Monday, September 29, 2008

DIA DOS ANJOS, DAS ESPERANÇAS



"Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses. O que está em baixo é como o que está em cima, disse Hermes Três Vezes Máximo, que, como todos os fundadores de religiões, se lembrou de tudo, menos de existir. Quantas vezes Deus me disse, citando Antero de Quental, "Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?"
Tudo é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam. Deus é o Segundo na Ordem manifesta, e não me diz quem é o Chefe da Ordem, o único que conhece - se conhece - os Chefes Secretos. Quantas vezes Deus me disse: «Meu irmão, não sei quem sou.»"

Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 58

Saturday, September 27, 2008

QUE FARIA DEUS ANTES DA CRIAÇÃO ?


"Não é verdade que estão ainda cheios de velhice espiritual aqueles que nos dizem: - «Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? Se estava ocioso e nada realizava - dizem eles - porque não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda a acção? Se existiu em Deus um novo movimento, uma vontade nova para dar o ser a criaturas que nunca antes criara, como pode haver verdadeira eternidade, se n'Ele aparece uma vontade que antes não existia?»
A vontade de Deus não é uma criatura, está antes de toda a criatura, pois nada seria criado se antes não existisse a vontade do Criador. Essa vontade pertence à própria substância de Deus. Se alguma coisa surgisse na substância de Deus que antes lá não estivesse, não podíamos, com verdade, chamar a essa substância eterna. Mas se, desde toda a eternidade, é vontade de Deus que existam criaturas, por que razão não são as criaturas eternas?"


Santo Agostinho, Confissões, Parte II, Livro XI, 11, 13ª edição, trad. Lúcio Craveiro da Silva. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, pp. 276-277.

Tuesday, September 23, 2008

NOVA ANGELOGRAFIA


"Alguién ha entrado en la memoria blanca, en la inmovilidad del corazón.

Veo una luz debajo de la niebla y la dulzura del error me
hace cerrar los ojos.

Es la ebriedad de la melancolía; como acercar el rosto a
una rosa enferma, indecisa entre el perfume y la muerte."


Antonio Gamoneda, Libro del frío, in Antologia Poética, selecç. Tomás Sánchez Santiago, Madrid: Alianza Editorial, 2006, p. 152.

Saturday, September 20, 2008

NOVAS LITANIAS DO AZUL 1


"Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo."


Natália Correia, "O Livro dos Amantes", in Antologia Poética, org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 54.

Thursday, September 18, 2008

ARMÁRIOS DO VAZIO



"Habitamos aqui
há tão pouco
e já a memória
nos serve de almofada.

Soubemos construir
os nossos móveis
da madeira melhor
que em nós guardávamos.

A chave roda
nos dedos da ternura.
Poupamos a manhã
que fecha a cicatriz.

Este lugar é nosso. Aqui
estudaremos lentamente
o que nos cerca e liga:
as próprias saliências do silêncio."


Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 19.

Tuesday, September 16, 2008

MEMÓRIAS DA LUZ

(museu Pergamon, Berlim)



"Lembra o jacinto pisado no monte
por pastores, por terra a flor de púrpura..."



Safo, XX, trad. Eugénio de Andrade, in Poemas e Fragmentos de Safo, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 5ª ed., 1995, p. 39.

Saturday, September 13, 2008

ESGOTAMENTOS E ANALOGIAS



"Quando todas as outras fontes de consolação ficam esgotadas, bem preciso será encontrar uma nova, mesmo no caso de ser absurda. Acontece com frequência, nas cidades alemãs, que as pessoas peçam ao forasteiro para lhes confirmar que a mais incendiada, destruída e arrasada das cidades em toda a Alemanha é aquela onde vivem. Não se trata de buscar alívio na aflição, é a própria aflição que se tornou alívio. Aquelas pessoas perdem a coragem quando se lhes diz que noutro sítio foram vistas piores coisas. E talvez não tenhamos o direito de o dizer; cada cidade alemã é a pior quando nela se tem de viver."


Stig Dagerman, Outono Alemão, trad. Júlio Henriques, 2ª ed. Lisboa: Edições Antígona, 1998, p. 32.

Tuesday, September 9, 2008

RESPOSTA EM VERSO À INGRATA QUESTÃO COLOCADA SOBRE O SOFRIMENTO DA AUSÊNCIA


"Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói."


Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 18.

Saturday, September 6, 2008

DIA EM CASA,REPETINDO SOPHIA


"Mergulho no dia como em mar ou seda
Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gesto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda"


Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 50.

Wednesday, September 3, 2008

UMA LEITURA PARA A VERA COM DUAS FOTOGRAFIAS (SIEGESSÄULE 2)





"Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos."


Daniel Faria, Dos Líquidos, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 55.

Tuesday, September 2, 2008

SOBRE ESTE DIA PRECIPITEM AS MANHÃS - em memória de Vera Vouga


"Os deuses nada nos dirão, nem tão pouco o Destino. Os Deuses estão mortos e o Destino é mudo."


Fernando Pessoa, Heróstrato.

Monday, September 1, 2008

NIGHT IS FALLING



"Não tarda a sombra, aí. Vai alto o Sete-Estrelo
São horas dela vir. Minha alma, atende!
Que já a Lua, a sentinela, rende
Na esplanada do Céu, às portas do Castelo...

Oiço um rumor: talvez... Ei-la, é ela: ao longe, avisto
Seu vulto em flor: postas as mãos no seio,
Com o cabelo separado ao meio,
Todo caído para trás, como o de Cristo!

Sorri. Que linda vem, Jesus! Que bem vestida!
Quantas lembranças deste peito arranco!
Foi assim que primeiro a vi, de branco,
Foi nesse traje que ela sempre andou, em vida!

Que luz projecta! Que esplendor! Parece dia!
Os galos cantam, anunciando a aurora...
Ide deitar-vos que ainda não é a hora,
Dorme o teu sono sossegado, ó cotovia!"

(...)


António Nobre, , Porto: Livraria Tavares Martins, 1950, p. 165.