Wednesday, August 31, 2011

A FRAQUEZA DOS SENTIDOS


"18. O sol empresta o seu brilho à lua.
19. O arco-íris é o reflexo da luz solar nas nuvens, constituindo um prenúncio da tempestade, pois a água, proveniente das nuvens, faz levantar o vento e cair a chuva.
21. A fraqueza dos sentidos torna-nos impotentes para vermos a verdade.
21-a. O visível abre os nossos olhos para o invisível.
21-b. Somos inferiores em energia e em velocidade aos outros animais, porque utilizamos apenas a experiência, a memória e a prática.
22. O que vulgo chama leite de pássaro é a clara do ovo."
Anaxágoras de Clazómenas, "Fragmentos", in Filosofia Grega Pré-Socrática, ed. Pinharanda Gomes, 4ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1994, pp. 112-113.

O APEIRON


"Afirmou que a origem dos seres é o infinito, no qual tudo se gera e tudo se dissipa, de onde já ter havido um número inestimável de mundos gerados e corruptos pelo retorno à origem. Anaximandro expôs as causas segundo as quais o princípio é o infinito, dizendo que a razão originante não conhece nenhuma carência: mas não esclareceu se esse infinito é o ar, a água, a terra, ou outro elemento."
Aécio, Física, in Filosofia Grega Pré-Socrática, ed. Pinharanda Gomes, 4ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1994, p. 104.

Tuesday, August 30, 2011

PELOS CONFINS DO ESPAÇO


"
1.
Dirijo-me somente aos que podem entender,
que as portas do templo se fechem aos profanos!
Escuta, Museu, filho do portador da luz.
Vou revelar-te toda a verdade.
Possam os sentimentos outrora teus
não te afastar da preciosa vida.
Contempla o verbo divino, acerca-te dele,
oferece o coração e a inteligência da alma
e, depois, avança para ele, por esse estreito caminho,
pensando que ele é o único rei do Universo.
Ele é uno, a si mesmo se gera, e tudo nele se gerou,
move-se pelo Universo, invisível para os mortais,
embora ele veja tudo de todas as coisas criadas.
Dele derivam, com a felicidade, as guerras sangrentas
e as dores aflitivas.
Não há outro como este rei, que não vejo,
pois uma nuvem o dissimula
Nos olhos dos mortais as pupilas morreram
impotentes para verem o todo-poderoso, rei do Universo.
A sua sede encontra-se no bronze celígeno,
o trono aurífero, e tem os pés sobre a terra,
enquanto estende a mão direita para os confins do Oceano,
até aos confins do espaço, enquanto à sua volta fremem
as montanhas, os rios, e, no azul do oceano,
as glaucas ondas, coroadas de espuma."

Hinos Órficos, in Filosofia Grega Pré-Socrática, ed. Pinharanda Gomes, 4ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1994, pp. 90-91.

Monday, August 29, 2011

PESSOAS DE LATA


" - Ele odiava-os?
- Não, não se importava. Limitava-se a não gostar deles, o que é diferente. Ele dizia que os Tommies eram uns toleirões amaricados. É o destino da humanidade.
- E o povo também, a classe operária?
- Todos. Perderam a vitalidade. O automóvel, o cinema e os aviões sugaram-lhes a vida. E digo-te, cada geração produz outra mais tímida, com tubos de borracha nas entranhas e pernas e caras de lata! Pessoas de lata! É tudo uma espécie de bolchevismo permanente que mata a raça humana e idolatra a máquina. Dinheiro, dinheiro, dinheiro! Os homens de hoje triunfam, matando dentro de si o sentimento humano, transformam o Adão e a Eva em carne picada. São todos iguais. O mundo é todo igual. A realidade humana vai sendo eliminada, um prepúcio, um sexo estão à venda. O próprio amor é uma fornicação mecânica. É tudo igual. Dêem-lhes dinheiro, e eles cortam o pénis ao mundo. Dinheiro, dinheiro, dinheiro, para extrair da humanidade tudo o que é humano e convertê-la em máquinas de trepidação."
D. H. Lawrence, O Amante de Lady Chatterley, trad. Maria Teresa Pinto Pereira, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., pp. 211-212.

Sunday, August 28, 2011

APERTURA


"Pois a natureza humana é feita de tal forma que os sofrimentos e as dores que acontecem ao mesmo tempo não se somam inteiramente na nossa sensibilidade, mas escondem-se, os menores atrás dos maiores, segundo uma lei prospectiva definida. Isto é providencial e permite-nos viver no campo. E é esta também a razão pela qual tantas vezes, na vida livre, se ouve dizer que o homem é insaciável: pelo contrário, mais que de uma incapacidade humana para um estado de bem-estar absoluto, trata-se de um conhecimento sempre insuficiente da natureza complexa do estado de infelicidade, pelo que às suas causas, que são múltiplas e hierarquicamente dispostas, se dá um único nome: o da causa maior; até que esta venha eventualmente a faltar, e então fica-se dolorosamente surpreendido ao ver que atrás dela existe outra; e, na realidade, uma série de outras. Por isso, logo que o frio, que durante todo o Inverno nos parecera o único inimigo, cessou, apercebemo-nos de que tínhamos fome: e, repetindo o  mesmo erro, assim hoje dizemos: «Se não fosse a fome!...»"
Primo Levi, Se Isto é um Homem, trad. Simonetta Cabrita Neto, 8ª ed. Lisboa: Teorema, pp. 75-76.

Saturday, August 27, 2011

A SOMBRA INFINITA


"Le monde est sombre, ô Dieu! l'immuable harmonie
Se compose des pleurs aussi bien que des chants;
L'homme n'est qu'un atome en cette ombre infinie,
Nuit où montent les bons, où tombent les méchants."

Victor Hugo, "Les Contemplations", in Oeuvres Poètiques - Anthologie, établ. Claude Millet, Paris: Le Livre de Poche, 2009, p. 224.

Friday, August 26, 2011

ENTREABRIR


"Quando o homem tocou o fundo da infelicidade de viver, volta à ilusão divina; e está aí a origem de todas as religiões, porque o homem fraco e nu não tem a força para viver a sua miséria terrena sem a eterna mentira de um paraíso. Hoje a experiência estava feita, só a ciência parecia não bastar, e ia ser forçoso deixar uma porta aberta para o mistério."
Émile Zola, Lourdes, trad. António Pescada, Lisboa: Editorial Caminho, 2002, p. 456.

Thursday, August 25, 2011

CHEGADA


"HERMOTIMO - Sim, como poderia lá chegar de outra forma?

LICINO - Pois sim, mas no que toca a promessas e garantias de conhecerem o caminho, há uma grande abundância de candidatos a oferecerem-se para guias. Realmente, apresentam-se em grande número, os pressurosos, cada um deles afirmando-se natural dessa cidade. O caminho que se oferece é que não é um só e o mesmo, mas sim muitos e diversos, nada iguais uns aos outros: este parece apontar para o ocidente, aquele para oriente, outro para o norte, aqueloutro no sentido sul; um, que atravessa prados, bosques e regiões umbrosas, é abundante de águas, suave e sem qualquer obstáculo ou mau piso; outro é fragoso e rude, promete muito calor, muita sede e fadiga. E, no entanto, todos eles, não obstante irem dar aos pontos mais díspares, são supostos conduzirem à tal cidade, que é uma única."
Luciano, Hermotimo ou As Escolas Filosóficas, trad. Custódio Magueijo, Lisboa: Editorial Inquérito, 1986, p. 53.

Wednesday, August 24, 2011

DAS JUSTIFICAÇÕES


"- Oxalá casasses - insistiu. - Por que não o fazes?
Relaxando os músculos, Zooey tirou um lenço de linho dobrado do bolso de trás das calças, abriu-o e assoou-se uma, duas, três vezes. Guardou o lenço e disse:
- Gosto demasiado de andar de comboio. Depois de nos casarmos nunca mais podemos sentar-nos à janela."


J. D. Salinger, Franny e Zooey, trad. Salvato Telles de Menezes, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 97.

Monday, August 22, 2011

O TEMOR



"Os homens temem a morte como as crianças temem caminhar na escuridão, e como este natural receio das crianças é acrescido com fábulas, assim também o outro. Certamente, a contemplação da morte, como soldo do pecado e passagem para outro mundo, é atitude piedosa e religiosa, mas temer a morte como um tributo devido à natureza, isso é fraqueza. (...)
É tão natural morrer como nascer, e para o infante talvez que uma coisa seja tão penosa como a outra. Aquele que morre na séria perseguição de um fim é como aquele que fica ferido até ao sangue, o qual, por escasso tempo, sente a ferida, e, é por isso que, um espírito fixado e tendido sobre algo que é bom, não se adverte das dores da morte. Mas, sobretudo, acreditai, o mais doce cântico é Nunc dimittis [Agora descansa], quando o homem realizou as suas esperanças e atingiu valiosos fins. A morte tem também a vantagem de que abre a porta à boa fama e extingue a inveja.
Extinctus amabitur idem [Ainda morto será amado]"


Francis Bacon, Ensaios [Ensaios da última edição, 1625], trad. Álvaro Ribeiro, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1992, pp. 35; 37.

Sunday, August 21, 2011

NOJO, TRISTEZA


"Antre nojo e tristeza eu faço tal deferença, por que a tristeza, per qual quer parte que venha, assim embarga sempre continuadamente o coraçom, que nom dá spaço de poder em al bem pensar nem folgar. E o nojo he a tempos, assi como se vee na morte d'alguus parentes e amigos, onde, aquel tempo que per justa falla ou lembrança se sente, o sentimento he muito rijo. Porem taaes hi ha que, passando o dia, logo riim, fallam, e despachadamente no que lhes praz pensom.
E a tristeza nom consente fazer assi, por que he hua door e continuado gastamento com apertamento de coraçom. E o nojo nom continuadamente se sente, salvo se tanto se acrecenta, que derriba em tristeza."
Dom Duarte, Leal Conselheiro, capt. XXV, selecç. e notas F. Costa Marques, 2ª ed., Coimbra: Atlântida, 1973, p. 55.

Friday, August 19, 2011

RETRATOS DO DESCONHECIDO


"Il y a dans la pierre un signe énigmatique
Gravé dans le profond de son sang flamboyant;
Aussi bien avec elle entre en comparaison
Le coeur où reste le portrait de l'Inconnue.
Mille feux jaillissants auréolent la pierre,
Des ondes de lumière autour du coeur s'agitent;
Au fond d'elle est logé l'éclat de sa splendeur,
Mais lui, ce coeur au coeur va-t-il l'avoir aussi?"

Novalis, "Poèmes extraits d'Henry d'Ofterdingen", trad. Armel Guerne, Paris: Gallimard, 2006, p. 87.

Tuesday, August 16, 2011

O VENTO SOPRA ONDE QUER (em memória da Avó)


"Veio ele ter com Jesus, de noite, e disse-lhe: «Rabi, sabemos que vieste como mestre da parte de Deus, pois ninguém, se Deus não estiver com ele, pode fazer os prodígios que tu fazes!» Respondeu-lhe Jesus: «Em verdade, em verdade te digo: ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.» Disse-lhe Nicodemos: «Como pode um homem nascer, sendo velho? Poderá, acaso, entrar novamente no seio de sua mãe e renascer?». Jesus replicou-lhe: «Em verdade, em verdade te digo: ninguém pode entrar no reino de Deus se não nascer da água e do Espírito. Aquilo que nasce da carne é carne, e aquilo que nasce do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: - É necessário nascerdes de novo. - O vento sopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não sabes donde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito.»"
Jo 3, 2-8.

Monday, August 15, 2011

A ÉPOCA TRÁGICA


"A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a aceitá-la tragicamente. O cataclismo deu-se, estamos entre ruínas, desatamos a construir novos pequenos habitats, a alimentar novas esperançazinhas. É uma tarefa difícil, já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro: rodeamos os obstáculos ou passamos por cima deles. Seja qual for o número de céus que desabem, temos de viver."
D. H. Lawrence, O Amante de Lady Chatterley, trad. Maria Teresa Pinto Pereira, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 11.

Sunday, August 14, 2011

DIA DA AVÓ


"Esta noite
um anjo-malmequer
com uma lágrima apenas na bagagem
e uma amiga com muita pena
com penas feitas de neve
deixaram intensamente perturbada
a lua
desde sempre pendurada no meu quarto.

Nas paredes pálidas
O Arrepio    o Suspiro    o Gemido
esqueciam-se de nós
olhando deslumbrados
aquela lágrima suspensa.

Mas na madrugada adejam as asas
doridas do amplexo sem nexo
e do ponto mais escuro da sombra
surge a pedra igualmente suspensa
que em mim pensa.

Em fila as estátuas
dirigem-se
para o cais."

Artur do Cruzeiro Seixas, Obra Poética, vol. I, Vila Nova de Famalicão:Quasi Edições, 2002, p. 152.

Friday, August 12, 2011

OS TRÊS DESEJOS

(musée des Beaux-Arts, Rennes)

"IMPERIA - Más vale asno que os lleve, que no caballo que os derrueque; de Rampín hacéis vos lo que queréis, y sirve de todo, y dejá razones, y vamos a la estufa.

LOZANA - Vamos, señora, mas siempre es bueno saber. Que yo tres o cuatro cosas no sé que deseo conocer: la una, qué vía hacen, o qué color tienen los cuernos de los hombres; y la otra, querría leer lo que entiendo; y la otra, querría que en mi tiempo se perdiese el temor y la vergüenza, para que cada uno pida y haga lo que quisiere."
Francisco Delicado, Retrato de La Lozana Andaluza, 5ª ed., ed. Claude Allaigre, Madrid: Cátedra, 2007, p. 465.

Thursday, August 11, 2011

ANDANÇAS E VIDÊNCIAS


"LOZANA - (...) Más sabe quien muncho anda que quien muncho vive, porque quien muncho vive cada día oye cosas nuevas, y quien muncho anda, ve lo que ha de oír."


Francisco Delicado, Retrato de La Lozana Andaluza, 5ª ed., ed. Claude Allaigre, Madrid: Cátedra, 2007, p. 409.

Monday, August 8, 2011

GENTE QUE SE RECUSA A SER GENTE


"HELENA - Há gente que não é gente. Há gente que se recusa a ser gente... Gente que não enfrenta a vida... que não quer a vida... que se desliga do caminho da magnificência, gente que recusa o papel que lhe foi atribuído pelo acaso, único verdadeiro Deus, único verdadeiro pai, único verdadeiro único. Eu não quero pregar, quero apenas unir os esforços de todos e chamar estas criaturas à razão. Urge convertê-los, arrombar-lhes as portas imaginárias, irromper por janelas e paredes com todos os meios possíveis... para os trazer à verdade... para que possam gastar os seus últimos dias pedindo perdão no escuro das suas mentes e na eterna..."



João Negreiros, Os de Sempre, Braga: Edições TUM, 2008, p. 7.

Thursday, August 4, 2011

O VERÃO DESARRUMA OS SENTIMENTOS


"Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias

rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistia à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías

atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:

o verão desarruma os sentimentos."
Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes, 3ª edição, Lisboa: Gótica, 2007, p. 17.

Wednesday, August 3, 2011

LES CONJONCTURES SINGULIÈRES DU HASARD


"Les hommes vont de multiples chemins. Celui qui les suit et qui les compare verra naître des figures qui semblent appartenir à cette grande écriture chiffrée qu'on entrevoit partout: sur les ailes, la coquille des oeufs, dans les nuages, dans la neige, dans les cristaux et dans la conformation des roches, sur les eaux qui se prennent en glace, au-dedans et au-dehors des montagnes, du ciel, sur les disques de verre et les gâteaux de résine qu'on a touchés et frottés, dans les limailles autour de l'aimant et dans les conjonctures singulières du hasard."
Novalis, Les Disciples à Saïs, trad. Armel Guerne, Paris: Gallimard, 2006, p. 37.