Friday, May 31, 2013

QUIXOTE VERSUS SANCHO


"Andaram algumas milhas, sem falar: o Jones suspirava, o Benjamin gemia, cada qual por uma razão diferente. Por fim o primeiro estacou e disse, olhando em torno:
- Quem sabe, Partridge, se a criatura mais adorável do universo tem agora os olhos postos na Lua, para onde eu olho neste instante?
- É provável, senhor Jones - respondeu o companheiro. - E se os meus olhos estivessem fixos num bom lombo de vaca, podia o diabo levar a Lua e mais os cornos dela! Mas oxalá que esse astro fosse um espelho para si, senhor Jones, e que a menina Sophia se lhe colocasse adiante, nesta ocasião."


Henry Fielding, Tom Jones, texto condensado por Somerset Maugham, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália Editora, 1966, p. 165.

Tuesday, May 28, 2013

17 ANOS



"- Confesso que continuo a achar tão imbecil e tão infernal ir para o escritório na segunda-feira como sempre achei e hei-de achar - declarou John.
- Passar uma pessoa os melhores anos da sua vida sentado num banco, desde as nove até às cinco, a garatujar coisas em livros de registos! É uma forma bem idiota de passar a única vida que temos, não achas? Ou estarei a sonhar? Deu uma volta na relva e ergueu os olhos para Linda. - Ora, diz-me lá: qual é a diferença entre a minha vida e a de um vulgar prisioneiro? A única diferença que lhe encontro é que eu fui voluntariamente meter-me na prisão. E também é certo que nunca me porão em liberdade. É uma situação bem mais intolerável do que a outra. Porque se me tivessem lá metido à força - aos pontapés que fosse - uma vez fechada a porta, ou pelo menos, daí a coisa de cinco anos, eu poderia ter-me resignado com a minha situação e começado a interessar-me pelo voo das moscas ou pela contagem e variação dos passos do guarda e outras coisas do género. Mas, assim, pareço-me com um insecto que, de livre vontade, se atira para dentro de um quarto. Vou de encontro às paredes e às janelas, bato com as asas no tecto, faço tudo neste mundo, excepto voar dali para fora. E, entretanto, não deixo de pensar como essa mariposa, essa borboleta, ou lá o que é: Ai, a brevidade da existência!Só disponho de um dia e lá fora espera-me o vasto e perigoso jardim, onde tudo se encontra por descobrir e explorar."


Katherine Mansfield, "Na Enseada", in O "Garden-Party", trad. Virgínia Motta, 2ª ed., Lisboa: Portugália Editora, s.d., pp. 57-58.

Monday, May 27, 2013

RECORDAR AQUILINO, GRANDE


"Dizia Martins Sarmento que estamos mais perto das orcas, castros e citânias do que se imagina. Pelo menos, não fica longe o bicho que habitava essas construções. A nossa sumptuária, os nossos quadros, o nosso aparelho de rádio, os nossos automóveis, a nossa própria poesia e ciência são uma espuma irisada e fátua ao lado do fundamental da nossa natureza e da essência das coisas. O fundamental é o instinto, a garra da vida que nos subjuga e nos obriga aos mesmos actos de confiança ou carantonhas de ódio, como então e como hoje. O coração do homem, se espraiarmos olhos ao que se passa pelos povos, não se destemperou em sua fereza e agressividade. No dia em que deixar de ser assim, tornando-se os homens anjos, iguais em direitos e deveres, verdadeiramente fraternos, fartinhos e contentes, e que por cima deles não caiam bombas dos Liberattor, nesse dia acabou-se o mundo."


Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental, Lisboa: Bertrand, 2008, p. 226.

Sunday, May 26, 2013

EXPIAR


"É quase oblíquo o olhar que lançamos sobre a poesia -
ou a forma como os raios de sol atravessam e se poisam
sobre a cobertura puída e fina do marroquino. No entanto,
os anjos não a compreendem e indiferentes à sua estranheza
apenas os homens nela reconhecem um acolhimento
ainda sem lágrimas, feito de ausências e de amargura.
Discreta maneira de se retirar do mundo,
mantém-na uma seriedade feita de falta,
assim como a mesa de que caíram
os alimentos se apresenta agora
aos nossos olhos inocente e muda.
Mas qual é a moral das palavras?,
como se restabelece o ser na sua falta
de espessura? Não se espere contudo
que da sua prática nos venha consolo-
ou que delas se desprenda um bálsamo
reparador capaz de dissipar as sombras
em que, em nós, mergulha misteriosa
a literatura. A sua massa é anónima.
Sabem-no os deuses que expiam,
pela palavra, a ilusão de um dia se
ter pensando na sua desmesura."


Fernando Guerreiro, Outono, Lisboa: Black Son, 1998, p. 25.

Saturday, May 25, 2013

DEBAIXO DESTE CÉU



"E saberás, portanto, qual é o teu
Destino sobre o mundo; e saberás
Que tudo o que há, debaixo deste céu,
Tem um sentido natural e claro.

O que é a Natureza? É qualquer cousa
Que, não sendo matéria nem espírito,
Na sua evolução misteriosa,
Toma formas de espírito e matéria..."


Teixeira de Pascoaes, Marânus, Lisboa: Assírio & Alvim, 1990, pp. 47-48.

Friday, May 24, 2013

VIDE



"Falando com conhecimento de causa, pode dizer-se que o homem é um animal bem miserável. Apenas se fala na condição de apreciar um prazer cabal e puro, e já se esforça por o diminuir, por reflexão. Certamente, não se crê suficientemente infeliz quando aumenta as suas penas por inclinação e por arte."


Michel de Montaigne, Ensaios (Selecção), trad. R. Correia, Lisboa: Amigos do Livro, s.d., p. 173.

Thursday, May 23, 2013

DEI EXEUNT


"A inutilidade das coisas só confirmava
no espírito as dúvidas quanto aos efeitos
de fascínio da literatura. Com o fim
do outono, a urze cresce pelo sentimento
e as palavras definham ainda antes
de adquirir a espessura que as podia
impor, como um sonho, no absoluto.
Na paisagem, campos de papoulas
envolvem poços a que animais
vêm beber para com o seu odor
empestar de nojo as dobras dos livros.
Era contudo desse bálsamo de morte
que nos alimentávamos. Esperando
que se extinguissem os vestígios
do sucedido. Porque se os deuses
partiram foi para que outra ficção
se substituísse à dor a que, pela
palavra, em nós se reduzira o mundo.
Na incerteza, só conseguíamos escrever
violentamente, estranhando que o tacto
na memória só por si fosse capaz
de restabelecer a promessa dos frutos."


Fernando Guerreiro, O Caminho da Montanha, Braga: Angelus Novus, 2000, pp. 142-143.

Wednesday, May 22, 2013

TARDE


"Ouviu-se o galo. Era já a segunda vez que cantava, mas da primeira não tinha sido ouvido pelos gnomos. Os espíritos, assustados, atiravam-se contra as janelas e as portas em grande confusão, tentando fugir rapidamente, mas era tarde de mais: ficaram ali, cravados nas portas e nas janelas. O padre, quando entrou, ficou petrificado à vista daquela incrível profanação do lugar santo e não ousou dizer a missa de corpo presente em semelhante lugar. Assim, a igreja ficou para sempre com os monstros presos às portas e às janelas, cobriu-se de mato - raizes, ervas, abrunheiros-bravos. Já ninguém conseguirá encontrar o caminho até ela."


Nikolai Gógol, O Bruxo Víi, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2009, pp. 75-76.

Monday, May 20, 2013

TRANSPARÊNCIA


" - Gostaria de saber o que vos ensinam no seminário: o mesmo que o salmista lê na igreja, ou qualquer outra coisa?
- Não falas perguntas! - dizia o arrazoador numa voz arrastada. - Que seja como é. Deus é que sabe como deve ser; Deus sabe tudo.
- Não, quero saber - insistia Dóroch - o que está escrito naqueles livros. Se calhar são coisas muito diferentes das do salmista.
- Oh, meu Deus, meu Deus! - dizia o respeitável arrazoador. - Para que é preciso dizer essas coisas? É tudo por vontade de Deus. O que Deus manda não se pode mudar."


Nikolai Gógol, O Bruxo Víi, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2009, pp. 32-33.

Sunday, May 19, 2013

DISTINGUIR


"O obtuso carece de engenho, o imbecil de entendimento. A agilidade para conceber alguma coisa e ser capaz de se lembrar disso, bem como a facilidade  para o expressar apropriadamente depende muito do engenho. Daí que aquele que não é imbecil, pode, apesar de tudo, ser muito obtuso, porque dificilmente alguma coisa lhe entra na cabeça, ainda que o venha a entender mais tarde devido a um progresso na maturação do juízo, enquanto a dificuldade de expressar-se nada prova a respeito da capacidade de entender, apenas mostra que o espírito não contribui o suficiente para vestir o pensamento com as diferentes expressões que lhe assentam com mais acerto."
 Immanuel Kant, Ensaio sobre as doenças mentais (1764), trad. Pedro Panarra, Lisboa: Edições 70, 2012, pp. 94-95.

Saturday, May 18, 2013

ITHOPIOS


"O actor preocupava-se também em alargar os ombros até mais vinte centímetros de cada lado. Por vezes, os ombros eram ainda mais elevados com um chumaço muito espesso, a ponto de atingirem a altura das orelhas; assim, o pescoço situava-se exactamente onde terminava a cabeça. Estou a falar do máximo de exagero. Recorria-se a estes artifícios quando se queria fazer entrar em cena uma divindade, um herói, como Hércules, por exemplo. Neste caso, a cabeça começava na fronte do actor, ou seja, a máscara era colocada sobre a sua cabeça como um grande chapéu, a boca do actor ficava à altura do pescoço da máscara e este falava através de orifícios disfarçados. Havia ainda um outro truque: elevando o corpo, os braços, que saíam da clâmide ou da toga, pareciam curtos, deselegantes, e era necessário dotá-los de um comprimento credível. Para isso, o actor agarrava nos pulsos de mãos falsas articuladas, semelhantes às dos manequins e das marionetas: bastava mover, dentro da manga, o pulso e a impressão colhida era de discreta semelhança com o real. Com estes recursos, o actor conseguia atingir até dois metros, dois metros e meio. É bom recordar que a estatura média de uma mulher e de um homem gregos, naquele tempo, era inferior a um metro e meio. Tudo indica que, apesar de tudo, os actores conseguiam mover-se com uma certa agilidade. Aliás, já vi intérpretes do Odin Teatret sobre andas de dois metros, também eles com braços falsos e máscaras no rosto, a rodopiarem e a executarem saltos e até cambalhotas."
 
Dario Fo, "Os Gregos não eram antigos", in O amor e o escárnio, trad. Maria de Fátima St. Aubyn, Lisboa: Gradiva, 2008, p. 134.

Friday, May 17, 2013

ELEITOS


"É preciso chegar à felicidade
de um túmulo de areia
agradecer aos semelhantes
este nada que sobra
por entre os dedos
em castelos crucificados.

E perdoar aos eleitos
a perseguição nocturna."
Emerenciano, Chão prisão do Mundo, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 56.

Thursday, May 16, 2013

REPENSAR O ABISMO


"Tu que não crês, nem amas, nem esperas,
Espirito de eterna negação,
Teu hálito gelou-me o coração
E destroçou-me da alma as primaveras...

Atravessando regiões austeras,
Cheias de noite e cava escuridão,
Como num sonho mau, só oiço um não,
Que eternamente ecoa entre as esferas...

- Porque suspiras, porque te lamentas,
Cobarde coração? Debalde intentas
Opor à Sorte a queixa do egoísmo...

Deixa aos tímidos, deixa aos sonhadores
A esperança vã, seus vãos fulgores...
Sabe tu encarar sereno o abismo!"
  Antero de Quental, Sonetos Completos, Porto: Lello & Irmão, 1983, p. 145.

Wednesday, May 15, 2013

GERAÇÃO


"A geração actual compreende já tudo isto, admira-se, ri-se da estupidez dos seus antepassados; não vê, porém, que a história está escrita com o fogo do céu, que são claras cada uma das suas letras, que, em qualquer lugar, um dedo misterioso a aponta, precisamente a ela, à geração actual. Ela compraz-se na sua troça, e comete orgulhosamente novos erros, dos quais, por sua vez, notará a posteridade."
Nicolau Gogol, As Almas Mortas (Aventuras de Chichikov), trad. Isolino Caramalho, Lisboa: Editorial «Gleba», 1945, p. 224.

Tuesday, May 14, 2013

VOZ

"E é este mundo, em que Zeus abdicou a favor dos filisteus, que será impossível salvar, a não ser que se erga uma voz que cante justamente a ameaça de um mundo irresgatavelmente vendável e vendido."
 
M.S. Lourenço, "A Abelha do Invisível", in Os Degraus do Parnaso, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 63.

Monday, May 13, 2013

RECOMEÇAR


"Se pudesse, recomeçava por um mundo sem palavras
onde se ouvisse o mar de encontro ao sentimento -
drenando uma superfície de que não conseguia
aperceber o fundo. Talvez assim a poesia
redescobrisse alguma da sua energia primitiva -
arrastando consigo uma sementeira de dentes
de lobo e de vidros partidos - cansada
que está de metáforas de cujos cristais
apenas se avista o túmulo. No entanto,
se eu disser que o nosso destino
é o de Auschwitz, não me entenderiam,
já que me refiro à magreza dos corpos,
à sua indelével brancura. < Um pouco mais
de luz >, e talvez mesmo para nós deixassem
de ser tão preocupantes os nós trabalhados
da sepultura. Poeta, é aquele que não sai
do seu sítio - dá a volta às palavras
e, com a sua falta, reconduz um mundo.
Porque, quando os deuses partem,
os pássaros protegem-nos do mistério -
com as suas asas, de que só o vento
conhece o hipodérmico curso."

Fernando Guerreiro, Teoria da Literatura, Lisboa: Black Son Editores, 1997, p. 18.

Sunday, May 12, 2013

DIFERIR


"Como se, por vezes, a escrita a si própria não se bastasse
e frágil, o equilíbrio das frases -
o sentido então a esboroar-se -
numa rotura íntima
(o corpo de encontro à palavra -
entre o nada e o que o acaba)
num intervalo, profundo, ruísse.
Como se, a escrita,
a frase sobre si mesma se voltasse, indizível -
ou, perdido que foi o seu antigo fascínio,
difícil de reconhecer por escrito.
Como se o seu espelho - no fim, partido -
do corpo o Eu diferisse,
uma desritmia sendo
de puros fragmentos perdidos
que nenhuma mão do alto jogasse
no azul tabuleiro infindo (E sem sentido)."
  Fernando Guerreiro, Fractus vocis - um poema do íntimo, Lisboa: Edição do autor, 1987, p. 36.

Saturday, May 11, 2013

COMÉRCIO


"Depois duma argumentação tão sólida, Chichikov convenceu-se de que tinha ganho a sua causa.
- Realmente - respondeu a senhora - eu não sou mais que uma pobre viúva sem experiência. Prefiro esperar algum tempo. É natural que apareçam por aí outros compradores e confrontarei preços.
- Olha! olha! Pobre criatura! Parece mentira que a senhora diga semelhante coisa! Reflita um pouco. Quem quererá fazer um embarque de mortos? Para que lhe podem servir?
- Quem sabe? Para os trabalhos do campo, talvez... - objectou a velha que, sem terminar a frase, ficou de boca aberta, olhando para Chichikov, à espera do que este lhe responderia.
- Com que então pensa a senhora em empregá-los a espantar, pela noite, os pardais da sua horta!...
- Deus nos acuda! Sempre diz cada horror! - exclamou a velha, benzendo-se.
- Então que pretende a senhora fazer com eles? Por outro lado: ossadas e tumbas, tudo ficará com a senhora; a transferência só se fará no papel. Quer assim? Estamos de acordo? Vamos, responda!"
  Nicolau Gogol, As Almas Mortas (Aventuras de Chichikov), trad. Isolino Caramalho, Lisboa: Editorial «Gleba», 1945, p. 59.

Thursday, May 9, 2013

REAL


"O milagre, o terror, o mistério são banidos do mundo real para o da fantasia, porque as leis universais são as inalteráveis leis divinas, escritas na Natureza, ditadas pelo Espírito do qual a consciência humana é a representação concreta e real."
  Oliveira Martins, O Helenismo e a Civilização Cristã, Lisboa: Guimarães Editores, 1985, p. 104.

Wednesday, May 8, 2013

ELEVAÇÃO


"Nada é mais incerto, sabem-no os gregos, do que a transparência do horizonte."

 
Fernando Guerreiro, O Canto de Mársias - por uma poética do sacrifício, Coimbra: Angelus Novus, 2001, p. 11.

Tuesday, May 7, 2013

RAÍZES VAZIAS


"Ces jours qui te semblent vides
Et perdues pour l'univers
Ont des racines avides
Qui travaillent les déserts.
La substance chevelue
Par les ténèbres élue
Ne peut s'arrêter jamais,
Jusqu'aux entrailles du monde,
De poursuivre l'eau profonde
Que demandent les sommets."
  Paul Valéry, Poésies, Paris: Gallimard, 2009, p. 112.

Monday, May 6, 2013

ESTADISTA


"Elas debalde o presenteavam... Deixem-no em paz digerir, deixem-no fartar-se de anedotas obscenas em Mafra, de cantochão, de festas de igreja, de rapé. Outros se encarregavam de lhe fazer os filhos, e, como D. Carlota Joaquina pedia favores para os amantes, ele próprio os despachava para lugares rendosos, sublinhando com esperteza «por justos e particulares motivos que tenho presentes...» É que nao queria que o tomassem por tolo. Coçava a papeira, afiava certos ditos, era filósofo. Muito mais tarde havia o povo revolto de lhe rodear o carro aos gritos de  - viva o povo soberano!
E ele de si para si resmungava:
- Pois sim, sim, viva o povo soberano, mas eu cá ando de carro e vocês andam a pé..."
 Raul Brandão, El-Rei Junot, Lisboa: IN-CM, 1982, pp. 78-79.

Sunday, May 5, 2013

DIA DA MÃE


"Embala a fronte pálida
Do pobre sonhador,
Que desbotou cismando
Em misterioso amor...

Embala o seio aflito
Da triste poesia,
que em vão estende as asas
Por ver a luz do dia...

Embala a alma opressa
De quem já não tem mais
No céu, do que as estrelas
Na terra, que seus ais...

Embala no teu peito
A última esperança
De quem só vê no mundo
Teu riso de criança...

Embala nos teus braços
Minha última ilusão...
É leve - tem o peso
Dum ermo coração -

Embala no teu berço
De paz e inocência,
As minhas horas últimas
De inútil existência...

Embala as minhas dores,
Que, enfim, durmam também:
Sê, flor, meu universo,
Criança, a minha mãe!"
  Antero de Quental, "Maria", in Poesia Completa, Lisboa: D. Quixote, 2001, pp. 113-114.

Saturday, May 4, 2013

ALTO


"E, lá no alto, o homem esta contente. Como quem atira ao vento, num gesto de desdém,um punhado de pétalas, atira cá para baixo uns miseráveis restos de oiro que levou, do seu oiro de lembranças de que se tinha esquecido. O homem está contente."

Florbela Espanca, "O Aviador", in  Contos e Diário, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004, p. 180.

Friday, May 3, 2013

APOTEOSE


"Lá em cima, a formidável apoteose desdobra-se no meio do pasmo das coisas. É um homem! Um homem que tem asas! E as asas pairam, descem, rodopiam, ascendem de novo, giram, latejam, batem ao sol, mais ágeis e mais robustas, mais leves e mais possantes que as das águias!"
Florbela Espanca, "O Aviador", in  Contos e Diário, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004, p. 178.

Wednesday, May 1, 2013

VIDA PARADA


"A vida estremece apenas, pairando quase imóvel, numa agitação toda interior, condensada em si própria, extática e profunda. A vida, parada e recolhida, cria heróis nos imponderáveis fluidos da tarde."
 
Florbela Espanca, "O Aviador", in  Contos e Diário, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004, p. 177.