Thursday, March 31, 2022

PRESENÇA CÉNICA

 


" - Bom, isto é uma história... Mas como nós somos! Como atribuímos sempre ao tempo insolúvel de além da morte a coesão dos nossos vícios e manias! Os hábitos são toda a personalidade desses excêntricos que constituem a gente comum adaptada aos menores absurdos. A acção é uma primitiva condição da vontade, e por isso é tão fácil criar um fantasma entregue às suas ocupações como tocar violino ou pintar num terraço retratos de princesas decapitadas. No movimento conjura-se toda a vida, são a consumação desse movimento ininterrupto, eterno, os actos atribuídos às almas penadas. Elas próprias não são mais do que a presença cénica que culmina toda a sua existência passada. uma velha que fia a sua estriga branca é já uma imagem mitológica que ultrapassa a criação do fantasma. O fantasma é uma moral oportuna, a mitologia é a sublimação dessa moral. Ambos conduzem à popularidade de Deus.
- Sim senhor - disse Tamar, meio vexada. - Não sei até que ponto tu acreditas ou não em fantasmas.
- Acreditar é uma arma muito perigosa. Admitimos a morte, por exemplo; mas pessoalmente não acreditamos nela."

Agustina Bessa-Luís, A Muralha, Lisboa: Amigos do Livro/TV Guia, 1986, p. 92. 

Tuesday, March 29, 2022

TEMPO

 


"Como aprendera muito, ganhara muito calo e não confiava em ninguém, era às vezes útil, com a sua prudência e palavras de conselho. Tão sensata como o são as pessoas cobardes que recomendam a paz para não terem de se pronunciar num dos campos, não tinha exactamente inimigos. Ainda que a achassem perversa, ninguém se autorizava a apontar-lhe culpas, porque não se doía pessoalmente de qualquer dano. Assim, o mal passivo corrompe mais do que um deliberado espírito de extermínio; somos depressa cúmplices dos crimes de que nos iliba a opinião pública, o monstro afeiçoado pela civilização e que vive no fundo do nosso eu, não está nunca longe de cumprimentar um assassino que iludiu todos os inquéritos e desfez todas as provas, como se saudasse um herói. Toda a casta de força nos comove, a nós pobres ervas agoiradas por um destino pelintra; toda a violência é uma vingança contra o absurdo, e a mais bela pátria conta as suas honras pelo número das suas brutalidades. É tempo de mudar, voltar o eixo da terra, insuflar a vida dos mortos caídos com o consentimento doce e sugestivo de cada um de nós. É já tempo."


Agustina Bessa-Luís, A Muralha, Lisboa: Amigos do Livro/TV Guia, 1986, pp. 67-68. 

Monday, March 28, 2022

INSTANTES DE ESQUECIMENTO

 



"O Martin disse:
- Quem é esse Tityre?
Respondi:
- Sou eu.
- Então, às vezes sorris! - acrescentou. 
- Espera lá, caro amigo, porque vou explicar-te... (deixemo-nos, pelo menos uma vez, ir na onda!...). O Tityre sou eu e não sou eu; o Tityre é o imbecil; sou eu, és tu - somos nós todos... Mas não te rias assim... irritas-me... Dou ao imbecil o sentido de impotente; nem sempre ele se lembra da sua miséria; é o que eu ainda agora te dizia. Temos os nossos instantes de esquecimento; mas compreende que isso só é um pensamento poético..."


André Gide, Paludes (Sotia), trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, p. 62. 

Sunday, March 27, 2022

UNIDADE CREPITANTE

 



"No lugar da árvore. No lugar do ouvido. No lugar do chão. Unidade crepitante no silêncio aberto no trânsito. Tronco, calma bomba indeflagrável, dádiva da identidade."


António Ramos Rosa, "A Boca do Corpo", in Obra Poética I, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, p. 412. 

COISAS PARDAS

 



"Entretenho-me a olhar para eles; foi mesmo isto que me deu a ideia de escrever Paludes; sentir a inutilidade da contemplação, a emoção perante as delicadas coisas pardas. - Nesse dia, Tityre fez-me escrever isto:
- Entre todas as paisagens, atraem-me as grandes planícies - as terras monótonas - e eu longas viagens teria feito para encontrar terras de pântanos; mas tenho-as aqui, à minha volta.
- Não se acredite com isto que eu seja triste; nem sou sequer melancólico; sou Tityre e solitário, e gosto tanto de uma paisagem como de um livro que me não distraia do meu pensamento. Porque é triste, o meu pensamento; é grave, e ao pé dos outros, é mesmo sombrio; gosto mais dele do que qualquer outra coisa, porque dou nele passeios e procuro sobretudo as planícies, os pântanos sem sorrisos, as gândaras. Passeio-o lá suavemente."


André Gide, Paludes (Sotia), trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, pp. 41-42. 

Friday, March 25, 2022

OSMOSE

 



"O som granítico das nuvens. Osmose (cutânea) das palavras, porosas ao som do precipício."


Fernando Guerreiro, Grãos de Pólen, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 159. 

Thursday, March 24, 2022

DESCONHECIDOS

 



"E as mãos chegaram. As mãos trabalharam por um salário. As mãos nem sequer sabiam a finalidade do seu trabalho. Ninguém se conhecia, os que construíam a sul não conheciam quem trabalhava a norte. O cérebro que sonhou a Torre de Babel era desconhecido daqueles que a edificavam. Cérebro e mãos estavam afastados e eram estranhos. Tornaram-se inimigos, cérebro e mãos. O deleite de um tornar-se-ia o fardo do outro. O cântico de um tornar-se-ia a praga do outro."

Thea Von Harbou, Metrópolis, trad. Vanda Gomes, Silveira: Livro B/Letras Errantes, 2021, p. 99. 

Wednesday, March 23, 2022

PAREDE QUE FOGE

 



"Eu não fabrico a água.
Estas árvores existem. Estas mãos
estendem-se. Os meus passos
conjugam-se entre árvores, ruas, muita gente. 

Mas eis a distância (a do deserto)
e aqui aproximo-me, é um desvio
verde, não a terra encantada, 
à beira de ser eu, antecipo a vaga
que a língua move,
parede que foge e que se eleva
sobre a água, sombra e relvas. 

O percurso é incerto. A cidade 
é longe. E aqui a ausência
de uma árvore.
Interminável suspensão.
Mas a transparência existe.
Os músculos da boca são redondos.
No pulso bate a seiva. Sinto-me vivo.
Ó móvel vagar que eu pronuncio.
E a luz sempre, a luz e a sombra.
Entre uma e outra estendo a rede.
Eu quero beber a água deste dia
antes da noite."


António Ramos Rosa, "O Chão do Sopro", in Obra Poética I, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, pp. 328-329. 

Tuesday, March 22, 2022

ASSOLADORA

 



"Viu o oceano de luz que atulhava as intermináveis fiadas de ruas com um brilho prateado e reluzente. Viu o vão faiscar os reclames de luz, que se esbanjavam num êxtase de claridade inesgotável. Viu torres que se erguiam, como que erigidas de quadrados de luz, e sentiu-se prostrado, esmagado até à fraqueza por este enlevo de luzes, sentiu como este oceano cintilante, com centenas de milhares de ondas salpicadas o capturava, lhe tirava o fôlego, o invadia, o asfixiava...
E percebeu, então, que esta cidade das máquinas, esta cidade da sobriedade, esta fanática do trabalho, à noite, procurava o contrapeso homólogo à agitação do dia de trabalho. Que esta cidade, nas suas noites, se perdia frenética, insensatamente fora de si na embriaguez do deleite, tanto se lançava às alturas como descia às profundezas, era incomensuravelmente venturosa e incomensuravelmente assoladora."


Thea Von Harbou, Metrópolis, trad. Vanda Gomes, Silveira: Livro B/Letras Errantes, 2021, pp. 68-69. 

Monday, March 21, 2022

DIA DA ÁRVORE

 



"Saímos dos ruídos do inverno
e saímos do frio em que dormimos
e dormimos ainda ainda temos
sono igual ao inverno e

nada se mudou senão a luz
a saída da luz
que se esforçava no calor do rio
por achar o motor da sua húmida

súbita madrugada ali contida
no silêncio do rio na ferida
por onde pôde a árvore evadir-se da luz

e nada se mudou somente um rasgo
de claridade no clarão da água
rompeu do rio de súbito o motor"


Gastão Cruz, "Teoria da Fala", in Órgão de Luzes - Poesia Reunida, Lisboa: IN-CM, 1990, p. 110. 

Sunday, March 20, 2022

TODA A LUZ SOB AS PEDRAS (para a memória de Gastão Cruz)

 



"Da escuridão a terra levantou a cabeça
toda a luz sob as pedras
se perdera
os cabelos cobriam-se de
desespero e cinza

Estamos presos na praia humedecida
e que temíveis astros é que guardam 
esta nossa vazia fala humana?
Escolho-a pois entre a mudez e o canto

A primavera não esconde os ramos
quando nascem as folhas e as flores
não semeia de noite o semeador
nem lavra o lavrador na escuridão
como pode gerar a madrugada
a cadeia nocturna
que gela os nossos ossos e prende o livre amor?"



Gastão Cruz, "Os Nomes Desses Corpos" in Órgão de Luzes - Poesia Reunida, Lisboa: IN-CM, 1990, p. 125. 

PRIMAVERA



"A espessura da árvore
é branca

A casa repercute
os favos do silêncio

Ouço a medula da madeira
o pudor do silêncio jovem

O sangue circula sem bandeiras
ri na brancura
do corpo

Um rosto sob a cabeleira
rompe 
no ardor do instante
em relâmpagos de ternura

Todas as hastes livres nascem
do quadrado aberto 
sobre o rio

A palavra é um rosto que deixa ver o branco
do seu tremor

Do branco ao negro o branco
fogo 
de uma árvore que estala em cada mão

O tronco antigo
é a casa nova
nos seus ramos vivos"


António Ramos Rosa, "Pulsações da Terra", in Obra Poética I, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, pp. 674-675. 

Saturday, March 19, 2022

PAI

 



"E as suas mãos como as das mulheres são, 
e conformes a qualquer maternidade estão;
tão alegres como as aves que constroem com sua dança, 
ao toque quentes e serenas na confiança, 
e como recipiente de beber cabem na mão."


Rainer Maria Rilke, O Livro de Horas, 2.ª ed., trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, p. 331. 

Friday, March 18, 2022

AS CENAS, OS PARES

 



"São tantas as cenas 
Quantos os pares.
Imensa a imaginação que preside ao repetitivo.
Na casa enorme,
O simultâneo cria sempre mais espaço
Entretanto na horizontal o sonoro
Entra em colapso."

Maria Gabriela Llansol, O Começo de um Livro é Precioso, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, n.º 61. 

Thursday, March 17, 2022

RECORDANTE

 



"A narradora olha o tempo que está caindo às
Águas em fragmentos. Cada presença recordante
Oscila nelas a caminho. Seu sonho é uma escrita
Nomeante que adiante. « Nada de seguro», se assim
Quiser chamar-se o Tempo. Se tivesse sido ela a
Redigir o Génesis, em vez dos padres de Jerusalém, 
Teria prestado a Iavé um outro impulso para a 
Criação. «E Iavé disse ao homem: «Tirei-te do barro. 
Dotei-te de escrita abundante e de palavra rara.»"


Maria Gabriela Llansol, O Começo de um Livro é Precioso, Lisboa: Assírio & Alvim, 
2003, n.º 24. 

Tuesday, March 15, 2022

OS IDOS

 



"Escutou o que dizia: 
- Da minha janela via o caramanchão das videiras e, no Inverno, também via a rede de dormir - mas no Inverno só havia a rede para ver. É por isso que sabemos que a Natureza é fêmea, por causa dessa conspiração entre carne feminina e estação feminina. Todas as primaveras observava o reafirmar da antiga agitação, a promessa verde e enroscada de inquietude. Quero dizer, as flores das uvas. Não são grande coisa: um sangrar rebelde e semelhante a cera, mais folha do que flor, que ocultava gradualmente a rede, até que, em fins de Maio, no crepúsculo, a voz dela - de Little Belle - se confundia com o murmúrio das vinhas bravas."


William Faulkner, Santuário, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa: Editorial Minerva, 1973, p. 12. 

Monday, March 14, 2022

OS DESASTRES DA GUERRA

 


"Certas épocas da condição do homem sujeitam-se ao ataque gelado de um mal que se apoia nos pontos mais desonrosos da natureza humana. No centro desse furacão, o poeta contemplará pela auto-renúncia o sentido da sua mensagem, posto o que se aliará ao partido daqueles que, tendo retirado ao sofrimento a sua máscara de legitimidade, garantem o eterno retorno do teimoso estafeta, traficante de justiça."

René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 149. 

Sunday, March 13, 2022

BOMBARDEAMENTO

 



"A cidade abriu-se para o sol.
Como um lírio aberto, vermelho de mil pétalas
Ela revela-se, surge incompleta.

Um céu ardente vem pintar
Miríades de chaminés reluzentes no seu topo,
Enquanto ela, lenta, exala para o sol.

Criaturas apressadas correm
Pelo labirinto da sinistra flor.
De que é que fogem?

Uma ave negra cai do sol.
Curva-se de repente para o coração da enorme
Flor: o dia começou."


D. H. Lawrence, Os animais evangélicos e outros poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães, Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 35.

Saturday, March 12, 2022

CAMINHO

 



"Caminho com a pobreza das pedras, soletrando a areia, soletrando um nome e outro nome na estranheza incerta mas rasgada, vasta como o espaço que me falta e se me abre demais numa clareira aberta do olhar."


António Ramos Rosa, "O Instante", in Obra Poética I, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, p. 686. 

Friday, March 11, 2022

NÃO CEDÊNCIA



"Diferente era Joshua
Joshua tinha a vontade férrea de ler os textos sagrados, e de compreender. Não tinha o culto da veneração. Anjos e santos não eram escravos. Tinha ainda outra vontade férrea: referir conjuntamente, a esses textos, inteligência e sensibilidade. Um pinheiro, vendo-o debaixo da sua copa, a tentar estudar o andamento no Livro, tornara-o semelhante. «Eu não cedo. Cavarei um fosso onde a passagem a outra vontade é impossível», disse, quando ainda arbusto, quiseram impor-lhe o baptismo da primeira poda."


Maria Gabriela Llansol, Hölder, de Hölderlin, Colares: Colares Editora, s.d., p. 21. 

 

Thursday, March 10, 2022

OLHAR PARA NÓS

 




"Mas quem sabe qual era a intenção de Fabritius? Não restou uma quantidade suficiente das suas obras para tentarmos sequer adivinhar. O pássaro olha para nós. Não está idealizado nem humanizado. É de facto um pássaro. Vigilante, resignado. Não há moral nem história. Não há resolução. Há só um duplo abismo: entre o pintor e o pássaro aprisionado; entre o registo do pássaro que ele deixou e a nossa experiência dele, séculos mais tarde."


Donna Tartt, O Pintassilgo, trad. Ana Saldanha, Lisboa: Editorial Presença, 2014, p. 887. 

Wednesday, March 9, 2022

PADRÃO

 



" - Chegar aonde?
- Compreende que ao dizer «Deus» eu estou meramente a usar «Deus» como referência para um padrão de longo prazo que não somos capazes de decifrar. Um enorme e lento sistema metereológico a aproximar-se de nós vindo de longe, a soprar-nos aleatoriamente como... - eloquentemente, fustigou o ar com a mão como uma folha levada pelo vento. - Mas... talvez não tão aleatório e impessoal como isso, se me falo entender."



Donna Tartt, O Pintassilgo, trad. Ana Saldanha, Lisboa: Editorial Presença, 2014, p. 863. 

Tuesday, March 8, 2022

ANOMALIA

 



"A propósito do culto dos mortos, fala-se muito da intenção de os conservar, de se apropriar deles, por parte dos vivos - e se, por esse cerimonial, se tratasse sobretudo da vontade dos mortos encontrarem um caminho, via, para regressar?"

Fernando Guerreiro, Grãos de Pólen, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 142. 

Monday, March 7, 2022

A COR DO VENTO


 

"Só tinha feito uma pergunta pessoal ao jovem índio:
- Por que sou a única vestida com roupa azul?
- É a cor do vento. É a cor que foge, que nunca volta mas está sempre entre nós, e nos espera como a morte. É a cor do que está morto. E é a cor que se mantém distante, a olhar-nos de longe sem poder aproximar-se. Quando nos aproximamos dela, afasta-se. Não se pode estar perto. Todos somos castanhos, e amarelos, e com cabelo preto, e dentes brancos, e sangue vermelho. Mas somos os únicos que aqui estamos. Os teus olhos azuis são mensageiros do que está longe, não podem ficar aqui, e chegou o tempo de regressares.
- Para onde? - perguntou ela.
- Para as coisas distantes como o sol e a mãe azul da chuva, para lhes dizeres que somos outra vez o povo do mundo e podemos trazer de novo o sol até à lua, como um cavalo vermelho a uma égua azul; nós somos o povo. As mulheres brancas voltaram a levar a lua para o céu, e não querem que ela volte para o sol. Por isso o sol está zangado. E os índios devem dar a lua ao sol."


D. H. Lawrence, Sol, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, p. 104. 

Sunday, March 6, 2022

FRÁGIL

 


"Por isso os deuses são o resultado e não a origem. E os melhores deuses que daí resultam são até agora homens. Mas deuses frágeis como flores; que também têm a qualidade divina das coisas que ganharam a perfeição após serem arrancadas ao assustador império da garra do dragão do cosmo. O homem é tão frágil como as flores. O homem é uma flor, e a chuva pode matá-lo ou socorrê-lo, o calor pode afastá-lo com a sua cauda luminosa e destruí-lo; ou pode, por outro lado, chamá-lo com suavidade à existência, libertando-o do ovo do caos. O homem é delicado como uma flor, com uma qualidade divina que ultrapassa a das flores, e esta senhoria é um delicado problema."

D. H. Lawrence, Sol, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, p. 28. 

Saturday, March 5, 2022

SOL IMENSO

 




"Vai erguer-se o sol em mim, 
aos poucos vou ressuscitar, 
já tenho no meu mar as brancuras de uma falsa madrugada. 

Tenho o sol em mim.
E um sol no céu.
E mais além o sol imenso atrás do sol, 
o sol de imensas distâncias que se abraçam
nos genitais de um vivo espaço. 
E depois de tudo isto o sol dentro do átomo
que é deus no átomo."


D. H. Lawrence, Sol, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, p. 17. 

Thursday, March 3, 2022

ENTENDIMENTO ATÁVICO

 



"Presos a um entendimento atávico, 
à ideia de que o futuro é um fulgor

que brilha ao fundo da avenida.
Um tempo de analepses lança pontes

com os dias terminais de Roma, 
a Pérsia, a Assíria, a Babilónia.

Uma obscura razão atravessa os séculos, 
ressurge nas catacumbas. 

Pelos aparelhos de observação
espreita a dor que desponta, 

o orifício aberto no refugo da História, 
por onde olhar as sobras do presente. 

A estranha consciência que prevalece
à ruína do império romano do Ocidente."

Paulo Teixeira, A Comoção do Mundo, Lisboa: Caminho, 2020, p. 97.

Wednesday, March 2, 2022

CINZA

 



"Porque eu sei que o tempo é sempre tempo
E o lugar é sempre e somente o lugar
E o que é real é-o uma vez somente
E somente para um lugar
Eu rejubilo porque as coisas são como são e
Renuncio ao rosto bendito
E renuncio à voz
Porque eu não posso esperar voltar de novo"

T.S. Eliot, Quarta-Feira de Cinzas, trad. Rui Knopfli, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 11. 

Tuesday, March 1, 2022

CARNEM VALE


"Assim, por exemplo, no século XIII, o monge Cesário de Heisterbach (1200-1250), no seu Dialogus Miraculorum, descreve os múltiplos disfarces de Satanás. Eis alguns desses disfarces: homenzarrão vestido de negro, um belo soldado, mouro, cão, gato, urso, boi, cordeiro. Assim disfarçado, persegue o homem constantemente, tanto mais que são muitos e diversos os seus meios de acção, chegando ao ponto de decidir ir viver com alguém permanentemente. Por volta de 1270, o abade de Schönthal chama a atenção dos seus noviços para o facto de que os demónios estão por toda a parte e de «que rodeiam todas as criaturas, formando à sua volta uma espécie de redoma sem falhas nem interstícios». Perturbam a meditação, enviando maus pensamentos. Não deixam ouvir nem compreender as orações. Em suma, é extremamente difícil combatê-los."


Georges Minois, O Diabo – origem e evolução histórica, trad. Augusto Joaquim, Lisboa: Terramar, 2003, p. 49.  

PAZ


“E a paz, criadora de juventude, estende-se pela terra e jamais
a guerra funesta lhes decreta Zeus de vasto olhar;
jamais aos homens de reta justiça acompanha a Fome, 
jamais o Prejuízo; antes em festas gozarão o árduo trabalho. 
Para eles, a terra produz abundante alimento; nas montanhas o carvalho
produz, nos ramos, a glande e, no meio do tronco, as abelhas”


Hesíodo, Trabalhos e Dias, 228-233, trad. Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Ferreira, 2ª. ed., Lisboa: IN-CM, 2014, p. 102.