"Esperei tanto o corpo daquele
que o meu coração ama
que ele acabou naturalmente por
se misturar ao meu cheiro com
o cheiro das romãs e das uvas
ao primeiro arrepio do outono
e ser aquele fugaz clarão que
me traz novo sangue e nova pele para
correr o mundo à sua procura
nas madrugadas em que os inimigos
varrem as casas e incendeiam as cidades
e só por isso sei que uma noite
hei-de tombar às portas de damasco
e ouvir em todos os rumores de ocultas águas
a voz que me há-de devolver purificada
ao corpo daquele que o meu coração ama"
Alice Vieira, O Que Dói às Aves, 2.ª ed., Alfragide: Caminho, 2014, p. 65.