Sunday, October 31, 2021

SUSPIRIORUM



“- Alguém estará a dormir no quarto que fica por baixo? – disse a princesa. 
-Ninguém mais se atreveu a dormir lá – respondeu Bianca -, desde que o grande astrólogo que foi tutor de vosso irmão se afogou. O mais certo, minha senhora, é que o espírito dele e o de vosso irmão devem ter-se encontrado naquele quarto. Por amor de Deus, fujamos já para o quarto de vossa mãe!
- Ordeno-te que sossegues! – disse Matilda. – Se forem almas penadas, podemos confortar as suas penas, interrogando-as sobre o teor destas. Não podem elas causar-nos agravo, pois também nós as não injuriámos…mas se o forem, estaremos nós mais a salvo noutro quarto do que neste? Procura o meu terço: rezaremos uma oração e falaremos depois com elas.”



Horace Walpole, O Castelo de Otranto, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, pp. 67-68.

Saturday, October 30, 2021

ALMAS

 


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993), p. 48. 

Friday, October 29, 2021

AS INTENÇÕES



" - Veja Vossa Alteza como até o próprio céu se mostra contrário a tão ímpias intenções!
- Não há no céu nem inferno que possam impedir os meus desígnios - disse Manfredo, avançando e tentando agarrar a princesa."


Horace Walpole, O Castelo de Otranto, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 44. 

Thursday, October 28, 2021

O TEMPO

 

~

"O Tempo - o marco de referência dos deuses e dos seres humanos no campo ilimitado da Eternidade, o infanticida dos seus descendentes e da memória da humanidade - o tempo avança com passos incessantes e silenciosos através de eons e de eras... Entre milhões de outras almas, nasce uma Alma-Ego: para o bem e para o mal, quem sabe! Cativa na sua nova Forma humana, cresce com ela e, no final, ambas se tornam conscientes da sua existência."

Helena Blavatsky, Contos Místicos e Sobrenaturais, trad. Maria Ponce de Leão, Lisboa: Nova Vega, 2020, p. 47. 

Wednesday, October 27, 2021

EROS-THANATOS



" - Eu amo - disse para si Isidora.
- Amar - continuou Melmoth - é viver uma existência repleta de contradições perpétuas; sentir que a ausência é insuportável; sofrer quase tanto na presença do objecto amado; ser tomado de mil pensamentos quando se está longe dele; imaginar a felicidade que se experimentará quando, ao vê-lo, lhos comunicarmos; e quando o momento do encontro chega, sentir-se, por uma timidez igualmente opressiva e insuportável, a incapacidade de exprimir um só que seja desses pensamentos; ser eloquente na sua ausência e mudo na sua presença; esperar o momento do seu regresso como a aurora de uma nova existência; e quando ele chega ficar privado de repente desses meios a que ele devia trazer como o viajante do deserto espia o nascer do sol - peso esmagador dos seus raios, e quase lamentar que a noite tenha acabado."

Charles Maturin, Melmoth, o Viandante, vol. III, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, pp. 170-171.  

Tuesday, October 26, 2021

AGONIA E ÊXTASE

 



"A desesperante calma da divindade que, da sua inacessível altura deixa cair um sorriso de profunda e glacial apatia sobre os sofrimentos a que não traz qualquer libertação, faz ver que a humanidade mais cedo deixará de ser do que de sofrer. Aquele que tem necessidade de consolo volta-se, então, para a natureza, cuja incessante agitação parece corresponder às vicissitudes do destino humano e às emoções dos humanos corações, cujas alternâncias de tempestade e calma, de nuvens e de céu limpo, de terrores e de alegria, misteriosamente parecem responder às inefáveis harmonias desse instrumento, condenado a vibrar alternativamente entre a agonia e o êxtase, até que a mão da morte venha tanger as suas cordas e, assim, conquistar um perpétuo silêncio."

Charles Maturin, Melmoth, o Viandante, vol. III, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, pp. 144-145. 

Monday, October 25, 2021

ALÉM DO TEXTO


"Qualquer leitor sabe isto, se não quiser deixar-se intimidar pelas censuras da letra: não sente ele que retoma contacto com um certo além do texto, como se a linguagem primeira da obra nele desenvolvesse outras palavras e o ensinasse a falar uma segunda língua? Chama-se a isto sonhar. Mas o sonho tem as suas avenidas, como disse Bachelard, e essas avenidas são rasgadas diante da palavra pela segunda língua da obra."

Roland Barthes, Crítica e Verdade, trad. Madalena da Cruz Ferreira, Lisboa: Edições 70, 1987, p. 51. 

Sunday, October 24, 2021

RESPOSTAS

 


"Ismália parou um instante como se fizesse um primeiro esforço de reflexão - uma dolorosa experiência para um ser cuja existência se compunha até agora de tacto e de irresponsáveis instintos - e exclamou:
- Devemos ambos ter nascido no mundo das vozes, que eu sei o que tu dizes e percebo-o melhor do que ao trinado do rouxinol ou ao grito do pavão. Deve ser um mundo maravilhoso, o mundo em que toda a gente fala - o que eu não daria para que as minhas rosas crescessem no mundo das respostas."


Charles Maturin, Melmoth, o Viandante, vol. III, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, p. 66. 

Saturday, October 23, 2021

PREFERÊNCIAS

 


"Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função, já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza - a certeza completa é obviamente impossível -, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado. Contudo, para nós, o futuro deveria ser sempre diferente, e cada vez mais diferente do presente, dependendo algumas diferenças, é claro, das nossas preferências de carácter político. Mas, apesar de tudo, o muro que em certa medida existe na nossa mente entre Mitologia e História pode provavelmente abrir fendas pelo estudo de Histórias concebidas não já como separadas da Mitologia, mas como uma continuação da Mitologia."

Claude Lévy-Strauss, Mito e Significado, trad. António Marques Bessa, Lisboa: Edições 70, 1979, pp. 63-64. 

Thursday, October 21, 2021

POTENCIAL


"Passa-se precisamente o mesmo com os nossos conhecimentos acerca das plantas e dos animais. Os povos sem escrita têm um conhecimento espantosamente exacto do seu meio e de todos os seus recursos. Nós perdemos todas estas coisas, mas não as perdemos em troca de nada; estamos agora aptos a guiar um automóvel sem correr o risco de sermos esmagados a qualquer momento, e ao fim do dia podemos ligar o rádio ou o televisor. Isto implica um treino de capacidades mentais que os povos «primitivos» não possuem porque não precisam delas. Pressinto que, com o potencial que têm, poderiam ter modificado a qualidade das suas mentes, mas tal modificação não seria adequada ao tipo de vida que levam e ao tipo de relação que mantêm com a Natureza. Não se podem desenvolver imediatamente e ao mesmo tempo todas as capacidades mentais humanas. Apenas se pode usar um sector diminuto, e esse sector nunca é o mesmo, já que varia em função das culturas. E é tudo."

Claude Lévy-Strauss, Mito e Significado, trad. António Marques Bessa, Lisboa: Edições 70, 1979, p. 33. 

Wednesday, October 20, 2021

AS COISAS

 



"Aquele a quem os deuses honram, até o desdenhoso enaltece;
mas de nada vale o esforço de um homem.

Reza aos deuses, pois com os deuses está o poder. Sem os deuses, 
nem as coisas boas nem más acontecem aos homens."


Teógnis, in Poesia Grega, de Hesíodo a Teócrito, ed. e trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Queztal, 2020, p. 145. 

Monday, October 18, 2021

TESOURO

 



"Mary não costumava reparar nessas coisas, fora completamente indiferente ao mundo que a rodeava a não ser quando a incomodava, mas agora tornara-se intensamente sensível às coisas que a circundavam, ao céu, à terra e à água, aos animais e às plantas, tão belos e tão maravilhosos. Fora Tim que lho ensinara, desde aquele primeiro momento em que lhe mostrara a cigarra mestre da música no seu loendro. Estava sempre a exibir-lhe qualquer pequeno tesouro encontrado na natureza, uma aranha, uma orquídea brava ou um animalzinho de pêlo, e ela habituara-se a não recuar enojada, olhando-os tal como ele os via e tal como eram, seres perfeitos, uma parte tão funcional como ela do planeta Terra, ou mais ainda, pois por vezes mostrava-lhe coisas raras."

Colleen McCullough, Tim, trad. Maria do Carmo Cary, Difel/(sic) idea y creación editorial, 2009, pp. 68-69. 

Sunday, October 17, 2021

HESPÉRIDES

 




"Este viver comum 
será nosso futuro
É nosso já presente
este amor que não temos

É nosso e nosso o tempo
que de tão longe somos
O pomo puro que negam
branco se fez no dia."



António Ramos Rosa, "Voz Inicial", in Obra Poética, vol. I, Coimbra: Fora do Texto, 1989, p. 123. 

Saturday, October 16, 2021

ESTRANGEIRA

 



"Mergulhamos no vácuo. A vida
Pede uma luz nova. mas só a treva
aflige a nossa aflição.Os talentos
que tínhamos dissolveram-se.
neste rumo sem rumo, em que a alma
constrange a subsistência, dolorida
pelos que à nossa volta morrem
e por todos quantos deixamos para trás.
É de luto que se faz este caminho.
Esta marcha forçada e estrangeira."

Amadeu Baptista, o arco sírio, Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2016. p. 22. 

Friday, October 15, 2021

O MUNDO

 


"Tremendo, perguntei-lhe o que é que devia fazer.
- Segui-me - disse-me ele. - E procurai às apalpadelas o vosso caminho na escuridão. 
Terríveis palavras! Aqueles que nos dão a conhecer toda a verdadeira extensão da nossa infelicidade parecem-nos sempre perversos, que os nossos corações e a nossa imaginação sempre a pintam menor do que realmente ela é. É o mundo, mais do que nós próprios, quem nos ensina a verdade."


Charles Maturin, Melmoth, o Viandante, vol. II, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, p. 109. 

Thursday, October 14, 2021

OMNIPOTÊNCIA

 


"Quando a arte assume a omnipotência da realidade, quando sentimos o sofrimento igual a partir de uma ilusão ou de uma verdade, as nossas dores perdem toda a dignidade e todo o consolo. Transformamo-nos em demónios contra nós próprios e rimo-nos de tudo por que passámos."

Charles Maturin, Melmoth, o Viandante, vol. II, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, p. 52. 

Tuesday, October 12, 2021

FICA LÁ COM O TEU BORGES

 



"Ele oferece-te a memória de uma rosa amarela
Vista ao anoitecer
Anos antes de teres nascido
Interessante pá que interessante
Em contrapartida eu não te prometo nada
Nem dinheiro nem sexo nem poesia
Um iogurte não te posso oferecer + nada"


Nicanor Parra, Acho que Vou Morrer de Poesia, sel. e trad. Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta, 2019, p. 250. 

Monday, October 11, 2021

TRIVIALIDADE

 


"Vá, não pares perante a trivialidade das fábulas, o vazio das palavras, nem perante aquilo a que chamamos a ironia das opiniões. Levanta um véu e mais outro; há sempre debaixo de um símbolo outro símbolo. Mas fá-lo só para ti, que já sabias esta verdade ensinada aos homens, embora eles já a trouxessem na alma."

Paul-Jean Toulet, A Minha Amiga Nane, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, pp. 18-19. 

Sunday, October 10, 2021

REGRESSAR E VER DE NOVO

 


"O privilégio do primeiro homem e também o vosso! Lançar um olhar límpido e atento à grandeza, beleza, harmonia, força e variedade de todo o grande tecido da criação. Normalmente não experimentamos admiração porque não há nada de novo e sem admiração não existe atenção. Todos nós entramos no mundo com os olhos do espírito fechados e na altura em que os abrimos para o conhecimento, o hábito das coisas - independentemente de serem tão maravilhosas - não deixa espaço para o encantamento. Os sábios sempre se apoiaram na reflexão, imaginando-se recém-chegados ao mundo, detendo-se sobre os seus prodígios - porque cada coisa é um -, admirando a perfeição e filosofando engenhosamente. Como alguém vagueando distraidamente pelo mais aprazível dos jardins segue o seu caminho sem notar a beleza das suas plantas ou a variedade das suas flores e depois, notando-a, se volta e começa a deleitar-se com todas e cada uma das plantas e flores, assim fazemos nós: viajamos do berço ao túmulo mal reparando na beleza e na perfeição do universo. Os sábios voltam-se sempre para trás, renovando o seu prazer e contemplando cada coisa com uma nova atenção, se não um novo olhar."


Baltasar Gracián, Espelho de Bolso para Heróis, trad. Ana Cecília Simões, Lisboa: Edições Temas da Actualidade, 1996, pp. 54-55. 

Saturday, October 9, 2021

DIMENSÃO

 



"Um símbolo é uma realidade viva. Por isso a ponte que estabelece vai mudando: transporta, ora de um ora de outro ponto do inconsciente, ora para um ora para outro ponto da consciência. Serve de alimento ao eu. Enriquece-o, amplia-o, fá-lo participar de outra dimensão, a outra dimensão, a da alteridade pura em que o eu por um lado se dissolve, por outro tem fundamento e raiz."


Yvette K. Centeno, Literatura e Alquimia - Ensaios, Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 61. 

Friday, October 8, 2021

AGITAÇÃO



"O terror é muito fértil em associações. Gostamos de ligar a agitação dos elementos com a agitada vida dos homens. E nunca uma rajada de vento se ouviu nem um clarão de relâmpago se viu que não fosse imediatamente ligado na imaginação de um de nós a uma calamidade - temida, implorada ou suportada -, com o destino dos vivos e o destino dos mortos."


Charles Maturin, Melmoth, o Viandante, vol. 1, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, p. 106. 

 

Thursday, October 7, 2021

MOMENTO / MEMENTO

 



"Quem se entrega à solidão
Em breve, ai!, ficará só; 
Todos vivem, todos amam, 
E abandonam-no sem dó.
Deixem-me com a minha dor!
E se uma vez só ficar
Na mais funda solidão, 
Não estarei sozinho então.


Vem o amante de mansinho, escutando
Se está só o seu amor?
Assim, dia e noite, me vem rondando
A mim, solitário, a dor.
A mim, sozinho, o tormento. 
Só quando chegue o momento
Da solidão tumular
É que ela me irá deixar!"


J. W. Goethe, Poesia, trad. João Barrento, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 110. 

Wednesday, October 6, 2021

ESTADO

 



"Mergulhou durante uns momentos numa espécie de sombria abstracção até que o som de um relógio que batia as doze horas o fez sobressaltar - era o único som que ouvia há horas, e os sons provindos de objectos inanimados, quanto todos os seres vivos estão como se estivessem mortos, têm a uma hora destas um efeito de indescritível terror."

Charles Maturin, Melmoth, o Viandante, vol. 1, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 1974, p. 54. 

Tuesday, October 5, 2021

ABERTO (para a memória de Fernando Echevarría)



"Pelo outono arrepia-se nas árvores
o tronco aberto ao declínio
- são os mortos que brincam com as aves 
sem que elas saibam que aquele regozijo
arrima a tarde
a uma região clara de espírito. 
Nós, ignoramos porque os pios trazem
a certeza de se haver partido
o limpo cristal da margem
- é que um quintal de trinos, 
por onde os mortos brincam com as aves, 
espreita para trás do paraíso."


Fernando Echevarría, "Sobre os Mortos", in Poesia, 1987-1991, Porto: Afrontamento, p. 159. 

Monday, October 4, 2021

AMOR FIDELIS FUNERI EXTREMO

 


" Eubularco

Muitas são as paixões que enleiam os espíritos dos mortais como cadeias firmes e os retêm como se presos estivessem: a uns prende-os o brilho formoso da glória; a muitos a natureza, cuja força é poderosa; outros pelos merecimentos são movidos a amarem com coração sincero os seus amigos; a esperança do lucro atrai alguns, como o anzol aos peixes. Mas quando a lealdade é verdadeira e o coração está preso por um firme vínculo de amor, não pode ser injusta a causa desse amor. Realmente, como pode amar com verdade aquele que estima um amigo por via de um lucro vergonhoso? Desde que nunca faleça a lealdade, podem sobre ela pesar grandes perigos, duras provações ou o terror da morte: mesmo abatida, ainda luta contra todos os males que tantas vezes lhe lança no caminho a hostilidade de uma sorte cruel. De facto, a lealdade não se deixa levar por nenhum lucro, que, por ser em vão, muitas vezes está sujeito às alternativas da fortuna."


Diogo de Teive, Tragédia do Príncipe João, ato II, 2.ª ed., versão Nair Nazaré Castro Soares, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 1999, p. 163. 

Sunday, October 3, 2021

ENCHER

 



"O diálogo entre o Não e o Sim, é este:
NÃO: Disse-se tudo - o que era importante e simples de dizer - ao longo dos milénios que os homens levam a pensar e a não viver. Disse-se tudo o que era profundo em relação à elevação do ponto de vista, isto é, tudo o que é amplo e extenso ao mesmo tempo. Hoje em dia, só nos resta repetir. Só nos restam alguns poucos pormenores ínfimos ainda inexplorados. Só resta ao homem actual a tarefa ingrata e menos brilhante, a de encher os buracos com uma algaraviada de pormenores.
SIM: Sim? Que se disse tudo, que não há nada para dizer, sabe-se, sente-se. Mas o que se sente menos é que esta evidência confira à linguagem um estatuto estranho, inclusivamente perturbador, que a redime. As palavras salvaram-se por fim porque deixaram de viver."


Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia, trad. José Agostinho Baptista, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 264.

Saturday, October 2, 2021

OS ENSINAMENTOS

 



" - Isso é impossível! É contra todos os ensinamentos da antropologia!
- A antropologia não ensina uma verdade absoluta, aliás nem a psicologia, mesmo a psicologia profunda, quando ensina que cada um de nós é composto de opostos e que todos somos, pelo menos espiritualmente, hermafroditas. Ora se assim fosse o sexo de cada um de nós era rigorosamente idêntico ou não existente. Mas enquanto não nos tivermos convencido disso talvez seja indiferente ser-se homo, heterodoxa ou ortodoxamente sexual, porque o que verdadeiramente conta é que tendo nós um sexo, estamos forçosamente incompletos, desunidos e seremos obscuros uns para os outros e para nós próprios."


Ana Hatherly, O Mestre, Lisboa: Arcádia, 1963 [ed. facs.], pp. 49-50. 

Friday, October 1, 2021

A AMBIGUIDADE

 



"Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O que não quer dizer que o jogo resulte sempre. Resulte seja o que for ou do que for.
A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza. Mas tudo é instável ou está suspenso. 
Pelo menos ainda."

Ana Hatherly, O Mestre, Lisboa: Arcádia, 1963 [ed. facs.], p. 11.