Thursday, September 30, 2010

BALANÇO MENSAL 09



"Como um cativo lançado para um poço vazio, não sei onde estou e o que me espera. Apenas me é revelado que na luta tenaz e cruel contra o Diabo, princípio das forças materiais, me está destinado vencer e que, depois disso, a matéria e o espírito se fundirão numa harmonia maravilhosa e que advirá o reino da harmonia universal. Esse advento, porém, não surgirá antes de uma longa, longa série de milénios, quando a Lua e o Sírio claro e a Terra se reduzirem a pó... Até lá, é o terror, o terror..."


Anton Tchékhov, A Gaivota, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2006, pp. 23-24.

Tuesday, September 28, 2010

PARA A MENINA JUDITH


"O coração da mulher é alto
Mas nem só por isso a mulher oscila
Ela é como o navio mercante
Que chega carregado de grão

A mulher é o tear dentro da vida
Nem só por isso a mulher é mais que a vida
Ela é como o navio mercante
Que chega carregado de grão."


Daniel Faria, "Homens Que São Como Lugares Mal Situados", in Poesia, ed. Vera Vouga, 3ª ed., Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 160.

Sunday, September 26, 2010

DA FALTA E DA ABUNDÂNCIA


" Numa coisa que apodrece
-tomemos um exemplo velho:
uma pêra -
o tempo
não escorre nem grita,

antes
se afunda em seu próprio abismo,
se perde
em sua própria vertigem,
mas tão sem velocidade
que em lugar de virar luz vira
escuridão:
o apodrecer de uma coisa
de fato é a fabricação
de uma noite:
seja essa coisa
uma pêra num prato seja
um rio num bairro operário"


Ferreira Gullar, Poema Sujo, Lisboa: Ulisseia, 2010, pp. 29-30 [sem a configuração original dos versos]

Thursday, September 23, 2010

PRÉ-ROMANTISMO NOBRIANO



"Larguei a voz então aos surdos ventos,
Que nas cavernas ásperas, com brados,
Convocavam os sustos macilentos;

Aos soltos ais, nos montes espalhados,
Não respondem os seres sonolentos,
Que não há quem responda aos desgraçados."


Marquesa de Alorna (D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre), in Poetas Pré-Românticos, selec. Jacinto do Prado Coelho, 2ª ed., Coimbra: Atlântida, 1970, p. 68.

Wednesday, September 22, 2010

VEREDAS 2


"What time the mighty moon was gathering light
Love paced the thymy plots of Paradise,
And all about him roll'd his lustrous eyes;
When, turning round a cassia, full in view
Death, walking all alone beneath a yew,
And talking to himself, first met his sight:
"You must begone," said Death, "these walks are mine."
Love wept and spread his sheeny vans for flight;
Thou art the shadow of life, and as the tree
Stands in the sun and shadows all beneath,
So in the light of great eternity
Life eminent creates the shadows all beneath,
So in the light of great eternity
Life eminent creates the shade of death;
The shadow passeth when the trees shall fall,
But I shall reign for ever and over all."


Alfred Lord Tennyson, The Poems (1830-1865), London: Cassel and Company, 1907, pp. 33-34.

Tuesday, September 21, 2010

DAS PROMESSAS CAVALEIRESCAS



"À corte do Rei Artur veio um mancebo grande de corpo, e vinha ricamente ataviado, e desejou ser armado cavaleiro do rei; mas o gibão assentava-lhe de maneira mui mal ajustada, embora fosse feito de rico pano de ouro.
«Qual o vosso nome?», disse o Rei Artur.
«Senhor», disse ele, «o meu nome é Breunor le Noire, e daqui a pouco tempo sabereis que sou de boa linhagem.»
«Bem pode ser», disse Sir Kay, o Senescal, «mas por mofa sereis chamado La Cote Mal Taile, que o mesmo é dizer a copa mal talhada.»
«É grande coisa isso que pedes», disse o rei. «E qual a causa de trajares esse rico gibão? Diz-me, pois penso que por certo por alguma causa é.»
«Senhor», respondeu ele, «eu tinha um pai, um nobre cavaleiro, e de uma vez em que andava a montear aconteceu que um dia se deixou dormir; e veio um cavaleiro que de há muito tempo era seu inimigo, e que ao vê-lo tão profundamente adormecido todo o talhou e retalhou; e este mesmo gibão era o que meu pai trajava dessa mesma vez; e é por isso que este gibão me assenta tão mal, pois está como o achei, ainda com os rasgões das cutiladas, que eu nunca emendei. E para guardar na lembrança a morte de meu pai, uso e usarei este gibão até que o haja vingado; e tendes a fama de ser o rei mais nobre deste mundo, venho até vós para que me armeis cavaleiro.»"


Thomas Malory, A Morte de Artur, vol. II, trad. José Domingos Morais, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 103.

Monday, September 20, 2010

O CÉU NOS SEJA LOUVADO POR ASSIM NOS DAR TEMPO PARA RESPIRAR



"E agora descem de novo as trevas, e prouvera a Deus que pudessem ser ainda mais densas! Pudessem - quase nos atreveríamos a exclamar - ser tão densas que nada víssemos através da sua opacidade! Pudéssemos aqui pegar na caneta e rematar com a palavra Finis a nossa obra! Pudéssemos poupar o leitor ao que está para vir e dizer-lhe simplesmente que Orlando morreu e foi a enterrar. Mas aqui, ai de nós!, Verdade, Franqueza e Honestidade, as austeras deusas que velam e guardam o tinteiro do biógrafo, gritam: Não! Levando aos lábios as suas trombetas de prata, exigem num clamor: a Verdade! E de novo gritam: Verdade!, e pela terceira vez soando de concerto, ribombam: a Verdade e só a Verdade!
Perante isto - o Céu seja louvado por assim nos dar tempo para respirar! - as portas abrem-se de mansinho, como se um sopro do mais suave e sagrado zéfiro as apartasse, e entram três figuras."


Virginia Woolf, Orlando, uma biografia, trad. Ana Luísa Faria, Lisboa. Relógio D'Água, 1994, p. 101.

Sunday, September 19, 2010

PARAÍSO



"Enquanto o nosso coração voraz
bate a descompasso com o da Terra,
Não queremos ripostar demais à guerra,
fugimos de apostar demais na paz.

Compêndios de nojo, actas de festa,
são escrita tremida para nós,
mas não se lembrem autores de erguer a voz
a dizer o que purga e o que molesta.

Só a voz do sangue ouvimos bem
quando ao leme do ventre almareámos;
fomos inocentes, já nos naufragámos,
corpos de delito, almas de refém."


Luiza Neto Jorge, A Lume, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 31.

Saturday, September 18, 2010

VEREDAS 1

 

"Quão diferentemente Deus reparte, Irmão, cos homens as inclinações! Ditoso, ao que couber a melhor parte. Quantas cabeças, tantas condições, Quantas condições, tantos apetitos, E quais os apetites tais tenções. Irás achar num homem tais espritos, Que outra cousa mor qu'homem te pareça Nas obras, nos intentos, e nos ditos. Com outro irás topar, que nem mereça O nome de homem, antes ele só Dirás qu'outros homens escureça. E de quais sobre todos eu hei dó, São destes, que não crem,nem lhes parece Que foram, como nós, feitos de pó. Homens há ahi, que cuida que merece A Deus ser imortal, e um só no Mundo: Este dirás que a si, e a Deus conhece? Outro de vil, e baixo no mais fundo Da terra anda metido, então dirá Quem nem quer ser primeiro, nem segundo. Quem tanto engano desenganará? Quem por exemplo claro, ou por figura, A luz a olhos tão cegos mostrará?" 


António Ferreira, "Carta VII a Garcia Góis Ferreira seu irmão", in Poemas Lusitanos, 3ª ed., vol. II, Lisboa: Sá da Costa, 1971, pp. 64-65.

Friday, September 17, 2010

À MEMÓRIA DA MORTE E DO INFERNO



"Urnas plebeyas, túmulos reales
penetrad sin temor, memorias mías,
por donde ya el verdugo de los días
con igual pie dio pasos desiguales.

Revolved tantas señas de mortales,
desnudos huesos y cenizas frías,
a pesar de las vanas, si no pías,
caras preservaciones orientales.

Bajad luego al abismo, en cuyos senos
blasfeman almas, y en su prisión fuerte
hierros se escuchan siempre, y llanto eterno,

si quéreis, oh memorias, por lo menos
con la muerte libraros de la muerte,
y el infierno vencer con el infierno."


Luis de Góngora, Sonetos Completos, Madrid: Editorial Castalia, 1969, p. 231.

Thursday, September 16, 2010

DA AUTODESTRUTIVIDADE

"No capítulo anterior, vimos, segundo penso, com suficiente clareza que a agressividade de muitos animais para com os seus próprios congéneres não prejudica a espécie mas é, pelo contrário, essencial à sua conservação. Não faça isto nascer falsas esperanças relativamente à actual situação da humanidade. Uma pequeníssima mudança, aparentemente insignificante, das condições do meio pode desequilibrar completamente todos os mecanismos do comportamento inato. E se a espécie é incapaz de se adaptar rapidamente a tais modificações, daí resulta a sua destruição." Konrad Lorenz, A Agressão - Uma História Natural do Mal, trad. Isabel Tamen, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 69.

Wednesday, September 15, 2010

PHOBOS, DEIMOS



"Todo o lugar é fresco. Agitam-se as árvores grandes
de verão ao rés do olhar quando acordamos
e tufozinhos de heras a arrastar-se
a menos que tenham sido puxados - quais lembranças
que há tanto sacas e podem mostrar agora a face
e manter as distâncias. Depressão de boca branca
que nada para fora da sombra como um golfinho
de olhos húmidos, ilegíveis, não furtivos.

Nado em Homero. No Livro vinte e três.
Por fim, Penélope e Odisseus
acordam juntos. Coluna do leito pode ser
o tronco vivo de uma antiga oliveira
e é segredo deles. Como o nosso podia ter sido hera,
sempre verde, fremente e por dizer."


Seamus Heaney, "Seeing Things", in Antologia Poética, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 133.

Tuesday, September 14, 2010

BURSTING AT THE END LIKE DAMS



"No dia do veneno, aos seus amigos,
Sócrates disse ter estado a escrever:
a pôr em verso fábulas de Esopo.

Isto, não porque amasse a sabedoria
e advogasse a vida examinada.
A razão foi que ele tivera um sonho.

César, ou Herodes, ou Constantino
ou qualquer conta de reis shakespeareanos
rebentando por fim como barragens

de panoramas originais submersos
a reerguer antes das cenas da morte -
pode crer-se nos seus crédulos sonhos.

Mas Sócrates, bem menos. Ou seja, até
dizer aos amigos que o sonho recorrera
por toda a sua vida, a repetir uma instrução:

Exerce a arte, arte que até então
julgou sempre que era a filosofia.
Feliz o homem, pois, com dotes naturais

para dar-se à que está certa desde o início -
a poesia, digamos, ou a pesca;
as suas noites são sem sonhos; os seus

panoramas afundados levantam-se
e passam como a luz do dia
pela argola da cana ou o olho do aparo."


Seamus Heaney, "The Haw Lantern", in Antologia Poética, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1998, pp. 115; 117.

Monday, September 13, 2010

EM SONHOS


"Em sonhos veio uma censura ferir-me o coração, ferir-me o fígado, como um aguilhão que o cocheiro empunha pelo meio. E eu sinto que me invade um frio grande, um frio enorme, sob o chicote do terrível, público algoz."


Ésquilo, Euménides, trad. Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 192.

Saturday, September 11, 2010

ONDE REINA O TERROR




"«Porque aí, no seio das águas, reina o terror. E o homem não deve tentar os deuses, nem nunca desejar - oh, nunca! - ver o que a sua clemência nos esconde na noite e no horror». No entanto, na medida em que os deuses se abstêm e em que, pelo contrário, os benevolentes raios do sol meridional emprestam as cores do seu espectro aos animais e às plantas, o homem deverá tentar penetrar aí - o que lhe aconselho - pelo menos uma vez na vida, enquanto tiver idade para isso."


Konrad Lorenz, A Agressão - Uma História Natural do Mal, trad. Isabel Tamen, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2001, p. 15.

Thursday, September 9, 2010

AUTOCRIATIVIDADE



"Por isso é que, muitas vezes, o nosso astronauta sem escafandro vai recorrendo a provisórias injecções de oxigénio: a citação. E vemos que muitos desses textos se enchem com esses balões retirados de leituras avulsas, cuja única função, para além de encher o espaço de página que, fraudulentamente, eles ocupam com o alheio, é conferir seriedade a discursos que revelam uma total ausência de capacidade em assumir ideias próprias. É certo que tudo isto tem o álibi de certas teorizações ultravanguardistas, indo buscar conceitos como o «vazio», o «débil», o «enamoramento», nascido nalgum baldio vizinho das termas de Caracala, que fizeram sucesso antes de terem aparecido no mercado o Prozac e o Viagra. Assim, cegamente apaixonados pelo discurso do outro (que também é outra das fórmulas postas em voga pelo vácuo dos estudos culturais), vão-nos sugando às escondidas, como aquele vampiro plebeu do filme de Polanski ia chupando o sangue à rapariga guardada para o conde Drácula, até todos vermos que, afinal, o corpo teórico que os alimentou está exangue."

Nuno Júdice, ABC da Crítica, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 71-72.

Wednesday, September 8, 2010

... Y DETERMINA QUE PREVALEZCA LA RAZÓN CONTRA EL GUSTO



"Al que ingrato me deja, busco amante;
al que amante me sigue, dejo ingrata;
constante adoro a quien mi amor maltrata;
maltrato a quien mi amor busca constante.

Al que trato de amor, hallo diamante,
y soy diamante al que de amor me trata;
triunfante quiero ver al que me mata,
y mato al que me quiere ver triunfante.

Si a éste pago, padece mi deseo;
si ruego a aquél, mi pundonor enojo:
de entrambos modos infeliz me veo.

Pero yo, por mejor partido, escojo
de quien no quiero, ser violento empleo,
que, de quien no me quiere, vil despojo."


Sor Juana Inés de la Cruz, Poesía Lírica/El Divino Narciso, Barcelona: Edicomunicación, 1994, p. 77.

Tuesday, September 7, 2010

ESCOGE ANTES EL MORIR QUE EXPONERSE A LOS ULTRAJES DE LA VEJEZ




"Miró Celia una rosa que en el prado
ostentaba feliz la pompa vana
y con afeites de carmín e grana
bañaba alegre el rostro delicado;

y dijo: - Goza, sin temor del Hado,
el curso breve de tu edad lozana,
pues no podrá la muerte de mañana
quitarte lo que hubieres hoy gozado;

y aunque llega la muerte presurosa
y tu fragante vida se te aleja,
no sientas el morir tan bella y moza:

mira que la experiencia te aconseja
que es la fortuna morirte siendo hermosa
y no ver ele ultraje de ser vieja."


Sor Juana Inés de la Cruz, Poesía Lírica/El Divino Narciso, Barcelona: Edicomunicación, 1994, p. 73.

Monday, September 6, 2010

TAKE ME AWAY FROM ALL THIS DEATH (COM HOMENAGEM A CASPAR DAVID FRIEDRICH)



"Sente-se a gente bem quando alguém chora.
Ouvindo soluçar a dor alheia,
A dor que as nossas almas alanceia
Dá-nos tréguas, apaga-se, minora.

Por isso eu vou às vezes pensativo
Escutar esses lúgubres lamentos
Que, inconsolável, bárbaro cativo,
O mar rouqueja esguedelhado aos ventos.

E o choro largo, lento e lamentoso
Dos meus desejos desgrenhados, loucos,
Vai-se calando, adormecendo aos poucos,
Ao soluçar do eterno desditoso.

Sim! a minh' alma cala-se e adormece
Olhando as vagas - corações a arfar -
- Não que me punja, não que me atravesse
O peito a dor intérmina do mar;

Mas porque, quando a Dor nos cinge ao colo,
Por um egoísmo lúgubre, altaneiro,
Sentimos sempre um íntimo consolo
Em acharmos na Dor um companheiro.

Ora uma vez que a Mágoa me açoutava
Como o vento do norte os arvoredos,
- Morria o sol, a escuridão tombava -
Fui-me assentar na crista dos rochedos.

O mar rugia indómito e selvagem
E o meu olhar errava distraído
Por sobre aquele espelho indefinido
Em que a minh' alma via a sua imagem.

E perguntei ao mar em cujo fundo
Se arrasam e se geram continentes,
Onde há riquezas de assombrar o mundo,
Porque chorava, rei dos Descontentes.

- «O que desejas mais? O que te faz
Andar chorando?» - E o mar em voz convulsa:
-«É que há em mim um coração que pulsa
E nada o coração nos satisfaz.» -


Rodrigo Solano, Fumo, ed. act., Penafiel: Câmara Municipal de Penafiel, 2010, pp. 70-71.

Sunday, September 5, 2010

ENSINAMENTOS ÉTICO-MORAIS


"«Ah, Sir Artur», disseram o Rei Ban e o Rei Bors, «não vos agasteis com eles, pois fazem apenas o que os homens valorosos devem fazer.»
«Por minha fé», disse o Rei Ban, «são os melhores guerreiros, e cavaleiros de mais ardor e ousadia que jamais vi ou conheci, e aqueles onze reis são homens de grande merecimento; e se vos pertencessem, debaixo do céu não haveria rei que tivesse onze cavaleiros iguais e de tal merecimento.»
«Não os posso amar», disse Artur, «já que me quiseram destruir.»"


Thomas Malory, A Morte de Artur, vol. I, trad. José Domingos Morais, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 50.

Friday, September 3, 2010

DAS IRREDUTÍVEIS VOZES



"Uma multidão de que te alheias.
Vozes sobrepostas
destroem o sentido

e a tua inclinação por ideias de ordem
desvia-te para um lugar escuro, silente
(assim o pressentes),

uma sala do lado esquerdo,
ao fundo, onde ninguém está.
Em rigor há uma luz dispersa.

uma atmosfera de encanto e morte.
Um espelho espreita.
Os circunstantes degladiando-se

num arremesso de vozes.
Estão nele, são espreitados.
Sonhas a armadilha que o voluntário

espelho revela. O tempo
suspende-se
sob o efeito de um sortilégio.

Nessa sala onde a obscuridade
não é total (os olhos vêem mais
depois da atenção),
a multidão a teu lado, sitiando-te,
é engolida pela perseguição
geométrica.

Antecedes o momento
em que o mundo acaba
e uma fúria de vitorioso esquecimento

apaga os despojos
das irredutíveis vozes
e a imagem do teu rosto

perseguindo o jogo perseguidor."


Luís Quintais, Duelo, Lisboa: Edições Cotovia, 2004, pp. 30-31.

Thursday, September 2, 2010

ASSIM EM SUAS MÃOS



"Assim em suas mãos nos troca a vida
E quem já nem em sonhos conhecemos
Longe se perde nos confins extremos
Da grande madrugada prometida

Assim em suas mãos nos troca a vida."


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Mar Novo", in Obra Poética I, Lisboa: Editorial Caminho, 1992, p. 297.

Wednesday, September 1, 2010

SETEMBRO, CARA DE POUCOS AMIGOS E MANHÃ DE FIGOS



"o jornalista
repara no mar que ali
se faz contra tudo (conta
tudo)

documento
reaberto não sei em que linha
texto em cima do

joelho apontado ao mar

ela diz: estou mesmo infeliz desde aqui

quem se lembraria de escurecer agora
que todos os risos explodem dentro dele
ela entorna o galão no jornal de sábado
felizmente nas páginas que já leu

no Jardim da Parada
o template do telemóvel mudou
para o desenho e cores do Outono
é dia 1 de Setembro

(uma manhã estranha como Camilo Pessanha)

repara na forma desajustada deste
poema cheio de adjectivação

impublicável calenda
sobre a qual os pássaros
ainda teimam alheios ao You Tube

ela recuou em transumância ao mês passado
para fumar outra vez contra o

grande
silêncio entrecortado pelo
bater do sino

o sinal horário
devolveu-lhe a clara substância pura
do sol de Agosto

dando no renque seco

dos carvalhos
pés sobre a terra
mãos aproximando-se do princípio
celestial das

roseiras"


Miguel-Manso, Contra A Manhã Burra [cortado], 2ª ed., Lisboa: Mariposa Azual, 2009, pp. 66-67.