Saturday, December 31, 2016

CODA



"
4

Enfim! Oh, que bela letra,
Que a qualquer cruz dá alívio!
Quando furada é a pedra, 
Corre, enfim, bálsamo vivo. 
Ouve, pois, meu coração:
O enfim vem, queiras ou não!"


Benjamin Schmolck, in O Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 23. 

DEGRAUS


"
3

Enfim, Canaã defronte, 
Depois do jugo de Egipto.
Enfim, Tabor, e já o Monte
Das Oliveiras vencido. 
Enfim pode entrar Jacob 
Onde não há Esaú."


Benjamin Schmolck, in O Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, pp. 21; 23. 

O QUE É MELHOR É O FIM


"1

Enfim, enfim, já é tempo
De às aflições um fim dar. 
Enfim, acaba o tormento, 
Enfim se vão dor, pesar, 
Enfim, dos males a pedra
Em ouro será convertida.

2

Enfim, há rosas a abrir, 
Enfim, ermos se abrirão, 
Enfim, para a pátria rever
Já se prepara o bordão. 
Enfim, do pranto a semente
Dará fruto, alegremente."


Benjamin Schmolck, in O Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 21. 

TAREFA



"O mundo visível. Construí-lo a partir da luz e das trevas. Ou destrui-lo na luz e nas trevas. É essa a tarefa, pois o mundo visível, que consideramos uma unidade, é construído na forma mais agradável a partir destes dois princípios."


Goethe, "Physikalische Vorträge", in Alexander Roob, Alquimia & Misticismo, trad. Teresa Curvelo, Taschen, 2015, p. 231. 

Friday, December 30, 2016

SÃO CORAÇÃO


"E foi aqui que o cronista diz ter-se iniciado o romance com a rainha. Andeiro alojou-se no castelo de Estremoz, nos aposentos onde Fernando e Leonor costumavam dormir a sesta, para que o rei pudesse com ele falar de dia sem que ninguém notasse a sua presença. Leonor assistia a estas conversas e, às vezes, ficava a sós com o galego, se acontecia Fernando sair, depois de descansar. O rei não desconfiava desses encontros, pois era «homem de são coração», mas o hábito e o gosto por estas tertúlias fez nascer ente o diplomata e a rainha uma afeição grande."

Isabel de Pina Baleiras, Uma Rainha Inesperada - Leonor Teles, Lisboa: Temas e Debates, 2013, p. 210. 

FABRICANTE


"O que me faz diferente
(além, está bem de ver, do exoesqueleto)
é talvez não ter alma interior;
uma coisa qualquer sobrevivente
que me faça durar, ainda que seja
na forma inferior de ectoplasma
ou no fátuo rumor da borboleta. 
É breve a vida; mal sabemos
fiar um fio, e conceber a seda, 
já se gastou a areia na ampulheta;
a frágil obra que fizemos, fica
aberta ao vento, à chuva, ao descuidado
ofício da coruja e da serpente. 
E como é escura a noite, só rasgada
pelo grito tenaz dos predadores; 
ou, quando iluminada, é pelo fogo
que devasta os casulos e envenena
o jovem mel guardado nas colmeias. 
À falta de melhor, antes prefiro
que ande lá fora, a pouca e perecível
alma que tenho; e se misture
tão bem a cada instante, que apeteça 
vivê-lo eternamente; porque o tempo
é, como eu, um mero fabricante
de véus e teias que os humanos rasgam
sem sentir como nelas estão presos."


António Franco Alexandre, Aracne, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 36-37. 

Thursday, December 29, 2016

GRECO



" - Amanhã! - respondi eu. - Amanhã! - exclamou Mafalda - Pois sim, meu Afonso, amanhã... Temos lá as nossas árvores... a nossa infância...
- A nossa felicidade sem fim... - atalhei eu."

Camilo Castelo Branco, Amor de Salvação, Porto: Livraria Chadron, s.d., p. 208. 

Sunday, December 25, 2016

LEITURAS


"Velejei num barquinho rio acima, e aproei à ribanceira, donde se avistava o arruinado e já em parte desfigurado conventinho de extintos franciscanos. À sombra dum arco manuelino, que havia sido a portaria do arrasado templo, meditei nos frades, no convento, no refúgio dos desamparados do mundo, nas lápides profanadas que mãos ímpias arrancaram de sobre as cinzas de muitos corações, extintos com o segredo de sublimes torturas. Meditei, e maldisse a civilização, que fechara os áditos da paz quando a guerra sacudia as suas serpes mais inexorável; maldisse a ilustração, que aluira a enfermaria dos empestados do vício, quando a peste ardia mais devoradora. A minha angústia era imensa, porque não podia dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho do melhor mundo." 

Camilo Castelo Branco, Amor de Salvação, Porto: Livraria Chadron, s.d., p. 76. 

Saturday, December 24, 2016

INSTANTÂNEO



"Chegando ao presépio, enfim, 
caem de rojo, os pastores,
vendo o herdeiro d'Eloim
que veste os lírios e as flores. 

Dão-lhe pombas gloriosas, 
meigos, tenros animais.
- Mas, vendo coisas radiosas, 
casos vindouros, fatais...

Abria o deus das crianças
uns olhos profundos, graves, 
no meio das pombas mansas
- nas palpitações das aves."


Gomes Leal, História de Jesus, ed. José Carlos Seabra Pereira, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 66. 

EM BOUÇAS


"Estava claro o céu, tépido o ar, e as bouças e montes floridos. O mês era dezembro, de 1863, em véspera de Natal. 
A gente das cidades pergunta-me em que país do mundo florescem, em dezembro, bouças e montados."

Camilo Castelo Branco, Amor de Salvação, Porto: Livraria Chadron, s.d., p. 1. 

FIRMAMENTO



"Le firmament dans son immense ornement raconte la gloire de Dieu."


Paul Claudel, Bréviaire Poétique, Paris: Gallimard, 1999, p. 67. 

Friday, December 23, 2016

DIÁFANO



"A gente não sabe ainda bem como este mundo está feito."


Camilo Castelo Branco, Amor de Salvação, Porto: Livraria Chadron, s.d., p. 41. 

Thursday, December 22, 2016

ONDE A LUZ



"Onde a luz o tesouro onde o secreto alento
Consegue romper das complicações da noite
Ali
Um pássaro cruza sem dificuldade
O ar para nós tão pesado"


Alberto de Lacerda, Oferenda - I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 386. 

Wednesday, December 21, 2016

ANIVERSÁRIO


"O absurdo máximo é viver e morrer! Ser e não ser! A vida é um sim que significa - não! O homem exclama: sim! Os ecos respondem-lhe: não!"

Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, p. 29. 

Tuesday, December 20, 2016

APODERAR-SE



"Toda a forma apodera-se, só por uns instantes, do mesmo ser; prossegue através de cada um e, depois, abandona-o. A minha alma não se agarra a nenhum pensamento. Atira cada pensamento para o vento do mar alto, que o toma; nunca o levarás por ti mesmo aos céus."

André Gide, Os Frutos da Terra, trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Porto: Âmbar, 2007, p. 56. 

Monday, December 19, 2016

ESCAPA



"Mobilidade das vagas, tornaste meu pensamento tão cambaleante! Não edificarás nada sobre a onda. Ela escapa a qualquer peso."

André Gide, Os Frutos da Terra, trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Porto: Âmbar, 2007, p. 56. 

Sunday, December 18, 2016

AS PERTURBAÇÕES


"Porque às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência do nosso corpo, semelhante para nós a um vaso onde estivesse encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as nossas alegrias passadas, todas as nossas dores estão permanentemente na nossa posse. Talvez seja inexato acreditar que elas se escapam ou que regressam. Em todo o caso, se permanecem em nós, ficam a maioria das vezes confinadas a um domínio desconhecido onde não nos servem para nada e onde, até. as mais usuais são recalcadas por recordações de ordem diferente e que excluem todas a simultaneidade com elas na consciência. Mas, se o quadro de sensações onde se conservam for retomado, têm por sua aquele mesmo poder de expulsar tudo o que com elas for incompatível, de instalar em nós, sozinho, o eu que as viveu."

 Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - Sodoma e Gomorra, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, p. 165. 

Saturday, December 17, 2016

MATA



"Sob a mata de cabelo, 
tua fronte:
                caramanchão,
claridade entre ramos.
Penso em jardins:
ser vento que te renova memórias, 
ser sol que abra caminhos em tua espessura."


Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 119. 

Friday, December 16, 2016

RÓSEO



"Há estranhas possibilidades em cada homem. O presente estaria cheio de todos os futuros, se já o passado não projectasse sobre ele uma história. Mas, infelizmente, um único passado propõe um único futuro - projeta-o diante de nós como um ponto infinito sobre o espaço."

André Gide, Os Frutos da Terra, trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Porto: Âmbar, 2007, p. 23. 

Thursday, December 15, 2016

ANÁLISE


"
91.
1 Eles disseram-lhe:
2 Diz-nos quem és. 
3 para que acreditemos em ti. 
4 Ele disse-lhes:
5 Analisais a face do céu e da terra, 
6 mas o que está diante de vós, 
7 não o conheceis
8 e não sabeis analisar o momento presente."


O Evangelho Segundo Tomé, trad. Cristina Proença, rev. José Augusto Martins Ramos, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 2001, p. 79. 

Wednesday, December 14, 2016

SUPERFÍCIES CIDADÃS



"Sobre superfícies cidadãs, 
desfolhadas folhas de dias, 
sobre muros desolados, traças
signos carvões, números de chamas. 
Escrita indelével do incêndio, 
de testamentos e profecias
volvidos taciturnos esplendores. 
Encarnações, desencarnações:
tua pintura é o manto de Verónica
do Cristo sem rosto, chamado tempo."

Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 85. 

Tuesday, December 13, 2016

BLINDNESS



"                  Entre o antes e depois, 
parêntesis de pedra, 
serei, por um instante sem regresso, 
primeiro homem, e serei o último. 
E, ao dizê-lo, o instante
- intangível, impalpável - 
sob os pés se abre, 
e sobre mim se encerra, o puro tempo."

Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 67. 

Monday, December 12, 2016

GOZO



"Que é o gozo, o prazer? fumo d'incenso
Que embriaga um momento, e se evapora;
Que é o saber, a ciência? espaço imenso
Em que a verdade mal reluz na aurora."


Soares de Passos, Poesias, 11ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1967, p. 178. 

Saturday, December 10, 2016

BELLE ÉPOQUE



"No entanto, Oriane, ora veja justamente o seu cunhado Palamède, de quem estava a falar; não há amante que tenha a aspiração a ser chorada como foi aquela pobre senhora de Charlus. 
- Ah - respondeu a duquesa -, permita-me Vossa Alteza que não esteja totalmente de acordo. Nem toda a gente gosta de ser chorada da mesma maneira, cada um tem as suas preferências. 
- Enfim, ele dedicou-lhe um verdadeiro culto desde que ela morreu. É verdade que às vezes fazemos pelos mortos coisas que não faríamos pelos vivos. 
- Primeiro - respondeu a senhora de Guermantes num tom sonhador que contrastava com a sua intenção zombeteira -, vamos ao enterro deles, coisa que nunca fizemos com os vivos!"


 Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - O Lado de Guermantes, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, pp. 508-509. 

Friday, December 9, 2016

PESAR SECRETO



"Tudo é triste! e o seio triste
Comprime-se a este aspecto;
Não sei que pesar secreto
Nos enluta o coração. 
E que nos lembra o passado
Cheio de viço e frescura, 
E o presente sem verdura
Como a folhagem do chão."


Soares de Passos, Poesias, 11ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1967, p. 9. 

Thursday, December 8, 2016

AO DIVINO CESARINY



"Apresentar-te aos deuses e deixar-te 
entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te    perder-te    desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo  amo  amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio     terceiro acto

pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato"


Mário Cesariny, Pena Capital, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 158. 

Wednesday, December 7, 2016

PENDULAR



"Estava emparedado no âmago de um sonho. 
Não tinham seus muros peso
nem consistência: seu vazio era seu peso.
Os muros eram horas, e as horas
fixas e acumulada tristeza. 
O tempo de essas horas não era tempo."


Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p.  64. 

Monday, December 5, 2016

AO DIVINO FERREIRA GULLAR



"A morte não tem avenidas iluminadas
não tem caixas de som atordoantes
tráfego engarrafado
            não tem praias
            não tem bundas
não tem telefonemas que não vêm nunca

         a morte
         não tem culpas
         nem remorsos
         nem perdas
                           não tem
lembranças doídas de mortos
nem festas de aniversário

                                        a morte
não tem falta de sentido
não tem vontade de morrer
não tem desejos
          aflições
          o vazio vazio da vida

a morte não tem falta de nada
não tem nada
é nada
           a paz do nada"

Ferreira Gullar, Em Alguma Parte Alguma, Lisboa: Ulisseia/Babel, 2010, p. 60. 

Sunday, December 4, 2016

VARIÁVEL



"A nossa alma é paisagem, céu e terra, mas uma paisagem variável. Ora é um píncaro desnudo, com um lobo a uivar à lua; ora é um vale sombrio, com águas estagnadas ou geladas; ora é um deserto sem oásis, como é um oásis sem deserto. O vento comeu-lhe a areia toda... Deixou-lhe uma fonte quimérica, entre quiméricas palmeiras."


Teixeira de Pascoaes, Uma Fábula (O advogado e o poeta), Porto: Brasília Editora, 1978, p. 96. 

Saturday, December 3, 2016

HORAS


"Idealizar as horas é a ambição das vítimas sacrificadas a essas deusas que bailam, em volta do sol. Se as horas doiradas e alígeras nos produzem uma espécie de embriaguez, as horas mortas de luar amortalham-nos em lívido silêncio. Imitamos o nosso espectro, essa ideia imaginada, ou feita imagem que, em vida, temos nós, na morte."

Teixeira de Pascoaes, Uma Fábula (O advogado e o poeta), Porto: Brasília Editora, 1978, p. 9. 

Thursday, December 1, 2016

MÁXIMA


"Os povos felizes não têm história? Que sorte para as crianças que não têm de aprender e para os homens que não perdem tempo a esquecê-la!"

André Brun, Cada vez pior, 3ª ed., Lisboa: Casa do Livro Editora, 1941, p. 140. 

Wednesday, November 30, 2016

PUNHAIS



"Solta-se o vento e, cerrado o arvoredo, 
das nuvens a nação se dispersa. 

É frágil o real, e tão inconstante, 
infatigável, também, toda a lei sua de câmbio:

gira a roda das aparências 
no eixo da imobilidade do tempo.

A luz desenha tudo e tudo incendeia, 
crava no mar punhais que são teias, 

Faz do mundo pira de reflexos:
e nós dele só centelha. 

Não é luz de Plotino, é luz terrestre, 
luz daqui, mas luz de inteligência. 

E reconcilia-se com o exílio:
pátria é o seu vazio, errante asilo."


Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 19. 

Tuesday, November 29, 2016

ARMIDA



"Entre aquele verde solene as flores eram poucas e finos os perfumes. Não o fabuloso jardim de Armida, mas um bosque enfeitiçado onde talvez os estudantes se transformem em árvores; primeiro perdem a voz, depois lentamente enraízam-se no solo, os braços desenvolvem-se em ramos, os dedos em folhas, a cabeça enfia-se no tronco como faz a tartaruga na carapaça. Cada um pode escolher a essência em que se transformar, cânfora, magnólia, cipreste chinês. O dia depois do bosque é apenas mais denso e a casca sangrará naquela árvore na qual o estudante solitário gravará um coração trespassado. Mas ninguém grava o coração nos troncos de árvore do jardim encantado."


Cesare Brandi, Teoria do Restauro, trad. Cristina Prats, José Delgado Rodrigues. José Aguiar, Nuno Proença, Amadora: Edições Orion, 2006, p. 190. 

Monday, November 28, 2016

MIRÍADES



"Nós vivemos miríades de segundos e, no entanto, não há nunca mais do que um, um só que põe em ebulição todo o nosso mundo interior; o segundo em que (Stendhal descreveu-o) a flor interna, já impregnada de todos os seus sucos, realiza, como que num relâmpago, a sua cristalização - segundo mágico, semelhante a esse da procriação e, como ele, oculto no âmago do próprio corpo: invisível, intangível, imperceptível - mistério que se vive uma só vez."


Stefan Zweig, Confusão de Sentimentos (Notas íntimas do Professor R. de D.), 10ª ed., trad. Alice Ogando, Porto: Civilização Editora, 1969, p. 9. 

Sunday, November 27, 2016

MÁSCARAS



"Nada toca tão profundamente o espírito de um rapaz do que uma dor grave e viril: o Pensador de Miguel Ângelo, olhando fixamente o seu próprio abismo, a boda de Beethoven, amargamente concentrada - essas máscaras trágicas do sofrimento do universo, comovem muito mais fortemente uma sensibilidade, que não está formada, do que a melodia argêntea de Mozart ou a luz rica que envolve as figuras de Leonardo. 
A beleza está nela própria, a juventude não precisa de idealizar; no excesso das suas forças vivas, ela aspira ao trágico e consente voluntariamente que a melancolia sugue docemente o seu sangue ainda moço. Daí vem que a mocidade está eternamente preparada para a desgraça e estendendo, em espírito, a mão fraternal a cada amargura."


Stefan Zweig, Confusão de Sentimentos (Notas íntimas do Professor R. de D.), 10ª ed., trad. Alice Ogando, Porto: Civilização Editora, 1969, pp. 78-79. 

Saturday, November 26, 2016

REFLEXÃO


"- Assim é, amigo - admitiu o monstro. - Mas que hei de eu fazer? São duas desgraças que me afligem: uma é a ruína da minha casa, a outra é ter de separar o coração de um amigo, como tu. Isto é próprio daqueles que já estão feridos pelo destino. E disse-se:

92. Qualquer que seja o meu saber, o teu é duas vezes maior; sem amante e sem marido, para que estás a olhar, mulher nua?"


Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro IV, p. 301. 

Friday, November 25, 2016

A EXPULSÃO


"Fomos expulsos do Paraíso, mas o Paraíso não foi destruído por isso. Esta expulsão é de algum modo uma possibilidade, pois se não tivéssemos sido expulsos, o Paraíso deveria ter sido destruído."

Franz Kafka, Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2002, p. 167. 

Thursday, November 24, 2016

ARREFECE




"Foi-se o Verão com todas as suas rosas
O sol, as flores frondosas e o fragor, 
A chuva e o calor que fortalece
Até Outono falece. 

Sim, até o fresco Outono se vai
E vem o Inverno que mais arrefece;
Cada dia mais frio o gelo cai
E o último verdor esvanece."


Christina Rossetti, O Mercado dos Duendes e outros poemas, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 93. 

Wednesday, November 23, 2016

UTERINO



"Então a mulher disse: 
- Quem come todos os dias destes frutos semelhantes à ambrósia, terá certamente um coração de ambrósia. Portanto, se tens alguma estima por mim, por ser tua mulher, proporciona-me o coração desse macaco, para que, comendo-o, fique isenta de velhice e de morte e goze contigo de muito prazer.
- Não digas isso, querida - respondeu o monstro - porque esse macaco é como um irmão para mim; e além disso, matá-lo não é possível. Esquece, pois, esse vão capricho, pois disse-se: 

5. O homem é filho, por um lado, da sua palavra, e pelo outro, da sua mãe; o parentesco que nasce da palavra está, segundo dizem, acima do que se tenha com um irmão uterino."


Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro IV, pp. 264-265. 

Tuesday, November 22, 2016

ATROZ


"106. Se cortando árvores, matando animais e cometendo cruéis atrocidades se vai para o céu, quem irá para o inferno?"

Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro III, p. 239. 

Sunday, November 20, 2016

O MUNDO



"O mundo! o mundo! - E que me importa o mundo?
- Velho invejoso, a resmungar baixinho!
Nada perturba a paz serena e doce
Que as rolas gozam no seu casto ninho."

Casimiro de Abreu, As Primaveras, 6ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1945, p. 106. 

Saturday, November 19, 2016

PRO PAUPERE



"Com efeito, vemos mulheres mal feitas e feias em todos os aspetos
serem adoradas e gozar de grande prestígio.
E os homens riem-se uns dos outros e dão conselhos 
para aplacar Vénus, porque estão atingidos
por uma paixão vergonhosa e os desgraçados
quase nunca percebem as suas próprias e enormes desgraças. 
A preta é "cor de mel", a suja e fedorenta é "simples", 
a esverdeada é uma "estátua de Palas", a seca e nervosa é uma "gazela", 
a baixota e anã é uma das Graças, um "puro grão de sal", 
a corpulenta e matulona é um "portento", "cheia de majestade", 
a gaga, incapaz de falar, diz-se que "ceceia", a muda é "recatada", 
mas, se é impetuosa, de mau feitio e desagradável, torna-se uma "tocha ardente", 
a que tem lábios grossos é "toda ela um beijo", 
aquela que, de tão magra, a custo se mantém viva
é um "terno amorzinho", 
a meio-morta de tosse é "delicada", 
se for cheiinha e mamalhuda, é "Ceres em pessoa, 
depois de dar o peito a Baco", 
a de nariz achatado é uma "Silena" e uma "sátira", 
a de lábios grossos é um "ninho de beijos". 
E seria um nunca acabar se eu quisesse continuar por aí fora. 
Mas seja qual for a designação honrosa que queiras dar
àquela que emana sensualidade de todo o seu corpo, 
a verdade é que há mais mulheres no mundo, 
a verdade é que vivemos antes sem esta, 
a verdade é que faz as mesmas coisas que a feia (e sabemos que as faz)
e ela própria se conspurca a si mesma, a infeliz, com cheiros nauseabundos, 
a ponto de as servas fugirem para longe e rirem às escondidas."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, IV, 1153-1180,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 257. 

Friday, November 18, 2016

EPICURIA



"Deuses de um céu que rosas vãs me atira!
Não estais num além que brilha nas estrelas. 
Reais nas horas, sois a maravilha
Que reverdece as nossas folhas secas.

A vossa dispersão, se recolhida
Num deus compacto de pupilas cegas
Rejeito, ó Numes frequentadores da vida
Nos deleites, nos risos, nas adegas. 

Para noites de alma dever à eternidade
É breve a vida. Melhor à claridade
Me dou de um afável anjo transitivo. 

E mais não sei que plenilúnio empreste
Ao sangue, instantâneos deuses tal como este
Soneto honestamente inconclusivo."


Natália Correia, "Sonetos Românticos", in Antologia Poética, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 258-259. 

Thursday, November 17, 2016

AO ENCONTRO



"Mas quando pela quarta vez se lançou como um deus, 
então, ó Pátroclo, apareceu o termo da tua vida. 
Pois ao teu encontro em potente combate veio Febo, 
deus terrível. E Pátroclo não o viu caminhando entre a multidão, 
pois vinha ao seu encontro envolto em denso nevoeiro."


Homero, Ilíada, XVI, 786-790, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Cotovia, 2009 [reimp.], p. 342. 

Wednesday, November 16, 2016

AITIAI



"Sabia que o amor é causado apenas pelo enchimento dos átomos que desejam juntar-se a outros átomos. Sabia que a tristeza causada pela morte não passa das piores ilusões terrestres, pois que a morta não deixara de ser infeliz e de sofrer, enquanto aquele que a chorava se afligia com os seus próprios males e pensava tenebrosamente na sua própria morte. Sabia que não fica de nós qualquer simulacro para verter as lágrimas sobre o próprio cadáver, estendido aos nossos pés. Mas, conhecendo exatamente a tristeza e a morte, e que são vãs imagens quando contempladas do espaço calmo onde temos de nos fechar, continuou a chorar, e a desejar o amor, e a temer a morte."

Marcel Schwob, Vidas Imaginárias, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, s.d., p. 44. 

Tuesday, November 15, 2016

REBORDO




"Colocou ainda a grande força do rio Oceano, 
à volta do último rebordo do escudo bem forjado."


Homero, Ilíada, XVIII, 606-607, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Cotovia, 2009 [reimp.], p. 385. 

Monday, November 14, 2016

SELENITAS



"Envelhecendo, os Lunares não morrem (no sentido habitual da palavra) acabando por diluir-se em fumo, transformados em ar."

Luciano, História Verdadeira, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: & etc, 1981, p. 39. 

Sunday, November 13, 2016

LIQUIDI COLOR AUREUS IGNIS



"É também por esta razão que aquela veloz cor dourada
de fogo líquido voa para a terra, por ser necessário 
que as próprias nuvens tenham um grande número de átomos de fogo."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, VI, 205-207,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 353. 

Saturday, November 12, 2016

BRECHA



"Por conseguinte, os homens tremem pelas cidades, com um duplo pânico: 
receiam os tectos por cima, receiam as cavernas por baixo, 
não vá a natureza da terra dissolver-se subitamente
ou abrir-se, rasgando lentamente as suas fauces e, em confusão, 
querer preenchê-las com as suas próprias ruínas."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, VI, 596-600,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, pp. 371-372. 

Friday, November 11, 2016

VIVÊNCIAS



"Os muros gretados são muito mais belos
que os muros lisos."



Mário Quintana, "A Vaca e o Hipogrifo", in Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 548.