Monday, December 31, 2012

END OF THIS JOURNEY



"Decidido assim no meu coração, atravessei o mar."

Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, trad. M. de Campos, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 106.

ÚLTIMOS CONSELHOS


"Gozar, y no morirse de contento,
sufrir, y no vencerse en el sollozo:
Oh, qué ejemplar severidad del gozo
y qué serenidad del sufrimiento!

Dar a la sombra el estremecimiento,
si a la luz el brocal del alvorozo,
y llorar tierra adentro como el pozo,
siendo aire un sencillo monumento.

Anda que te andarás, ir por la pena,
pena adelante, a penas y alegrías
sin demonstrar fragilidad ni un tanto.

Oh la luz de mis ojos qué serena!:
qué agraciado en su centro encontrarías
el desgraciado alrededor del llanto!"
Miguel Hernández, El Rayo Que No Cesa, Madrid: Espasa, 2012, pp. 36-37.

MY CANDLE BURNED ALONE


"A minha vela ardia sozinha num enorme vale.
Os raios da noite imensa convergiam sobre ela,
Até que o vento soprou.
Então os raios da noite imensa
Convergiram sobre a sua imagem,
Até que o vento soprou."
 
Wallace Stevens, Harmónio, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Relógio D'Água, 2006. p. 121.

DO PÔR DO SOL



"Sangue sagrado por mim derramado
No verde madeiro, no monte Calvário;
O sol escurece e o mundo sem luz,
Lá pela tarde suspira Jesus.
Meu pai amoroso, em grande amargura,
Desconjuntado, vai para a sepultura.
As pedras se abrem de sentimento,
Em ver Jesus em tanto tormento."
 
Orações de Ligares recolhidas por Guerra Junqueiro, ed. Maria Aliete Galhoz, Porto: Campo das Letras, 2001, p. 125.

RIR


"- Escuta, meu valente, sabes histórias?
- Histórias! - respondeu o cego. - Há alguns dias, contávamos a história da cabra encantada ao voiévodo de Staritza: essa cabra tornou-se por sua vez voiévoda, o que fez com que ele nos pusesse na rua, depois de nos fazer espancar. Nunca contaremos mais histórias a ninguém."
  Alexei Tolstoi, O Terrível, trad. Alves Ramos, Lisboa: Amigos do Livro, Editores, s.d., p. 193.

DESTINO EM CUMPRIMENTO


"Num destino já cumprido
como existência provecta
sempre na corda arredia
sempre na curva da recta
sempre à beira do patíbulo
sempre ao rés tão da sarjeta
palavras há que - prostradas -
já não queimam já não servem:
apenas são pó das margens
de tanto serem o trilho
de repetidas passagens.
Com suas luzes remotas
a definharem no brilho
são como rombas carroças
a transportarem detritos."
João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, p. 98.

Sunday, December 30, 2012

NO PARAÍSO (3)


"Parou um instante, o olhar cismático, sem foco:
- ... Uma vez, num céu da Andaluzia, vi num jardim mourisco dois amantes. Senti o cio encrespar-me as asas largas e desci pròs ver de perto na luz de ouro... Era na paz de uma cidade morta. Pousei num dos ciprestes do jardim. Tinha uma taça de alabastro esverdinhada, e uma água glauca que cheirava a febre. Era junto da taça que se amavam, sob a garra do sol, loucos de raiva. Fiquei queda a aspirá-los muitas horas. Que corpos fortes! Eu achava-os lindos. Dormi na torre da igreja, numa gárgula, e de manhã voltei pròs ver ainda. E assim dias e dias... Uma vez demorei-me, vim mais tarde, e encontrei-os imóveis e enlaçados. Tanto tempo os vi assim e tão imóveis, que pensei: estão talvez mais que adormecidos... Desci. Bati-lhes com as asas nos cabelos. Cravei as garras devagar nos seios dela... Estavam mortos! Julguei então enlouquecer de gula. Devorei, devorei, até à noite... Lembro-me que sorvi os olhos dela. Estavam secos de amor. Eram cinzentos...
- Que horror! O que a senhora fez!...
A águia ergueu as asas num espanto e tornou a fechá-las lentamente. Depois, com grande enfado, foi dizendo:
- Que absurdos macacos são os homens! São os animais mais torpes que eu conheço! Como tudo o que vive, como todos, só pensam em gozar, gozar a vida... e com esta obsessão a estorcegá-los, prendem-se os braços, castram os desejos, adoentam-se, torcem-se... progridem. Querem morder, morder bem fundo... e beijam-se; sentem calor e andam ao sol vestidos; amordaçam o instinto, os imbecis!... Encerram o desejo nas alcovas, onde não entre sol, sombra de lua..."
António Patrício, "Diálogo com Uma Águia", in Serão Inquieto, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1995, pp. 18-19.

NO PARAÍSO (2)


"Em nós se manifesta não somente a razão, mas também a loucura dos milénios. É perigoso ser herdeiro.
Lutamos ainda passo a passo contra o gigante Acaso; e em toda a humanidade reinava ainda, até ao dia de hoje, o absurdo e a falta de senso.
Que o vosso espírito e a vossa virtude sirvam de sentido da terra, meus irmãos: e que por vosso intermédio todos os valores das coisas se fixem de novo! Essa a razão por que deveis ser combatentes! Essa a razão por que deveis ser criadores!
O corpo purifica-se pelo conhecimento; eleva-se fazendo tentativas conscientes; para aquele que procura o conhecimento todos os instintos se santificam, aquele que se eleva adquire uma alma alegre."
 
Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratrustra, trad. M. de Campos, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 74.

Saturday, December 29, 2012

NO PARAÍSO (1)



"Por deplumar arcángeles glaciales,
la nevada lilial de esbeltos dientes
es condenada al llanto de las fuentes
y al desconsuelo de los manantiales.

Por difundir su alma en los metales,
por dar fuego al hierro de sus orientes,
al dolor de los yunques inclementes
lo arrastran los herreros torrenciales.

Al doloroso trato de la espina,
al fatal desaliento de la rosa
y a la acción corrosiva de la muerte

arrojado me veo, y tanta ruina
no es otra desgracia ni otra cosa
que por quererte y sólo por quererte."
  Miguel Hernández, El Rayo Que No Cesa, Madrid: Espasa, 2012, p. 88.

Wednesday, December 26, 2012

A CONVERSÃO (2)


"Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer."
 
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Mar Novo", in Obra Poética I, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 300.

A CONVERSÃO (1)


"Por fim, foi preciso abrir o caixão de chumbo para se reconhecer o corpo. Mas este vinha tão desfigurado, que apenas se pôde conhecer pelo nariz, e não havia ninguém que fosse capaz de afirmar que aquele rosto e aquela figura, que exalava um odor pestilencial, era, ou fora, a formosíssima imperatriz. Nem o marquês de Lombay, que tinha de consignar a entrega do corpo, se atreveu a jurá-lo.  O que Francisco de Borja jurou foi que, segundo «diligência e cuidado» que se havia posto em trazer e guardar o corpo da imperatriz, tinha por certo «que era aquele, e que não podia ser outro». Os clérigos e os nobre presentes, como o cardeal de Burgos, o arcebispo de Granada, o marquês de Villena e o de Mondéjar, D. Fradique de Portugal, Rui Gomes da Silva, futuro príncipe de Éboli, apartaram-se da horrorosa visão. Menos o marquês de Lombay, que «pelo amor particular e reverência que sempre havia tido à imperatriz» - conta Sandoval - não conseguia afastar-se, «nem desviar os olhos daquela Senhora que pouco antes era tão formosa e estimada no mundo.»"
  Manuela Gonzaga, Imperatriz Isabel de Portugal, Lisboa: Bertrand Editora, 2012, p. 488.

DAS FONTES


"Não é abusivo dizer que o erotismo representa um momento elevado da civilização e que é uma das suas componentes determinantes. Para saber quão primitiva é uma comunidade ou até que ponto avançou no seu processo civilizador nada tão útil como perscrutar os seus segredos de alcova e averiguar como é que os seus membros fazem amor.
O erotismo não tem só a função positiva e enobrecedora de embelezar o prazer físico e abrir um amplo leque de sugestões e possibilidades que permitam aos seres humanos satisfazer os seus desejos e fantasias. É também uma atividade que traz à tona aqueles fantasmas escondidos na irracionalidade que são de índole destrutiva e mortífera."
 
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espetáculo, trad. Cristina Rodrigues e Artur Guerra, Lisboa: Quetzal, 2012, p. 107.

Tuesday, December 25, 2012

ACENDER



"Deixei enfim de pedir
Eternidade ao amor

Aceito o ritmo sem ritmo
Que há dentro desse ritmo
Que não se vê não se ouve
Mas eu sinto deslumbrado
Quando os teus olhos acendem
Os corredores da noite."
  Alberto de Lacerda, Oferenda I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 287.

Monday, December 24, 2012

CONSO(L)ADA


"O vasto rumor do mundo
é dezembro que se alastra
é canto velho    e o rotundo
sagrar a vinda do sol
abrir a zona das mágoas
o destilar do resumo
sentir a forma de faca
cortante em torno do escuro
bem dentro das muitas malhas
que ligam verbo e costumes
à fogueira das metáforas
que ligam por alcatruz
as mentiras da rotina
a verdade das viagens
que juntam silêncio e luz
ao respirar da campina
ao fervilhar da coragem
- rumor que se reproduz
desde o choro das resinas
à opulência das vagens."
  João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, p. 118.

Sunday, December 23, 2012

AS ERVAS


"Viazemski sorriu amargamente:
- Já têm suficiente medo de mim, não preciso da tua salicária, continua.
- Há a cabeça de Adão, que se recolhe nos pântanos; quando fores à caça, bebe um chá dela e nenhum urso te tocará. Há o ruibarbo; quando a arrancarmos da terra, geme como uma criança; trazendo-a ao pescoço, uma pessoa nunca se afoga.
- E é tudo?
- Há ainda o feto, aquele que tiver sorte de colher a sua flor, tornar-se-á o senhor de todos os tesouros; a João-e-Maria, aquele que a encontrar pode montar o primeiro sendeiro que apareça e bater o melhor cavalo.
- E uma erva que me faça amar? Não conheces?
O moleiro ficou um momento silencioso.
- Não conheço nenhuma, paizinho, não te zangues, Deus é testemunha de que não conheço nenhuma.
- E uma erva que me faça parar de amar, conheces?
- Também não conheço, príncipe, mas há a erva que destrói, quando a pomos em contacto com muralhas ou com portas de ferro, faz abater tudo.
- Acaba com as tuas ervas! - gritou, com impaciência, Viazemski, fixando no velho o seu olhar sombrio."
 
Alexei Tolstoi, Ivan, O Terrível, trad. Alves Ramos, Lisboa: Amigos do Livro, Editores, s.d., pp. 33-34.

Saturday, December 22, 2012

O AMIGO


"Uma canção a Baco não cantada
apenas ouvida
na toada da cigarra
de uma mata onde o azul desce
até à terra.

Oliveira cai a noite afastam-
se as sombras
para uma conversa com candeias e luzes o velho
sai da taberna
há dois mil anos Kavafis

Que não te viu a mão sobre os olhos
a estrofe de ombros a tremer
ouviu-te
negra a taça ática
com a imagem vermelha de Eufrónio."
Johannes Bobrowski, "Sinais de Tempo", in Como um respirar - antologia poética, trad. João Barrento, Lisboa: Cotovia, 1990, p. 67.

Friday, December 21, 2012

ANIVERSÁRIO / FIM DO MUNDO



"Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes
Para não pensar em coisa nenhuma,
Para nem me sentir viver,
Para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido."
 
Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, recolha, transcr. e notas de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 134.

Thursday, December 20, 2012

VAGUEIO E CONVIDO A MINHA ALMA


"Celebro-me e canto-me,
E aquilo que assumo tu deves assumir,
Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.

Vagueio e convido a minha alma,
À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.
A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar.
Aqui nascido de pais aqui nascidos de outros pais aqui nascidos, e dos seus
pais também,
Eu, ao trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,
Esperando que só a morte me faça parar.

Suspensos os credores e as escolas,
Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,
Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,
Natureza sem obstáculos com a sua energia original."
  Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo, trad. José Agostinho Baptista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p.9.

Wednesday, December 19, 2012

PASMO AGUADO


"O que farei na vida - o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra,
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?

(De que revolta ou que país fadado?)
- Pobre lisonja, a gaze que me encerra...
Imaginária e pertinaz, desferra
Que força mágica o meu pasmo aguado?

A escada é suspensa e é perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa, os corrimões partidos...

- Taparam com rodilhas o meu norte,
- As formigas cobriram minha Sorte,
- Morreram-me meninos nos sentidos..."
  Mário de Sá-Carneiro, Poesia, Lisboa: Círculo de Leitores, 1990, p. 224.

Tuesday, December 18, 2012

DO CAMINHO


"Que sei eu daquele caminho
onde o olhar não decifra?
Que sei eu da água escura
tornada espelho da vida?
Que sei eu deste silêncio
quando é bandeira de luto?
Que sei eu da lua grande
sem coração que a habite?

Feliz o passo encetado
neste esplendor do agir
sem pensar muito no caso
dum louco que quis saber
dum cego que quis fugir
para um astro iluminado. 

Feliz o passo acertado
pelas certezas bem juntas
a um dia ensolarado
sem a névoa das perguntas."
   João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, p. 44.

Monday, December 17, 2012

ALGUNS INSTANTES


"A eternidade é a sensação de alguns intantes...
Às vezes é num grande perigo que a sentimos: certos segundos lúcidos da agonia em que se faz o supremo exame de consciência; antes de uma operação grave, quando cada gesto tem um fervor de despedida; nos últimos minutos de um condenado à morte.
Outras vezes, é num grande gozo que a entrevemos: no espasmo da cópula; na aura do ataque epiléptico (que Dostoïevski diviniza); nos primeiros momentos de admiração por uma obra-prima; na vertigem da criação subconsciente; e finalmente os místicos, na absorção em Deus, ou, segundo a expressão de Dante, quando «partem do século»."

António Patrício, "Words...", in Serão Inquieto, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 123.

Sunday, December 16, 2012

LÍNGUA DAS ASAS




" - Em que língua falou? Foi em hebraico?
- Foi na língua das asas que Ele o disse. Não lha posso ensinar, já não me lembro. Quando me engaiolaram, esqueci-a. Mas que impressão lhe faz o meu segredo? Se os homens o soubessem, seria Ele na verdade o Redentor...
- Sim, sim. É bem justo o que me grasna. Shelley tê-lo-ia amado como irmão, e Nietzsche, o próprio Nietzsche...
- Bem sei. Esse afirmou com pompa, lá para o Norte, que Ele decerto se teria refractado se tão cedo o não crucificassem. Foi minha mãe que o disse a Zaratrustra. Zaratrustra ouviu mal, não disse tudo. A verdade é assim, como eu lha conto. Parece que os homens riram do filósofo, acharam tudo isso uma tolice...
- Acharam...
- E afinal esse Hebreu crucificado, no instante supremo de tortura, quando p'ra além das nuvens o esqueciam, chamava só por Pã, o grande Pã! Se os homens soubessem isto e o entendessem, teria o grande Pã ressuscitado. Seriam brancas estas pobres asas.
- Brancas? Porquê?
- Durante séculos tivemos asas brancas, todas nós, águias da minha estirpe.
Foi só depois que Pã morreu que elas ficaram pretas, como luto. Quem se lembra de Pã por estes tempos?...
- Os que sabem amar, os que ainda amam.
- Os que sabem amar!... Esse Hebreu mesmo só conheceu o Amor no alto da cruz. Viveu como um fantasma transparente, com sonho nas artérias e nos olhos... Só escoado em sangue, no madeiro, viu nos olhos da minha avó sanguissedenta dois espelhos do Amor, irmão do sangue...
- Conhecem lá o amor aves de presa!"
 
António Patrício, "Diálogo com Uma Águia", in Serão Inquieto, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1995, pp. 15-16.

Friday, December 14, 2012

DEZEMBRO VIBRA OS VIDROS



"No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental partilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer"
 
Ruy Belo, Boca Bilingue, 4ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, pp. 57-58.

Tuesday, December 11, 2012

HOMENAGEM A OLIVEIRA E À SUA CAIXA (104º ANIVERSÁRIO)


"Caixa-forte aberta. Caixa d'água:
vazia. Caixa-branca: a evidência
de nada. Caixa-caixa: espantalho
ante o futuro e o vento."
  Eucanaã Ferraz, Cinemateca, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 99.

Sunday, December 9, 2012

MEMENTO


"Munidos
com a ficção
e não
com o amor
fomos expulsos
do Paraíso
com a ficção
sofremos o trabalho
e o parto"
 
Adília Lopes, "O Peixe na Água", in Caras Baratas - Antologia, selec. Elfriede Englemayer, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 108.

Saturday, December 8, 2012

"FOI HOJE A ENTERRAR"


"Mas qual a glória de morrer com uma lamparina de enferma alumiando os deuses mortos? «Nas coisas luminosas deste mundo, a minha alma é túmulo profundo onde dormem, sorrindo, os deuses mortos!» Ah pobre, pobre mulher! Quem pode tocar no ar a asa, cortar a erva no chão, prender a gota de água, que fazem o teu corpo disperso? Que os teus males não sejam tantos que a glória não desponte para ti!"
  Agustina Bessa-Luís, Florbela Espanca - a vida e a obra, Lisboa: Arcádia, 1979, p. 129.

Friday, December 7, 2012

O FUNDO DO CORAÇÃO


"- Foi-lhe dado ver esse espetáculo?
- Sim, na obscuridade da noite, quando tudo era silencioso e frio, eu vi o coração de Shirley.
- O fundo do coração dela? Julga que ela lho deixou ver?
- O fundo do seu coração.
- E como era ele?
- Como um tabernáculo, porque era santo; como a neve, porque era puro; como a chama, porque era ardente; como a morte, porque era forte."
Charlotte Brontë, Shirley, trad. Ana Ribeiro, Matosinhos: Book.it, 2011, p. 389.

Thursday, December 6, 2012

EM MEMÓRIA DE OSCAR NIEMEYER, DIVUS


"Eis casas-grandes de engenho,
horizontais, escancaradas,
onde se existe em extensão
e a alma todoaberta se espraia,

Não se sabe é se o arquiteto
as quis símbolos ou ginástica:
símbolos do que chamou Vinícius
«imensos limites da pátria»

ou ginástica, para ensinar
quem for viver naquelas salas
um deixar-se, um deixar viver
de alma arejada, não fanática."
 
João Cabral de Melo Neto, "A Brasília de Óscar Niemeyer", in Poesia Completa, Lisboa: IN-CM, 1986, p. 106.

Wednesday, December 5, 2012

ANJO AZUL


"Mas aos anjos, amava-os: a um, azul, sobre aquele papel de um dourado ardente, que verdadeiramente se consumia e crepitava num fogo contido. Ardente também, devido às minhas lágrimas constantes, que sempre brotavam dos meus olhos e tão poucas vezes podiam acalmar-se, que ferviam e se evaporavam solitariamente sobre o carmim ardente das minhas faces. E também amava o outro, o cor de morango, também alemão, de uma ilustração colorida para a poesia alemã: «Der Engel und der Grobian.» (Recordo as palavras: «im roten Erdbeerguss» - na vermelha corrente de morango...)"

Marina Tsvietaieva, O Diabo, trad. Manuel Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 48.

Tuesday, December 4, 2012

SEGREDO


"A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar

como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça."
 
Carlos Drummond de Andrade, "Tentativa de Exploração e de Interpretação de Estar-No-Mundo", in Antologia Poética, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 298-299.

Monday, December 3, 2012

HABITAR


"A morte é a verdade e a verdade é a morte

Tão contente de vento, ó folha que nomeio
como que à passagem te colhesse,
palavra do que tu, ó árvore, dispões para vir até mim
do alto da tua inatingível condição

De muito longe vinda, inviável lembrança
indecisa nas mãos ou consentida
por alguma impossível infância
E a alegria é uma casa recém-construída

Face melhor de todos nós, ó folha
dos álamos nocturnos e antigos visitados pelo vento,
no calmo outono, o dos primeiros frios, sais
do ângulo dos olhos, acolhes-te ao poema
como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá

Não há outro lugar para habitar
além dessa, talvez nem essa, época do ano
e uma casa é a coisa mais séria da vida"
  Ruy Belo, O Problema da Habitação - Alguns Aspectos, 4ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 25.

Sunday, December 2, 2012

DO EROTISMO


"Afinal, no erotismo existe bem mais do que somos, ao princípio, levados a reconhecer.
Hoje ninguém repara que o erotismo é um mundo demente e que tem, muito para lá das suas formas etéreas, uma profundidade infernal."
  Georges Bataille, As Lágrimas de Eros, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 71.

Saturday, December 1, 2012

ONTEM COMO HOJE - DEZEMBRO, 1º


"Da moralidade política a acusação de ladrões aos ministros é a moeda corrente. E a administração financeira veio de jeito que a nação deve seus quatrocentos mil contos, o Estado gasta no pagamento dos juros do seu débito a metade da receita, vive do sistema combinado do empréstimo e do imposto; e, como num déficit eterno e aumentando de ano para ano, não muda de rumo, a bancarrota é a carta do fim do baralho."
  Sampaio Bruno, A Geração Nova, Porto: Lello & Irmão Editores, 1984, pp. 310-311.

Friday, November 30, 2012

A DERIVA DA LUZ - NOVEMBRO


"Descobre-se Novembro. A nostalgia
desenvolve-se até se instituir em única
luz. Em vigília
a deslocar a sua
concentração para a longínqua
fronteira aonde se dissipa a bruma.
E fica Novembro. Fica,
como que pátria e urna
derivando cristalina,
para o sítio onde as vozes cantam múltiplas
vivacidades contíguas
emergindo do cerne das colunas.
E mortos e vivos se resignam
a ouvir-se em timbre de expansivas urnas
sob a deriva da luz da nostalgia
com que Novembro vai tecendo a bruma."
  Fernando Echevarría, "Sobre os Mortos", in Poesia 1987-1991, Porto: Edições Afrontamento, 2000, p. 163.

Thursday, November 29, 2012

SABEDORIA


"O sisudo e o sandeu,
tudo vi que tinha fim,
e disse então antre mim:
«Que me presta o saber meu?»
Inorantes e prudentes,
todos tem ua medida:
na morte nem nesta vida
não vos vejo diferentes."
 
Luís da Silveira, "A um propósito seu, em que segue Salomão no «Eclesiastes»", in Antologia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, selec. e org. Maria Ema Tarracha Ferreira, Lisboa: Ulisseia, s.d., pp. 241-242.

Wednesday, November 28, 2012

OS GATOS DE LEÇA DA PALMEIRA


"- Os meninos ricos do colégio também me batem.
- Morde-lhes, filho.
- E os ricos não repartem?
- Os ricos dão esmola, mas é para rebaixar a gente.
- Os ricos são maus?
- Como as pedras. Ninguém neste mundo se importa com as desgraças dos outros, senão para se consolar. Cada um por si. E quem tem dinheiro tem tudo. Este mundo é de quem mais apanha e o céu é de todos. - Às vezes também diz: - Este mundo é uma bola, partido ao meio dá duas gamelas. - Às vezes também ri - e o seu riso mete medo."
  Raul Brandão, A Farsa, Ed. José Carlos Seabra Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 90.

Tuesday, November 27, 2012

TERRÍVEL HORIZONTE


"Olhai agora ao cair quotidiano da tarde
A linha humana dessa fronte
Aí qualquer coisa começa
Não há na natureza à volta tão terrível horizonte
nem nada que se pareça."
  Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, 5ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 40.

Monday, November 26, 2012

ONDE JÁ O CORPO SE DILUI


"Talvez a ideia
simples
do silêncio
e só a ideia
simples, como angústia,
encha de pureza
o fogo alarve
e se emocione
nas ruínas.

Aqui.

Onde já o corpo
se dilui
numa resignada
e triste
numa mansa
e débil
e sempre resignada
disformidade:

na noite
sufocada
pela penumbra."
Laureano Silveira, Caprichos, Porto: Limiar, 1987, p. 21.

Sunday, November 25, 2012

ORAÇÃO PAGÃ


"Ao largo, sobre barcos que pareciam fazerem um só corpo com as águas, os pescadores estavam cantando as Vésperas. Cantavam como mortos, abatidos pela paz daquela hora e, ainda que olhassem para as igrejas, a sua voz caía sobre o mar e ardia levemente, como um óleo, tocada pelo sol que se enganava e se acercava a receber aquilo que lhe parecia uma oração pagã."
  Hélia Correia, Lillias Fraser, Lisboa: Relógio D' Água, 2001, p. 73.

Saturday, November 24, 2012

O DESACORDO COM O MESTRE


"Piramidal e pétrea, cor de aurora
na de entre chuva matinal distância,
do plaino mar levanta-se mosteiro
a que Merveille chamam. Para entrar-se
há que subir degraus que não acabam:
a tanta penitência não resiste
maravilha nenhuma deste mundo;
é melhor vê-la ao longe, na distância,
piramidal e pétrea, cor de aurora."
  Jorge de Sena, Sequências, Lisboa: Moraes Editores, 1980, p. 63.

Friday, November 23, 2012

CAPRICHO


"(...)
Se, ao menos, os teus dedos
pudessem colher rosas
em vez de atormentarem
o sono da morte
o seu leve pairar
tranquilo
sobre tudo...
(...)"
  Laureano Silveira, Caprichos, Porto: Limiar, 1987, p. 54.

Wednesday, November 21, 2012

INCÓLUME


"Ora da névoa e da lama,
Trágicas mãos, mãos ardentes,
Mãos de angústia e resistência,
Incólume, erguem a chama
Que de sempre aos céus reclama,
Para os mortos existentes,
Vida!, e não só existência..."
José Régio, "Os Cristos", in Fado, Lisboa: A Bela e O Monstro Edições, 2011, p. 113.

Tuesday, November 20, 2012

O MARMELEIRO


"«É verdade, porra, se não fosse o anjo sem cara que ia pousando nos ramos e os partia, eu não estava aqui agora. O que mais me lixa é que mesmo que eu lhe desse pauladas para o afastar, o pau passava por ele sem lhe tocar», dizia na taberna, meio bêbedo e cansado diante do riso de todos. «O anjo é o pai de todos os pássaros que me vão comer!»"
José Riço Direitinho, "O Amieiro" in A Casa do Fim, 3ª edição, Porto: Asa, 2007, p. 57.

Monday, November 19, 2012

DA PAIXÃO


"A Escola Flamenga é o açougue da peixaria, quando não é os quartos de carne fresca nos ganchos de talho do Rubens... É boa altura para falar dos Vélázquez! Podem as suas infantas ter caras de cera e cabelo de seda desfiada; podemos assim mesmo apaixonar-nos por essas bonecas. Há reflexos de autos-da-fé nos matizes e nos cetins dos seus vestidos; e as rosas que elas agarram com desdém na ponta dos dedos, essas rosas são vermelhas com todo o sangue dos judeus degolados no limiar das catedrais. E com isto tão deliciosamente escrofulosas!... Basta este Vélázquez para pintor das velhas aristocracias!"
Jean Lorrain, O Senhor de Bougrelon, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 41.

Sunday, November 18, 2012

O FEITIÇO


"E nesta altura o Senhor de Bougrelon, que até então estivera calado:
- Não sentem como eu, senhores, o feitiço das modas antiquadas, o encanto doloroso das coisas antigas ainda vivas? Sim, porque estou a ver-vos empalidecidos por uma emoção poderosa, já que ela se mantém em silêncio. Ter-vos-ia enganado quando disse: preparem-se para o sofrimento? Perante as adoráveis mortas com uns quantos adornos que se impõem ao olhar, não sentem aqui a sua presença mais forte do que à frente do verniz ou do embaciado de um retrato? Ah! O sortilégio dos tecidos gastos, dos langores patrícios de todas as joalharias de seda e cetim!
«Se reina aqui uma atmosfera de igreja (porque não será um respeito de lugar santo aquilo que sentimos?) é por flutuar, palpável e invisível, a imperiosa alma de velhas aristocracias. Que graça autoritária, que altivez nas pregas destes vestidos, que elegância inata nestas anquinhas tufadas, que bela audácia no próprio ridículo destas cabeleiras! É toda uma sociedade desaparecida que eu aqui reencontro porque a conheci. Estou em minha casa, eu. Um camarim de Mortas, de facto, mas de mortas vivas porque sei as palavras que dão corpo a estes trapos, sei as palavras de amor e de carícia que reacendem aqui sorrisos e olhares; porque estas Mortas regressam, sim, estas Mortas regressam, senhores, porque eu as amo, e por saberem isso elas obedecem-me; só o amor ressuscita os mortos.»"
 
Jean Lorrain, O Senhor de Bougrelon, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, pp. 48-49.

Saturday, November 17, 2012

ILUMINAÇÃO


"Jurava que um anjo se tinha metido de permeio, partindo um a um todos os ramos da árvore a que ele ia tentando atar a corda. Era inevitável estar agora vivo, três dias depois de ter adormecido sob o amieiro e sonhado com a sua morte atroz.
Desde essa manhã não mais conseguira tornar a fechar os olhos, com medo que a morte lhe visitasse outra vez os sonhos; mantinha-se alerta para afastar com um pau todos os pássaros que se aproximassem."
  José Riço Direitinho, "O Amieiro" in A Casa do Fim, 3ª edição, Porto: Asa, 2007, p. 55.

Thursday, November 15, 2012

IN THE HOLLOW ROUND OF MY SKULL


"Senhora, três leopardos brancos sentavam-se debaixo de um zimbro
À friagem do dia, tendo-se alimentado até à saciedade
Das minhas pernas do meu coração do meu fígado e do
conteúdo
Do círculo oco da minha caveira. E Deus disse
Hão-de viver estes ossos? hão-de viver
Estes ossos? E aquilo que fora contido
Nos ossos (que estavam secos) disse chiando:
Por causa da bondade desta Senhora
E por causa da sua beleza, e porque
Em sua meditação venera a Virgem,
Brilhamos nós com fulgor intenso. E eu que aqui estou
desmembrado
Encomendo os meus actos ao olvido, e o meu amor
À posteridade do deserto e ao fruto da cabaça."
 
T.S. Eliot, Quarta-Feira de Cinzas, trad. Rui Knopfli, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 13.

Wednesday, November 14, 2012

DIA DE AMADEO


"Não perguntem agora como lhe foi a vida, com que espécie de filamentos se manufacturou a tessitura da biografia a escrever. Quando a passagem é tão curta como esta, não será que tudo se reduz a um dia único, lavado e sem heroísmo assinalável, nele se degustando apenas o tegumento que não amadureceu? De Amadeo, como de outros, poderemos dizer que oscilou do apetite à renúncia. Nem lume nem gelo o tiranizaram alguma vez, porque incólumes de intempéries ficam os homens missionários."
  Mário Cláudio, Amadeo, Lisboa: Publicações Dom Quixote / Planeta DeAgostini, 2000, p. 133.

Tuesday, November 13, 2012

LACRYMAE NATURAE


"A Natureza não era mais do que o cérebro explodia pra todos os lados. Oh! puff! como Eu odeio a humanidade que se exprime! O que é o escândalo senão o Homem? escândalo no sentido obsceno! Há coisas mais obscena que a Humanidade? esta coisa que pretende dominar na terra e que escorrega em desordem plos continentes até secar em morte! Que forma terá a lesma que nos segrega? Nenhum outro excremento é venenoso como o da terra! Ignóbeis parasitas omnívoros que vos atulhais em impotência dentro de um penico inconvenientemente convencional! que pretendeis Vós com esa fúria de subjetivismo? pra que complicais tão enterradamente-viva a Ignorância? Deus certamente enganou-se em me nascer!"
  José de Almada Negreiros, K4 - o quadrado azul, Lisboa: A Bela E o Monstro Edições, 2011, pp. 34-35.

Monday, November 12, 2012

DESVENTURA MUI CERTA



"Para mim nasceo cuidado,
cuidado desaventura;
para mim nasceu tristura.

Começou meu mal no ver,
em ver foi seu começar;
a vista fez dessejar:
o dessejo e o querer
deram continuo cuidar.

Cuidando meu mal passado
- e no presente dobrado -
sei que nasceo antre nós:
o descuido para vós,
para mim nasceo cuidado.

Cuidado sem esperança
é o que eu por vós cuidei,
seguindo por firme lei
em mais mal menos mudança,
isto cuido e cuidarei.

A males que não tem cura,
esperar-lha da ventur
vã esperança seria,
que, esperando, creceria
cuidado, desaventura.

Desaventura mui certa
é nos começos errar,
e o presumir de acertar
no mais quem não acerta
é mui certo perigar.

Isto em mim bem se assegura,
porque o tromento me dura
que do começo nasceo,
e do que ele mereceo
para mim nasceo tristura."
  Bernardim Ribeiro, Obras Completas, vol. II- Éclogas, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1982, pp. 187-188.