Clemências não nas quero!
Não quero nada que por dó me dês.
Não quero emolientes.
Quero, ao morrer, ouvir-me dizer: «morro.»
Não me dês nada, pois senão que eu morra
Digno do teu socorro,
Sem que ele me socorra!"


José Régio, Colheita da Tarde, Porto: Brasília Editora, 1984, p. 79.

Monday, April 8, 2024

A ESTRADA

 



"Vamos ter com os que estão longe
e vamos encontrá-los nas manhãs com sol.
Já se desmontam as tendas
nas manhãs aquém estrada, movimentos há
na combinação de trajetos.
Dispersão de caminhos,
confluências que trouxeram retornos, pessoas
que se conheceram um dia.
Olha-se em volta e veem-se as planuras
ao sol; um sol que não queima
e que é agradável; vasto talvez a
mais, na planura onde incide.

Já se desmontam as tendas
nas manhãs aquém estradas, movimentos houve
na combinação de trajetos, na combinação
para que todos se encontrem, um dia."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Turquesa, Lisboa: INCM, 2019, p. 428.

Sunday, April 7, 2024

ARGUTO

 



"«Na cidade, falta a devida distância à fé em Deus. A religião tem aqui pouco céu e pouco cheiro a terra. Não sei bem como dizer, e que tenho eu que ver com isso? A religião é, na minha experiência, o amor à vida, um apego íntimo à terra, a alegria do momento, a confiança no belo, a crença nos homens, a ausência de preocupações e o convívio com os amigos, a vontade de meditar e um sentimento de irresponsabilidade em caso de desgraça, é sorrir diante da morte e mostrar coragem em todos os desafios que a vida oferece. Nos últimos tempos, a nossa religião passou a ser um sentimento profundo e humano de decência. Se os homens forem decentes entre si, também o serão aos olhos de Deus. Que mais pode Deus querer? O coração e uma sensibilidade refinada podem em conjunto criar um sentido de decência que agradará mais a Deus do que uma fé fanática e obscurantista. Esta última, aliás, só poderá desconcertar a divindade, que por fim já não quererá ouvir orações tonitruantes nas suas nuvens. Que importância podem ter as orações que tentam impor-se com sobranceria e deselegância, como se Deus fosse duro de ouvido? Não teremos de o imaginar, se é que podemos imaginá-lo, com o ouvido argutíssimo? Será que os sermões e a música de órgão lhe agradam, a ele, o indizível? Pois bem, ele sorrirá diante dos nossos esforços sempre tão cegos e terá a esperança de que um dia nos ocorra dar-lhe um pouco de sossego.»"


Robert Walser, Os Irmãos Tanner, trad. Isabel Castro Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2009, p. 171. 

Saturday, April 6, 2024

FLUTUANTE

 


"Numa manhã de sair à rua, como esta, como são magníficos os olhos das mulheres que fitam a distância. Os olhos que nos ignoram são ainda mais bonitos do que aqueles que nos observam. É como se perdessem com isso. Quando caminhamos com pressa, também pensamos e sentimos com pressa. Mas não olhes para o céu! Não, é melhor sentir que lá em cima, sobre a cabeça e sobre as casas, paira uma coisa bonita e larga, flutuante, alada, arrebatadora. Trazemos connosco qualquer coisa que tem de ser conferida e entregue, para que possamos apresentar-nos como pessoa de confiança, e neste momento é para mim um prazer apresentar-me  como pessoa de confiança. A natureza? Por ora, pode manter-se escondida. Sim, tenho a impressão de que ela se esconde algures por ali, atrás das longas fileiras de casas."


Robert Walser, Os Irmãos Tanner, trad. Isabel Castro Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 2009, p. 128. 

Friday, April 5, 2024

PLANURA

 




"Numa planura em que terminava a colina, estava o cemitério da paróquia, um cemitério de aldeia; não to descrevo. Imagina-lo sem isso, não é verdade?
Continuava-se com o cemitério um prado extenso, todo orlado de álamos gigantes e revestido de relva. Era no meio dele que se elevava a velha igreja paroquial, cujo estado de ruína, devido à sua remota antiguidade, a fizera, de há muito, abandonar de pároco e paroquianos. Em mais completa ruína se achava ainda a casa do abade, que, apesar disso, ali vivera sempre e atrás de cujo féretro se haviam fechado as portas da residência para nunca mais se abrirem."



Diana de Aveleda/Júlio Dinis, Cartas a Cecília e outra correspondência, Ribeirão: Edições Húmus, 2021, p. 15.

LIBERDADE

 




"Quase sempre saía só, levando apenas um livro comigo.
Só, só, repara bem! Só por meio dos campos, só à sombra dos bosques, só pelas margens arrelvadas dos ribeiros! Que vida! Que desafogo! Que liberdade de respirar e, o que é mais ainda, de cismar!"


Diana de Aveleda/Júlio Dinis, Cartas a Cecília e outra correspondência, Ribeirão: Edições Húmus, 2021, p. 8.