Wednesday, March 31, 2021

GLÓRIA


"Para Anninka, aquela cerimónia sempre fora muito comovente. Em criança, chorava amargamente quando o padre lia: «E fizera uma coroa de espinhos e puseram-na na Sua cabeça e uma cana na mão direita» - e numa voz fina, quebrada por soluços, acompanhava o coro: «Glória ao Teu longo sofrimento, Senhor! Glória a Ti!» E quando a cerimónia acabava, trémula, corria para o quarto das criadas e, na penumbra (Arina Petrovna não dava velas às criadas quando não havia trabalho), falava às servas na «Paixão do Senhor». As servas vertiam lágrimas silenciosas, davam suspiros fundos. Na sua servidão, sentiam que o seu Senhor e Redentor estava perto, acreditavam que Ele se erguia de facto de entre os mortos. E Anninka também sentia e acreditava. Para além da noite funda do castigo, da troça e da malícia, todos aqueles pobres de espírito viam o reino da luz e da liberdade. A própria bárynia velha, Arina Petrovna, habitualmente severa, tornava-se mais branda durante esses dias, não ralhava, não censurava Anninka por ser órfã, e afagava-lhe a cabeça e dizia-lhe que não se afligisse. Mas Anninka, mesmo na cama, não conseguia acalmar durante muito tempo, mexia-se, dava muitos saltos durante a noite e falava durante o sono."

Saltykov-Shchedrin, A Família Golovliov, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p. 275. 

Tuesday, March 30, 2021

DESIGUAL



"Nadara bastante, conversara com gente desconhecida. A política estava na ordem do dia, não discutia limitara-se a ouvir. Não era uma política era um ser que, o mais honestamente que lhe era possível, procurava compreender de que lado estava a razão. No entanto, de alguma coisa tinha a inegável certeza: os seres humanos não se distinguiam uns dos outros, nem pela sua capacidade económica, nem pelo que tinha feito os seus pais e avós. Também não eram iguais como Cristo pregara, distinguiam-se sobretudo pela nobreza dos seus sentimentos, pela sua inteligência se fosse posta ao serviço de uma causa justa e pelo poder de ser úteis numa sociedade, pela sua sensibilidade...
As suas ideias perderam-se, o mundo exterior tornara-se hostil para ela e guardava toda a sua energia para poder caminhar contra a nortada que a agredia. O vento enervava-a."


Graça Pina de Morais, A Mulher do Chapéu de Palha, Lisboa: Antígona, 2000, pp. 26-27. 

Monday, March 29, 2021

SUPLÍCIO

 



" Ele, que tudo vê e que é omnipotente, 
Assiste mudo ao teu suplício - e, todavia, 
Se tudo pode, é obra sua essa agonia, 
Se tudo vê, ou te renega ou te desmente!

Foste tão mau que não mereças compaixão
De quem é bom?... Porque é que a tua própria sorte
Tão cruamente nega a tua predição?..."


D. João de Castro, Jesus, 2.ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1920, p. 76. [ort. at.]

Sunday, March 28, 2021

RAMOS

 



"Na copa da tua árvore soa a luz ruidosa
e torna para ti cada coisa colorida e vaidosa, 
assim te encontram só quando o dia lentamente se apagou. 
O crepúsculo, a ternura do espaço que ficou, 
põe mil mãos sobre mil cumes em repouso, 
e entre eles o desconhecido se torna piedoso. 

De outro modo não queres a ti o mundo prender tanto
do que assim, com este suavíssimo gesto que preparas. 
Dos seus céus a terra para ti agarras
e sente-la debaixo das dobras do teu manto. 

Tens assim um modo discreto de ser.
E todo aquele que a ti sonoros nomes disser, 
já esquecido está da tua proximidade. 

Das tuas mãos se erguem a altear, 
sobe, para aos nossos sentidos a lei dar, 
com fronte grave a tua muda capacidade."


Rainer Maria Rilke, O Livro de Horas, 2.ª ed., trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, p. 161.

Saturday, March 27, 2021

PEQUENO JUDAS

 



"Não deve pensar-se que Iúduchka era um hipócrita no sentido, por exemplo, de Tartufo ou de qualquer autêntico burguês francês, que se lança em voos de eloquência sobre a moralidade social. Não, era um hipócrita de um tipo puramente russo, ou seja, simplesmente um homem desprovido de qualquer critério moral e não conhecendo outra verdade além de normas escritas. A sua ignorância não tinha limites, era litigioso, mentiroso, fala-barato, e tinha um medo terrível do Diabo. Todas estas qualidades são meramente negativas e não podem fornecer material sólido para um verdadeiro hipócrita."


Saltykov-Shchedrin, A Família Golovliov, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p. 115.  

Friday, March 26, 2021

PRECISÃO




"A precisão do mergulho
recria na abelha um centro estranho,
com pernas de pano
exigentes no seu extermínio. 

O manto de vidro é polido
pelo seu reflexo. 
É olho de uma casa 
que olha                  para dentro."



André Osório, observação da gravidade, Lisboa: Guerra & Paz, 2020, p. 31. 

Thursday, March 25, 2021

DE MUITAS ÁRVORES

 



"Chega-te ao pé de mim; não te acontecerá nada de mal. 
Deixa o mar glauco marulhar contra a costa;
passarás mais suavemente a noite no antro comigo.
Há loureiros e esguios ciprestes;
há hera escura e há uma vinha de fruto doce. 
Há água fresca, que o Etna de muitas árvores
me faz jorrar na branca neve, bebida divina!
Quem preferiria a estas coisas o mar e as ondas?"


Teócrito , Idílio XI, 42-49, in Poesia Grega, de Hesíodo a Teócrito, ed. e trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Queztal, 2020, p. 325. 

Wednesday, March 24, 2021

OS CONTORNOS

 


"Havia dias em que eles tinham a impressão de terem conseguido dominar aquela imensa massa poética, de a terem abarcado até aos seus limites mais remotos, mas depois logo se apercebiam de que isso não passava de ilusão. No dia seguinte, os contornos da epopeia esfumavam-se, oscilavam, desvaneciam-se outra vez; dos confins, o fenómeno propagava-se às outras partes do conjunto, até ao seu cerne. Parecia-lhes, então, que era impossível de dominar. Era pretender controlar um caos onde acontecimentos, personagens e calamidades se manifestavam sob formas tão movediças de mobiliade quanto as de um pesadelo."

Ismail Kadaré, O Dossier H, trad. Carmen de Carvalho (segundo a versão francesa), Lisboa: Difusão Cultural, 1991, p. 127. 

Tuesday, March 23, 2021

AS VOLTAS

 



"Ó rapaz, é Zeus tonitruante que detém o desfecho 
de tudo quanto existe e tudo dispõe como quer. 
Não há inteligência nos humanos, mas efémeros
como gado vivemos, sem sabermos
como o deus terminará cada coisa. 
Porém, a todos a esperança e a credulidade
alimentam a vontade do impossível. Uns que o dia
venha esperam; outros, as voltas das estações."


Semónides, fr.1 W, in Poesia Grega, de Hesíodo a Teócrito, ed. e trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Queztal, 2020, p. 65. 


Monday, March 22, 2021

A MORTE CERTA



"No outro dia, uns montanheses das Ravinas Negras, que levavam um doente à capital, vieram pedir alojamento. De madrugada, quando os irlandeses desceram para tomar o pequeno-almoço, o infeliz ainda lá estava, jazendo num catre. O seu rosto parecia uma máscara. Quando perguntaram o que é que ele tinha, Martin, procurando sossegá-los, respondeu-lhes que não se tratava de nenhuma doença contagiosa. 
- Receamos que lhe tenham emparedado a sombra - explicou. - Se for verdade, não servirá de nada levá-lo à capital. Não se vai safar. 
- Mas que raio de doença é essa? - perguntou Max. - O que quer isso dizer, «emparedar a sombra»?
Martin tentou explicar-lhe. Era um mal ao qual não se podia sobreviver. Aquela vítima era um pedreiro e, ao que parecia, durante a edificação de uma kulla um dos seus companheiros, de propósito ou não, tinha-lhe emparedado a sombra, por outras palavras, tinha coberto de pedras e argamassa a sombra do homem que então se projectava na parede que estavam a construir. De uma maneira geral, os montanheses pedreiros fogem como o Diabo da cruz do emparedamento da sua sombra, pois toda a gente sabe que quem ficar com a sombra emparedada fica prisioneiro da parede e votado a uma morte certa. Mas o montanhês em questão, segundo o que se dizia, era novato no trabalho, faltava-lhe experiência."


Ismail Kadaré, O Dossier H, trad. Carmen de Carvalho (segundo a versão francesa), Lisboa: Difusão Cultural, 1991, pp. 120-121. 

Sunday, March 21, 2021

CALVÁRIO

 



"Não obstante o afastamento de muitos, era grande a multidão apinhada no trajecto do Calvário. Muitos tomavam dianteira, para verem passar tão lúgubre comitiva. A escolta dos soldados romanos impedia, porém, que se aglomerassem e os curiosos eram obrigados a ir por ruas travessas, seguindo por esta maneira até à rocha do Calvário. 
A rua por onde Jesus passou era estreita e suja. Nela teve muito que sofrer. Os archeiros iam quase encostados a ele. Os que estavam em casa injuriavam-no das janelas, atirando-lhe os escravos com lama e imundícies. Até as crianças, que Jesus tanto amava, juntando pedras nos vestidos, arremessavam-lhe com elas ou colocavam-nas diante dos pés do Senhor."


Ana Catarina Emmerich, A Paixão de Jesus Cristo, 2.ª ed.,  s. trad., Apelação: Paulus Editora, 2004, p. 214. 

Saturday, March 20, 2021

EQUINÓCIO

 



"Na primavera, os marmeleiros
da Cidónia, regados pelas correntes
dos rios, lá onde das Virgens
está o puro jardim, e os pâmpanos
a crescerem sob folhagens sombrias, 
rebentos de vinha. Mas para mim o amor
não descansa em nenhuma estação; 
mas ardendo sob o relâmpago
como o Bóreas da Trácia, 
lança-se de junto de Cípris com sedentas
insânias, tenebroso, desavergonhado, 
e com força, de cima a baixo, sacode
o meu espírito."


Íbico, fr. 286 PMG, in Poesia Grega, de Hesíodo a Teócrito, ed. e trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Queztal, 2020, p. 101. 

Friday, March 19, 2021

ESCUTAR

 



"Escuchen qué cosa y cosa
tan maravillosa, aquesta:
un Marido sin mujer,
y una casada Doncella.


Un Padre, que no ha engendrado
a un Hijo, a quien Otro engendra;
un Hijo mayor que el Padre,
y un Casado con pureza.


Un hombre que da alimentos
al mismo que lo alimenta;
cría al que lo crió, y al mismo
que lo sustenta, sustenta.


Manda a su proprio Señor,
y a su hijo Dios respeta;
tiene por Ama una Esclava,
y por Esposa una Reina.


Celos tuvo y confianza,
seguridad y sospechas,
riesgos y seguridades,
necesidad y riquezas.


Tuvo, en fin, todas las cosas
que pueden pensarse buenas;
y es, en fin, de María esposo,
y de Dios, Padre en la tierra."



Sor Juana Inés de la Cruz, Poesía Lírica/El Divino Narciso, Barcelona: Edicomunicación, 1994, pp. 44-45. 

Thursday, March 18, 2021

PERCEPÇÃO



"Na arte, a desconstrução da percepção é simultaneamente uma relação com a memória e um distanciamento da memória, conexão com o aleatório."



Silvina Rodrigues Lopes, "Divagações (sobre a arte, a poesia, a memória, a política", in Poesia e Arte, a Arte da Poesia - Homenagem a Manuel Gusmão, org. Helena Carvalhão Buescu e Kelly Basílio, Lisboa: Editorial Caminho, 2008, p. 210. 

Wednesday, March 17, 2021

DIVAGAR

 


"Divagar é um privilégio: a possibilidade do jogo das associações sem lei - a disjunção, o vagar, o vaguear, o contínuo, a lentidão, o vazio, a onda, o discorrer sem centro, aceitação do que vem aleatoriamente e no entanto não é simplesmente espontâneo. O espontâneo brota: quando se ajusta a uma finalidade, é a perfeição, o pleno, que nada tem de divagação, sendo, pelo contrário, a formação da obra como arquitectura sólida; quando não se ajusta, interrompe, fragmenta, retira velocidade ao cálculo, faz repetir, diferenciar, flutuar."


Silvina Rodrigues Lopes, "Divagações (sobre a arte, a poesia, a memória, a política", in Poesia e Arte, a Arte da Poesia - Homenagem a Manuel Gusmão, org. Helena Carvalhão Buescu e Kelly Basílio, Lisboa: Editorial Caminho, 2008, p. 207. 

Monday, March 15, 2021

OS LAÇOS

 



" - Para mim representa tanto, que julgo não poderia viver se a não tivesse - repliquei num entusiasmo de que me arrependi logo, pois tive a impressão de que fora patetice.
- Podia, sim - respondeu com um sorriso e ao mesmo tempo com ar pensativo. - Os laços que nos prendem à vida são mais fortes do que muitas vezes imaginamos, ou do que supõe quem nunca sentiu quanto se podem forçar esses laços sem quebrá-los. Seria infeliz se não tivesse a sua casa, mas continuaria mesmo assim a viver e não se sentiria tão desgraçada como poderia imaginar. O coração humano é como a borracha, uma coisa pequena o faz inchar, mas uma coisa de nada o perturba, é preciso outra enorme para o quebrar."


Anne Brontë, Agnes Grey, trad. Manuela Porto, Matosinhos: Edições Book.it, 2013, p. 160. 

Sunday, March 14, 2021

ESPLENDOR

 



"Nada chora o martírio do inocente!
As árvores têm flor, as campinas têm flor...
Que horrível esplendor!...
Ninguém vê, ninguém ouve, ninguém sente
A nossa dor!
As aves voam pelo céu azul, cantando, 
O ar parece de aloés e nardos,
E até o sol, que agora é menos brando, 
Está com os seus raios avivando
A triste flor das urzes e dos cardos!"


D. João de Castro, Jesus, 2.ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1920, pp. 82-83. 

Saturday, March 13, 2021

O CÉU

 




" O céu? Oh, mas o céu que a tua vista baça
Nos espaços procura, existe só na esp' rança
De quem sofre e tem fé!... Não se vê, nem se alcança,
Porque é somente uma quimera da Desgraça!

Quando a ilusão da Terra, enfim, um dia passa, 
O infeliz que a perdeu, perdida a segurança, 
Logo busca a ilusão do Céu, e só descansa
Quando a Morte, a fina, seu sonho despedaça!

O que diz, pois, o teu olhar amargo e triste?...
... - Que além, sobre o infinito Azul que nos ilude, 
Está a essência original de quanto existe?..."



D. João de Castro, Jesus, 2.ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1920, p. 77. [ort. at.]

Friday, March 12, 2021

RECUAR

 




"Sair do Nada, e recuar à mesma origem...
- O caminho da Vida é um círculo onde o crente
Que corre atrás d'um sonho, encontra de repente
O ponto da partida, em ânsias de vertigem. 

Mas depois?.... Dado do ser às forças que o exigem, 
Acaso ele revive, interminavelmente, 
Em lodo, em seiva, em luz, como d'uma semente
Novas sementes para a vida se dirigem?...

Talvez... Não sei... Talvez! Deve assim ser, decerto!
A vida humana é breve... O princípio está perto
Do fim... - E eu creio, eu sinto, eu sei que hei-de viver

Outra existência em outra argila menos fria, 
Talvez como palmeira, a cuja sombra, um dia, 
A dor da vida possa enfim adormecer!"



D. João de Castro, Jesus, 2.ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1920, pp. 13-14 [ort. at.]

Thursday, March 11, 2021

SALVAR

 



"Aproxima-te de novo, solidão, 
de tanto ir e vir: que não te esqueça. 
É o mesmo viver o que divide
confundido o falso e a verdade. 

Há dois mundos: o teu e a orfandade
pois só em ti o nosso sentir reside, 
só no teu amor o nosso pensar decide
sem se perder na sombra, na ansiedade. 

Essência dos sonhos iluminados, 
do voar que ilumina a beleza
do caminho, abraçado à alegria:

serena com tua luz os nossos sentidos, 
só tu, solidão, a força
que permite salvar a Poesia."


Jesús Lizano, Mundo Real Poético, selec. e trad. Carlos d'Abreu, Lisboa: Barricada de Livros, 2019, p. 45. 

Wednesday, March 10, 2021

ANIVERSÁRIO

 




"Que azul onde se vive 
a paz. O peso 
é a superfície
de nós sem tempo.
E a brisa o único limite
a situar objectos."


Fernando Echevarría, "Sobre as Horas", in Poesia, 1956-1980, Porto: Edições Afrontamento, 2000, p. 95. 

Tuesday, March 9, 2021

FUNDO

 



"Um fundo de cidade te encontraram. 
Ou sombra de água perdia
quem te levasse cravos
em ruas mais antigas. 
Um fundo de cidade. E os teus lábios
que lua recebiam
até por dentro as ruas te acenderam
claramente vazia."


Fernando Echevarría, "Outros Poemas", in Poesia, 1956-1980, Porto: Edições Afrontamento, 2000, p. 86. 

Monday, March 8, 2021

CADA MÃO

 



"Cada mão traz uma ilha
repleta de solidão. 
Avança. De maravilha
a morrer em cada mão. 
E o vento ao passar, lhe arranca
da túnica louca e branca. 
música e luz de arrepios. 
Os pés não tocam. - O mundo
passa grave, passa ao fundo. - 
Caminha por sobre os rios..."


Fernando Echevarría, "Tréguas para o Amor", in Poesia, 1956-1980, Porto: Edições Afrontamento, 2000, p. 68. 

Sunday, March 7, 2021

O PRIMEIRO PENSAMENTO

 



"O amor é a primeira palavra de Deus, o primeiro pensamento que atravessou o seu espírito. Quando ordenou «Que se faça luz!», foi o amor. Tudo o que criara era muito bom e estava contente por tê-lo feito. E o amor foi a origem do mundo e o denominador do mundo, mas todos os seus caminhos estão semeados de flores e de sangue, de flores e de sangue."


Knut Hamsun, Victoria, trad. Carlos Aboim de Brito, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2010, p. 32. 

Saturday, March 6, 2021

SACIAR

 




"O segredo do lume
é a brandura
nunca saciar 
a fome 
inteira
deixá-la pela metade
até à permanência
silente de um verso.
Meia maçã
é o garante
póstumo 
da eternidade."


Cláudia Capela, in Tlön - Revista Literária Independente, N.º 5, fevereiro de 2021, p. 115. 

Friday, March 5, 2021

O LEME

 




"Falo da raiz do homem
porque é a plenitude do todo

Ainda que lhe cortem os ramos
ou mesmo o caule, 
rebentos novos lhe sorrirão
em tempo oportuno

Falo da alma
porque é o muito do todo

Ela toma o leme da casa, 
liberta ou condensa a essência."


Castílio Nhansue, in Tlön - Revista Literária Independente, 5, fevereiro de 2021, p. 97. 



Thursday, March 4, 2021

QUOD SAEVISSIMUS LUPUS

 



"Ó virgem Igreja, é imperioso chorar, 
pois o lobo ferocíssimo
teus filhos arrebatou de teu redor. 
Ó maldita serpente astuciosa!
Mas quão precioso é o sangue do Salvador, 
que no estandarte do Rei
a Igreja desposou
e dela deseja filhos."


Hildegard von Bingen, Flor Brilhante, introd. e trad. Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 177. 

Wednesday, March 3, 2021

IN PROGENIE SUA

 



"Quando de vergonha ruborizam os infelizes em sua progénie, 
progredindo na peregrinação do pecado,
tu em voz alta os chamas, 
desde modo elevas os homens
da perniciosa queda."

Hildegard von Bingen, Flor Brilhante, introd. e trad. Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 83. 

Tuesday, March 2, 2021

NA TARDE

 



"Não há lira ou alaúde na tarde calma, 
rumor dorido de folhas quando a brisa passa, 
som de água indo sobre leitos de pedra
nesta sede saciada de distância. 
Nem opressão que no peito doa, 
profunda como a da linguagem mística, 
terna união no silêncio; pois o drama
conhece-o só nos lidos carateres
de outra vida até ela vinda."


Paulo Teixeira, "Túmulos de Heróis Antigos", in O Último Poeta Romano, Lisboa: Imprensa Nacional, 2020, p. 338. 

Monday, March 1, 2021

ESPINAL

 



"Mas o que era o amor? Um vento que sussurra entre as rosas? Não, uma fosforescência amarelada no sangue. O amor era uma música de um fervor infernal, que pode fazer dançar o coração dos velhos. Era como a margarida que se abre totalmente com o aproximar da noite, era como uma anémona que se fecha ao mais ténue sopre e morre quando é tocada."


Knut Hamsun, Victoria, trad. Carlos Aboim de Brito, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2010, p. 31.