Sunday, March 17, 2024

AO LUME APAGADO (para a memória de Nuno Júdice)

 



"Para me ouvir, precisei que a linguagem pusesse em orde
o secreto mundo do sacrifício. Não são as virtudes «abstractas»
da matéria verbal que libertam o poema do seu peso solar;
e a recordação da loucura não deixa de atormentar
o cérebro que pensa, nem quando as rodas do tempo humilham
a luminosa precisão do cântico. Agora, a voz visível
do espírito oval traça os contornos da sacrílega escala.
A evidência do corpo subtrai-se à inesperada
aparição, e as sombras descem sobre a figura surpreendida
na boca. Chamei-me do rebordo vazio do verso, cujos ombros
de argila o meu tronco vergava, e voltei-me na total negação
sobre mim próprio, para dentro da viscosa cavidade."


Nuno Júdice, "As inumeráveis águas", in Obra Poética (1972-1985), Lisboa: Quetzal, 1991, p. 114.

PASSOS

 



"Que lugar acharei no pensamento
Tão áspero, medonho, triste, escuro,
Donde, meu Redentor, estê seguro
De mais vos ofender um só momento?

Não digo pelo meu comportamento,
Que brando me faria outro mais duro;
Mas por não ser ingrato a amor tão puro,
Que morreu por me dar merecimento.

Como vos servirei, pois vos não amo?
Como vos amarei, pois vos ofendo?
E sempre cada vez mais gravemente.

Nestes frios suspiros que derramo
Sem servir, sem amar, Senhor, entendo
Que não há poder ser, viver contente."



Frei Agostinho da Cruz, Poesia Selecta, ed. José Cândido de Oliveira Martins, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, p. 49.

HODIERNO

 


"Existe, em frente às termas de Jakobsbad, um edifício barroco que parece um mosteiro. Trata-se, provavelmente, de um lar de idosos. Eu: «Vamos ver o interior?» Robert: «Tudo isso é mais bonito de fora. Não se deve querer desvendar todos os segredos. Pensei assim a vida toda. Que belo é haver na nossa existência tantas coisas alheias e insólitas, como que escondidas por detrás de um muro coberto de trepadeiras! Isso confere-lhe um encanto indizível, que se perde cada vez mais. Hoje em dia, tudo é cobiçado e possuído com brutalidade."


Carl Serlig, Caminhadas com Robert Walser, trad. Bernardo Ferro, BCF Editores, 2019, p. 45. 

Friday, March 15, 2024

IDOS

 


"Eu era um animal surdo e cego!... Como pude com um tal cinismo, descoroçoador, blasfemar da infinita beleza da Forma, que vai do homem ao animal, do animal à planta, da planta à montanha, da montanha à nuvem e da nuvem à luz, que nos seus reflexos contém todo o esplendor da vida."


Octave Mirbeau, O Jardim dos Suplícios, trad. Terêncio Figueiroa, Lisboa: Arcádia, 1972, p. 71. 

Thursday, March 14, 2024

SEGUIDOR


 

"Sendo assim, é altamente improvável que os Evangelhos ou os primeiros cristãos tenham inventado que Jesus iniciou a sua vida pública como seguidor de João. Estando eles interessados em colocar Jesus acima do Baptista, não teriam inventado a história segundo a qual Jesus tinha sido seguidor deste. Portanto, podemos concluir que Jesus foi de facto baptizado por João. Isto significa, por seu turno, que Jesus concordava com a mensagem de João: era tempo de fazer penitência, face à ira e à redenção iminentes."


E. P. Sanders, A Verdadeira História de Jesus, trad. Teresa Martinho Toldy e Marian Toldy, Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 128. 

Wednesday, March 13, 2024

NOVALIS NADA

 



"Deixemos o misterioso de lado
e contentemo-nos com o mundano,
Ao infinito retiro o in
e rapidamente ficamos diminuídos
à nossa quotidiana e finda monotonia.

Novalis quando estiveres perto
da imensidão da alta montanha chama-me
e rapidamente atirar-me-ei ao abismo
e contigo toda a nostalgia da noite!
Que culpa tenho eu das tuas paranoias depressivas
e do teu amor pelo infinito?
Deixemos ao valor do Nada
a tua impertinente presença.

E a poesia seria muito mais Humana."


Vítor Teves, Amarna - Odes Altermodernas, Lisboa: Poesia Impossível, 2023, p. 26.

Tuesday, March 12, 2024

REI

 


"Numa manhã primaveril, por volta do ano 30 da era cristã, as autoridades romanas executaram três homens na Judeia. Dois eram salteadores - homens que tinham sido ladrões ou bandidos, cujo único interesse era o seu próprio  proveito, mas que também podiam ter sido insurrectos cujo banditismo tinha um objectivo político. O terceiro foi executado como um outro tipo de criminoso político. Não tinha roubado, pilhado, assassinado, nem sequer acumulado armas. Foi condenado, no entanto, com base na acusação de se ter afirmado que era «rei dos judeus» - um título político."


E. P. Sanders, A Verdadeira História de Jesus, trad. Teresa Martinho Toldy e Marian Toldy, Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 15. 

Sunday, March 10, 2024

ANIVERSÁRIO

 



"Com nada te espantes: talvez essa atitude, ó Numício,
seja a única que possa fazer e manter alguém feliz.
Este Sol e as estrelas e as estações do ano que passam
na altura certa: há homens que os observam sem estarem
imbuídos de medo. O que pensas dos dons da terra
ou do mar que torna ricos os longínquos Árabes e Indos?"


Horácio, Epístolas, 1.6, 1-6, in Poesia Completa, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2023, p. 469.

OS TEMPOS

 




"A virtude consiste em fugir do vício; e a sabedoria primeira é
livrar-se da estupidez. Vês - em relação às coisas que pensas
serem os maiores males: a fortuna exígua e a desonrosa derrota eleitoral -
quando as evitas com esforço de espírito e com risco de vida."



Horácio, Epístolas, 1.1, 41-44, in Poesia Completa, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2023, p. 453.

Saturday, March 9, 2024

CHUVISCO

 


"Celebremos mais uma vez o sacramento, a três: tu estás ajoelhado, eu de pé por detrás de ti, com a pele seca. O suor alarga os poros. O Sr. Padre coloca a hóstia sobre a tua língua carregada. No momento anterior, todos três podíamos ser englobados no mesmo número, mas eis que, movida por um mecanismo, a tua língua desaparece na boca. Os teus lábios unem-se. A tua deglutição propaga-se, e enquanto o objecto de ferro vibra num eco, eu sei que Mahlke, o Grande, sairá fortificado da capela de Santa Maria; e isso fará secar o suor; se um instante mais tarde o rosto lhe luzia, húmido, era apenas por causa da chuva. Fora, diante da capela, chuviscava."


Günter Grass, O Gato e o Rato, trad. Carmen Gonzalez, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 136. 

Thursday, March 7, 2024

MORTAL

 



"E se trevas eu padeço
em minha vida mortal,
não é tão grande o meu mal.
porque, se de luz careço,
tenho a vida celestial;
porque o amor dá tal vida
quando mais cego vai sendo,
que tem a alma rendida,
sem luz e às escuras vivendo."


S. João da Cruz, "Glosa", in Poesias Completas, trad. José Bento, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 63.

Tuesday, March 5, 2024

ARTEFACTO

 


"O universo considerado como um raio. Tu és um artefacto do espaço. Nós somos um artefacto do tempo."


Velimir Khlébnikov, Histórias, Equações, Relâmpagos, trad. Sara Veiga, Porto: Editora Exclamação, 2022, p. 64. 

Monday, March 4, 2024

RESPLENDORES

 



"   Oh lâmpadas de fogo,
     em cujos resplendores
as profundas cavernas do sentido,
     escuro e cego, logo
     com estranhos primores
calor e luz dão junto ao seu querido!"



S. João da Cruz, "Chama de amor viva", in Poesias Completas, trad. José Bento, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 45.

Sunday, March 3, 2024

RECORDAR

 



"Com esta verdade me calo, feliz por ter visto o lobo desnudo passar, segundos depois da mulher desnuda, que me causou igualmente alegria. Desse conluio nasceu a geração sem-nome. Uma temível geração. Não só capaz de metabolismo, mas igualmente de metamorfose. O que não podia deixar de ser assinalado."


Maria Gabriela Llansol, Parasceve, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 56.

REGRESSOS

 




"O céu é azul é azul.
E com isto está tudo dito
sobre o céu azul.

Pelo contrário estes enigmas voadores. -
embora com solução sempre diferente,
todos o sabem decifrar.

Inatingíveis lá nas alturas,
nebulosos. E como é suave
a sua morte! Tão indolor

aqui é raro. As nuvens
não têm medo, como se soubessem
que voltam sempre ao mundo."


Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 173; 175.

Saturday, March 2, 2024

NOBRE CAUSA

 


"Santa fora a nobre causa da emancipação do povo, se a cruz se hasteasse sobre o pendão da liberdade. Quando irmãos nos repelem, quando ante nós caminha o espanto e as públicas imprecações sussurravam em nossos ouvidos, fora-nos ao menos consolação o esperar em Deus. Sem aliados no mundo, teríamos a Providência no céu, e os séculos de liberdade e religião pura, que hão-de vir após esta era de monstruosa servidão e licença, de incredulidade e de superstições, abençoariam duplicadamente a nossa memória."

 

Alexandre Herculano, Cenas de um Ano da Minha Vida / Apontamentos de Viagem, Lisboa: Livraria Bertrand, 1973, p. 49. 

Friday, March 1, 2024

OS CIMOS

 


"Não assim os países das montanhas: aí tudo é vivo, tudo fala, tudo ri ou ameaça. Aí os cimos das serras se prolongam ora nus e brancos, como uma ossada esquecida em campo de batalha, ora negros como as bordas de um vulcão, ora cobertos de pinhais cerrados, que faz gemer o bafo do vento, e que na sua cor triste semelham a uma viúva assentada sobre pedra de sepulcro: lá de qualquer modo que serranias se coroem, contrastam na sua gravidade selvagem com a macia verdura dos vales, cultivados pela mão do homem: lá a luz do dia, quebrada pelos rochedos, varia de estação em estação, diremos de hora em hora, o aspecto da paisagem; e a existência sente-se passar a cada instante, e não se escoa como um rio adormecido."


Alexandre Herculano, Cenas de um Ano da Minha Vida / Apontamentos de Viagem, Lisboa: Livraria Bertrand, 1973, p. 114. 

Thursday, February 29, 2024

REAL

 


"Da mesma forma, a magia contida numa palavra continua a ser magia, mesmo que não seja compreendida. A palavra nunca perde o seu poder. Os poemas podem ou não ser compreensíveis, mas têm de ser admiráveis, têm de ser reais."


Velimir Khlébnikov, Histórias, Equações, Relâmpagos, trad. Sara Veiga, Porto: Editora Exclamação, 2022, p. 67. 

Tuesday, February 27, 2024

ANIVERSÁRIO

 



"Deixa-me olhar-te pássaro real
A saltitar nesta tarde esquecida
Como uma clara afirmação de vida
Mesmo porque esse teu corpo vale.

Que alguma coisa morre em cada qual
Leio-o nessa cabeça ao alto erguida
Mas tens a alegria extrovertida
De não sentir em ti o nosso mal.

Somos contemporâneos meu amigo
Por isso posso conviver contigo
Compartilhar o orgulho de estar vivo.

Eu penso e tu não pensas é que é certo:
Tu a saltar e eu aqui tão perto
A pensar que da morte não me privo."




Ruy Belo, “Homem de Palavra[s]”, in Todos os Poemas, 4.ª ed. , Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 311. 

Monday, February 26, 2024

DIAS PRIMITIVOS

 

"Não, não procures mais o reflexo dos dias primitivos e não toldados por nuvem escura! Flor murcha pelo tufão assolador que desbastou uma família, vergôntea débil do tronco eivado de serpes, cujos frutos são extintos ou malditos, não olhes mais o passsado aí; curva a fronte empalidecida pelo gemer da orfandade, pobre noviça na atmosfera viciosa em que te puseram as violências do destino!"

 

Ana Plácido, Luz coada por ferros, Porto: Book Cover Editora, 2023, p. 78.