Sunday, March 29, 2015

PERDOAR



"Uma tarde, ao voltar, perguntou-me ansiosamente:
- Deus existe ou não? Que dizes a isso, patrão? E se ele existe, tudo é possível, como o imaginas?
Eu encolhi os ombros sem responder. 
- Eu... Não te rias, patrão. Imagino Deus igual a mim. Só que maior, mais forte, mais maníaco. E, evidentemente, imortal. Está sentado confortavelmente em peles de carneiro bem macias e a sua cabana é o céu. Não é de bidões de gasolina como a nossa, mas de nuvens. Tem na mão direita, não um gládio ou uma balança - esses instrumentos são para os magarefes e os merceeiros -, mas sim uma grande esponja cheia de água, como uma nuvem de chuva. À direita é o Paraíso, à esquerda é i Inferno. Quando uma alma se apresenta pobrezinha, toda nua, pois perdeu o corpo, tiritando de frio, Deus olha para ela rindo-se por detrás das barbas, mas faz de papão: «Anda cá - diz ele, engrossando a voz -, anda cá, maldita! E começa o interrogatório. A alma atira-se aos pés de Deus.«Perdoa-me! - brada-lhe ela -, perdoa-me!» E começa a contar os seus pecados. Já contou uma ladainha deles e não há meio de acabar. Deus está farto daquilo. Boceja. «Cala-se lá - grita-lhe -, dás-me cabo da cabeça!» E zás! Com um movimento de esponja apaga os pecados todos, «Fora, sai daqui, cava para o Paraíso! - diz-lhe ele - Pedro, deixa entrar essa também, coitadinha! 
Porque tu deves sabê-lo, patrão, Deus é um grande senhor e a nobreza está nisso: perdoar!"


Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego, trad. Fernando Soares, Lisboa: Ulisseia, s.d., pp. 108-109. 

Friday, March 27, 2015

PARA TOMAS TRANSTRÖMER



"La mort se penche
sur moi, un probléme d'échecs. 
Et elle a la reponse."


Tomas Tranströmer, La Grande Énigme, trad. Jacques Outin, Paris: Le Castor Astral, 2004, p. 41. 

Wednesday, March 25, 2015

DECONHECER



"CORO - Infortunado, pela tua alma como pela tua sorte! Como desejava que nada tivesses sabido!"

Sófocles, Rei Édipo , trad. Maria do Céu Zambujo Fialho, Lisboa: Edições 70, 2006, p. 143. 

Tuesday, March 24, 2015

PARA O DIVINO HERBERTO



"E estás algures, em ilhas, selada pelo teu próprio brilho, 
enquanto a terra me queima os dedos e os dedos
entram no coração como uma queimadura e o coração
propagado
é o incêndio na cabeça - às vezes
a cabeça não sabe que os pulmões arrastam 
as labaredas do mundo como um grande buraco
de vozes: um rumor
de crepitações: uma força: uma rapidez
entre as formas - espelhos luzindo
atrás dos rostos: e tu levantas um braço:
trazes do fundo de tudo a raiz ainda viva de cada coisa:
uma constelação magnética entre os pés afastados
- eu vejo a tua morte no meu próprio movimento:
na chama correndo pela paisagem 
fora, a paisagem
que ergues, que depois abandonas ao seu próprio espaço
de paisagem no tempo, 
externa: atravessada por noites, 
por luzes, transformações, ideias de quem vê, 
pelos seus desenvolvimentos ocultos - vejo
que ressuscito no teu modo, essa espécie de estilo
ou energia, 
quando casa e paisagem circulam como ilhas
numa torrente à tua volta - 
e então o que tocas é esse teu mesmo coração cruzado
por imagens luxuosas: o filme aceso:
membranas do corpo rutilando à sombria gravidade
do fundo
da beleza, dos poderes terrestres e o peso
de tanta profundidade: e um instante explode
essa estrela embrenhada na minha cabeça, como
o coração se aprofunda, os dedos
puxam 
as linhas de lume com que se cose a terra, 
a fenda do seu sangue abismado - às vezes
o espelho é o meu próprio corpo, 
a sua ferida: mas entre ilhas, sob
o que circula: espuma do ar, os cometas, 
no sono sumptuoso
de animais
quase fixos, os rostos abertos aos raios dos nossos rostos, 
aos nossos dedos que lhes chegam ao meio do coração - 
porque tudo anda dentro de mim, e o mundo
esgota-se
no teu movimento entre laços
de sangue, cabelos luzindo, as pedras
inclinadas para os teus lugares respiradores: a árvore
crescendo a cada paragem, com toda a tua inspiração
na minha morte, aqui, uma árvore
combustível
onde a fruta faísca: paraíso de espaços múltiplos
e velozes, 
entranhando em mim como se eu fosse a árvore
e tu fosses um espelho que a árvores despedaçasse pela sua força
e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado, 
brilhando."


Herberto Helder, Photomaton & Vox, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, pp. 176-178. 

Monday, March 23, 2015

AT THE HEART OF IT ALL



"Amigo, a longa noite sempre acaba 
e por vezes é tão triste acordar e perceber
que juntos fizemos o solitário caminho
para o escuro de cada um. Como nos apela
essa travessia incerta pelo avesso de um desesperado
desejo de viver. Ao início há outro modo de encanto

que, uma vez esgotado, de novo se refaz:
sofreremos em comum o nosso tempo na cidade
e tudo o que dele pudermos compartir: a música, 
a esquiva beleza de um verso, um sentimento
das coisas que entretanto perdemos
ou nunca chegámos a ter. Mas tu bem sabes 

que a última canção desemboca fatalmente
no silêncio mais cruel - o que trazemos connosco
e não podemos sanar. Abre por fim a janela, 
repudia outra vez o cansado mundo e o dia
que gastámos de antemão nessa funda vontade
de não estar, nada ser, nada sentir."


Rui Pires Cabral, "Longe da Aldeia", in Morada, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 204.

Sunday, March 22, 2015

PASSOS




"Já tarda o nosso regresso, 
Repousam há muito os Amados!
O túmulo a vida nos fecha, 
Agora são dores e os medos
Nada quer o coração
Tão farto em mundo tão vão."


Novalis, Os Hinos à Noite, trad. Fiama Hasse Pais Brandão, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 59.

Saturday, March 21, 2015

DIA DA POESIA



"Às vezes a noite faz pinturas
na minha pele, há uma asa grande
como a criação que desce no arco
dos meus sentidos, uma pulsação
ferindo por entre os cabelos
como se fosse o próprio tempo. 

Vou continuar deitado na minha cova
a sul do mundo, vou continuar frio
por dentro da chuva quando é domingo, 
o tédio barricado nos quintais
como no ninho de um bicho. 
Vou estar parado outra vez
à velocidade de quinhentos mil cavalos. 

Não há mal nenhum nisso."


Rui Pires Cabral, "Geografia das Estações", in Morada, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 15. 

VIDA RESTITUÍDA



"A vida restituída à morte é a própria operação do simbólico."

Jean Baudrillard, A Troca Simbólica e a Morte, vol. II, trad. João Gama, Lisboa: Edições 70, 1997, p. 18.

Thursday, March 19, 2015

TEMPO DE QUEM SOFRE


"Há tempos de vários tamanhos. É sempre mais longo o tempo de quem sofre. É a alma que vê a cor do tempo, diferente, como reflexos da sua própria tonalidade. O tempo é esse rio de águas mansas, passando, que me separa e une a toda a gente."

Luís Rosa, O Claustro do Silêncio, 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 2002, p. 171.

Wednesday, March 18, 2015

MULTIPLICAVAM-SE



"As estrelas multiplicavam-se, ferozes, desdenhosas, duras, sem nenhuma piedade pelos homens."

Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego, trad. Fernando Soares, Lisboa: Ulisseia, s.d., p. 66. 

Tuesday, March 17, 2015

O MUNDO



"O que é este mundo, senhor Holmes? Um composto, sujeito a revoluções que, todas elas apontam para uma tendência contínua para a destruição; uma sucessão rápida de seres que vêm, uns a seguir aos outros, se empurram e desaparecem; uma simetria passageira; uma ordem momentânea."

Denis Diderot, Carta sobre os cegos para uso daqueles que vêem, trad. Luís Manuel V. Bernardo, Lisboa: Vega, 2007, p. 68.

Monday, March 16, 2015

IMPRECISA


" - A não ser - disse enfim -, a não ser que...
- O quê? Vejamos isso. 
- A não ser que, quando abrirem os olhos, tu tenhas para lhes mostrar um mundo melhor que o das trevas onde vivem agora. Tem-lo?
Eu não sabia. Sabia bem o que ia desmoronar-se, mas não sabia o que ia ser edificado sobre as ruínas. «Isso ninguém pode sabê-lo com certeza - pensava eu. - O velho mundo é palpável, sólido, vivemo-lo e lutamos com ele em cada instante, ele existe. O mundo do futuro não nasceu ainda, é imperceptível, fluído, feito da luz de que são tecidos os sonhos, é uma nuvem batida por ventos violentos - o amor, o ódio, a imaginação, o acaso, Deus... O maior profeta só pode dar aos homens uma palavra de ordem, e quando mais imprecisa for esta palavra de ordem maior será o profeta.»"

Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego, trad. Fernando Soares, Lisboa: Ulisseia, s.d., p. 65.

Sunday, March 15, 2015

REVENANTS


" - Não esperes que eu siga os caminhos da razão e da lógica, disseram-me Gil. Fiz a minha escolha. Adoptei o absurdo e o obscuro, o mistério, a noite, como valores absolutos. Sou um partidário do gemido larvar, do definitivo renascimento da morte."

Nuno Júdice, Plâncton, Lisboa: Contexto, 1981, p. 56.

Friday, March 13, 2015

SENSO COMUM


"O tratamento do intolerável é assim uma questão de dispositivo de visibilidade. Aquilo a que se chama imagem é um elemento dentro de um dispositivo que cria um certo sentido de realidade, um certo senso comum."

Jacques Rancière, O Espectador Emancipado, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Orfeu Negro, 2010, p. 149. 

Thursday, March 12, 2015

PROCUL A IOVE


"Olhou-me com os olhos arregalados, estupefactos.- É um mistério - murmurou. - Um grande mistério! Então para que venha a liberdade ao mundo são necessários tantos assassínios e tanta devassidão? Se eu começasse a fazer na tua frente o rol de tudo o que fizemos, das obscenidades e assassínios, ficavas com os cabelos em pé. Contudo qual foi o resultado disto tudo? A liberdade! Em lugar de nos fulminar com um raio, Deus dá-nos a liberdade! Nada compreendo disto!"

Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego, trad. Fernando Soares, Lisboa: Ulisseia, s.d., p. 25. 

Tuesday, March 10, 2015

AS ALEGRIAS


"Muitas são as alegrias do mundo - as mulheres, os frutos, as ideias. Mas sulcar este mar num suave Outono murmurando o nome de cada ilha - creio que não há prazer que melhor abra o Paraíso ao coração do homem. Em parte nenhuma aliás se passa tão serenamente e tão facilmente da realidade ao sonho. As fronteiras diluem-se. Dos mastros do mais vetusto dos barcos arremessam-se ramos e cachos. Dir-se-ia que aqui, na Grécia, o milagre é a flor inevitável da necessidade.Pelo meio-dia a chuva tinha cessado, o sol rasgou as nuvens e mostrou-se delicado, todo lavado de fresco, e acariciou com os raios as águas e terras bem-amadas. Eu mantinha-me na proa e até ao fundo do horizonte embriagavam-se com o milagre."

Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego, trad. Fernando Soares, Lisboa: Ulisseia, s.d., p. 18. 

Monday, March 9, 2015

CAPRICHO


"Não havia alternativa para esses gestos simples, quotidianos. A banalidade era o modo único de aceder a formas superiores de conhecimento e de sobrevivência. Por isso vim a constatar perdida a memória de tudo o que então me sucedera - perdida na passagem para outra idade, no vertiginoso processo de desprendimento dessa época fácil e penosa, lúcida e louca."

Nuno Júdice, Plâncton, Lisboa: Contexto, 1981, p. 13. 

Sunday, March 8, 2015

BERGSÓNICO



"As evocações da mãe deram-lhe a noção das suas próprias origens, dum passado. Mas o presente é feito de instantes imensuráveis, decorrentes, arrancados ao nada do futuro, para o qual a gente avança às arrecuas, cego, o remador de costas para a proa!, só se apercebendo da realidade do Tempo como retrospecto, alguma coisa que se enrola para trás à maneira das paisagens quando se viajam e a cada instante se congela em passado. De repente, porém, a marcha acelera-se, as águas do rio avolumam-se e adensam-se como ao acercar-se do açude, da queda tumultuosa... Então, sente-se tomado duma leve angústia, o coração bate-lhe de exaltação e anseio, sem que ele saiba porquê nem para quê."

José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso, 4ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 371. 

Saturday, March 7, 2015

APAGAR



"E a sua vida eterna, então, 
Apagou-se, semelhante a um sonho."


William Blake, Primeiro Livro de Urizen, trad. João Almeida Flor, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 47. 

Friday, March 6, 2015

POUSIO



"Entendeu que da morte a vida se nutria:
No matadouro vai gemendo o Boi, 
No inverno, à porta, geme o Cão. 
Ao choro, que verteu, chamou Piedade
E as lágrimas escorreram pelos ventos."


William Blake, Primeiro Livro de Urizen, trad. João Almeida Flor, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 63. 

Thursday, March 5, 2015

REFLEXÃO




" - Mas se ela estava morta, como é que ele lhe havia de pagar? - diz a Águeda com a voz embargada: mas isto é só perguntar por perguntar. - Ele meteu o dinheiro no caixão?
- Não há dívida que a morte não pague! - diz a dona Adélia."


José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso, 4ª ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 92. 

Wednesday, March 4, 2015

DISTANTE



"E Los, em volta do negro globo de Urizen, 
Vigiava e mantinha isolada, 
Pelos Eternos, a separação sombria; 
Pois a eternidade ficava tão distante, 
Como da terra ficam as estrelas."


William Blake, Primeiro Livro de Urizen, 2ª ed., trad. João Almeida Flor, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 33. 

Tuesday, March 3, 2015

FURY



"Mas o fogo ardia sem dar luz; tudo era treva
Nas chamas da fúria eterna."


William Blake, Primeiro Livro de Urizen, trad. João Almeida Flor, 2ª ed.  Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 31. 

Monday, March 2, 2015

OS SINAIS



"Estrídula trombeta: as miríades da Eternidade
Reúnem-se em volta dos desertos gelados
Já plenos de nuvens, treva e águas, 
Que iam escorrendo em confusão, a trovejar
Palavras, articuladas como estrondos
Que ressoam por cumes de montanhas:"


William Blake, Primeiro Livro de Urizen, trad. João Almeida Flor, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 27. 

Sunday, March 1, 2015

TERTIA PORTA



"Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, querubins armados de espada flamejante para guardar o caminho da árvore da vida."


Gn 3, 24.