Friday, November 30, 2018

EM TÃO GRANDE ESPLENDOR


"Pela palavra nasceram todas as coisas
Em amorosa torrente foram nomeadas
Foram sonhadas desejadas e criadas
O Aberto abria os mundos em sossegado fluir
Em sucessão de luz e escuro
De terra e água
E todas as coisas eram plenas e inteiras. 
O primeiro homem a primeira mulher
Na vibração total do ser de cada um
Em uníssono com a Unidade
Em diálogo de igual para igual. 
A palavra depois foi sombra e foi engano
Na primeira ferida que a todos feriu
E o Jardim se perdeu e foi desabitado. 
A dor e a morte invadiram a vida
E o trabalho foi ganho com o suor do rosto.
As origens retornam como eco e visão
Mais não pode vislumbrar o coração
Ver essa falha redimida e colmatada
E o brilho recobrir a palavra clareada
Em tão grande esplendor como se não brilhasse
Perpassando o trabalho e o suor
Com o ouro do amor. 
E ver o fogo que consome sem destruir
No labor de polir e esculpir
Este nosso rosto sempre inacabado
Longe e perto do que foi criado."

Maria Teresa Dias Furtado, Livro de Ritmos, Lisboa: Labirinto, s.d., p. 73. 

Thursday, November 29, 2018

ANDAR


"O ser não tem aptidões nem falhas que permitam à linguagem dá-lo a conhecer a todos os que dele participam. O ser revela-se a cada um segundo a sua linguagem particular. 
O ser não falha as ocasiões. Alimenta-se, constrói-se, converte. A pessoa singular, se apenas conhece a lógica do seu andar, é possível que o ignore (a mulher, o aproveitamento do tempo, não o desejo de se encontrar em casa. 
A falha, em si, não existe. Todo o acto é justificável, nobre ou mesquinho ao mesmo tempo, conforme o ponto de vista. Existe, sim, em relação ao ser ou falha do ser. 
Cada um pode ter razões nobres para não agir numa certa distracção. Nobres e lógicas. E é porque o ser não o arrastou com bastante força. Aí tens aquele que, em vez de forjar rebites esculpe pedras. Ele atraiçoa o veleiro. 
Longe de mim ouvir-te expor as razões do teu comportamento: tu não tens linguagem. 
Ou, mais exactamente, há uma linguagem do príncipe, depois uma linguagem dos seus arquitectos, depois uma dos seus chefes de grupos, depois uma dos forjadores de rebites, depois uma dos simples operários."


Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 304. 

Wednesday, November 28, 2018

CONDIÇÃO DIVINA


"O já-não-poder-chamar os antigos deuses, este querer acatar a renúncia, que outra coisa será - e não é outra coisa - senão a disponibilidade unicamente possível e decidida para esperar a chegada do divino; é que os deuses só podem ser abandonados, como tais, na renúncia se, e quanto mais intimamente, estiverem fixados na sua condição divina. Onde o ente mais querido se foi embora, o amor permanece, visto que, de outro modo, o mais querido não poderia sequer ter-se ido embora."

Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin, trad. Lumir Nahodil, Lisboa: Instituto Piaget, 2004, p. 94. 

Tuesday, November 27, 2018

MISTÉRIO


"Quem afasta o mistério para o domínio do «irracional», como fazendo parte do que é chamado inexplicável, não só não o resolve, como também não o concebe nem o aceita como mistério. Embora tal afastamento crie a aparência do respeito e da reverência perante o mistério, trata-se na realidade de uma atitude de indiferença, que vulgariza o mistério e o torna acessível à especulação indisciplinada e à arbitrariedade do opinar aleatório. Contrariamente a isto, o canto - a poesia - tem por função revelar o que nasce da pureza. Se o poetizar for grande e autêntico, fracassará necessariamente ao empreender tal tentativa."

Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin, trad. Lumir Nahodil, Lisboa: Instituto Piaget, 2004, pp. 220-221.

Monday, November 26, 2018

DA ESPERANÇA



"Como um golpe se abre funda ferida
Dor que desatina da perda sem retorno
Dos da vida pela morte desmedida
Mágoa que enche o coração e tudo em torno

Dia pesado como bátegas de chuva
Que violentas caem e são granizo
Não há sabores nem cheiros a vista é turva
Tudo chegou sem dó e sem aviso

Ó sol, ó estrelas, ó plenilúnio, ó luz
Ó águas que sem margem vão correndo
Dai-nos a cor o ar o alento que reduz

E suaviza a pena que em nós se vai movendo
Uma prece se ergue ao alto pela partida
E oferece a flor da esperança ao espírito e à vida"


Maria Teresa Dias Furtado, Livro de Ritmos, Lisboa: Labirinto, s.d., p. 27. 

Sunday, November 25, 2018

EQUILÍBRIO



"Essencialmente equilíbrio:
nem máximo nem mínimo. 

Caminho determinado
movimentos precisos sempre
medo controlado máscara
de serenidade difícil.

Atenção dirigida olhar reto
pés sobre o fio sobre a lâmina
ser uma só idéia nítida
equilíbrio. Equilíbrio.

Acaba a prova? Só quando 
o trapézio oferece o vôo
e a queda possível desafia
a precisão do corpo todo.

Acaba a prova se a aventura 
inda mais aguda se mostra
mortal intensa desumana
desequilíbrio essencialmente."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 65. 

Saturday, November 24, 2018

INSTANTE



"Momento 
                 pleno:
pássaro vivo
atento a.

Tenso no
              instante
- imóvel vôo - 
plena presença 
pássaro e 
             signo

(atenção branca
aberta e
            vívida). 

Pássaro imóvel. 
Pássaro vivo
atento
a."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 145. 

Friday, November 23, 2018

OPIÓMANO



"Nem além, nem aqui:
Nada, nenhum lugar que as coordenadas, 
Que os pontos cardeais possam domar, 
Prender, subjugar.
Eu quero o lugar sem direcções, 
Sem espaço, sem tempo consciente. 
Eu sou o opiómano
Dos limbos e dos nenhures."

Nuno Rocha Morais, Galeria, Porto: Edições Simplesmente, 2016, p. 32. 

Thursday, November 22, 2018

HUMANIDADE



"A humanidade é sempre a mesma, sim. 
Mas quando se muda de país, como é difícil 
interpretar os gestos e os sinais que podem ser
desejo, sedução, atracção física!
Os mesmos são, e os fins também os mesmos.
O código, porém, tem divergências
que podem estragar tudo."


Jorge de Sena, 40 Anos de Servidão, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 108. 

Wednesday, November 21, 2018

ÉTER


"Ditosa Grécia! Morada de todos os Celestiais, 
    É então verdade o que ouvimos dizer na nossa juventude?
Sala festiva! O soalho é o mar! E as mesas os montes.
    Criados em tempos imemoriais para esse único fim!
Mas onde estão os tronos? E os templos? E os vasos
    Cheios de néctar que com os cânticos deliciavam os deuses?
E onde se encontra agora o brilho dos oráculos que o longe abarcavam?
    Delfos dormia, e onde ressoa o destino grandioso?
Onde paira, veloz? Onde se anuncia, trovejante, cheio de felicidade omnipresente
    Atravessando os ares serenos, ofuscando-os os olhos?
Pai Éter! gritavam e esse grito corria de boca em boca, 
    De mil maneiras, pois ninguém era capaz de, sozinho, suportar a vida;
Compartilhar tamanho bem causa alegria e comunicá-lo aos estranhos
    Enche de júbilo e durante o sono cresce o poder da palavra
Pai! Ó Sereno! E eis que esse sinal antiquíssimo, herdado dos antepassados, 
    Ecoa, enchendo a distância, certeiro e fecundo. 
Deste modo voltarão os Celestiais, despontando das profundezes
    Das sombras chega o seu dia até aos homens."

Friedrich Hölderlin, "O Pão e o Vinho", in Elegias, trad. Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 71. 

Tuesday, November 20, 2018

LAÇO DIVINO


"Mas não levantarei o exército para defender provisões. As provisões estão prontas e não tens nada a esperar delas, a não ser que se transformem em gado morno. 
E por isso, se se te extinguirem os deuses, já não aceitarás morrer. Mas também não viverás. Porque não existem os contrários. Embora a morte e a vida se oponham uma à outra, como palavras que são, o certo é que só podes viver daquilo que te pode fazer morrer. E o que recusa a morte, recusa a vida. 
Se não houver nada acima de ti, não tens nada a receber. A não ser de ti próprio. Mas que hás de tu ir buscar a um espelho vazio?"


Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 236. 

Monday, November 19, 2018

DIFUNDE


"Apesar de tudo, difunde em nós consolação e força, a noite magnífica! Na sua presença sublime as nossas pequenas contrariedades dissipam-se. O dia foi tão cheio de pressa e de cuidados, os nossos corações viveram tão cheios de mais pensamentos e amarguras, o mundo pareceu-nos tão duro e injusto...Mas a noite imensa, qual mãe amorável, poisa a meiga mão sobre o nosso peito febril e inclina-se sobre o nosso rosto inundado de lágrimas. Sorrimos e, ainda que tudo se cale, compreendemos a muda linguagem dos astros. A noite bafeja-nos o rosto afogueado e a nossa dor desvanece-se."

J. K. Jerome, Três homens num bote, trad. Raquel Queirós de Barros, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 115. 

Sunday, November 18, 2018

A CASA SILENCIOSA


"Homens e mulheres, somos todos feitos para viver ao sol. Gostamos da luz e da vida. Por isso nos amontoamos nas vilas e cidades e por isso o campo, ano a ano, está mais despovoado. De dia, há decerto a luz do Sol, a natureza freme e palpita, e até as encostas nuas das montanhas e as florestas sombrias nos encantam. Mas de noite, quando a terra nossa mãe adormeceu, ah!, então o mundo parece bem solitário e temos medo como crianças numa casa silenciosa. Suspiramos, aspiramos a ver as ruas iluminadas pelos bicos de gás, a ouvir de novo a voz dos nossos semelhantes e a animação da vida humana. Sentimo-nos tão fracos, tão pequenos no meio do grande silêncio em que a ramaria vibra ao sopro da brisa nocturna! Rodeiam-nos tantos fantasmas, cujos suspiros abafados tanto nos entristecem! Oh!, sim, juntemo-nos todos nas grandes cidades, acendamos o grande e alegre fulgor de um milhão de bicos de gás e gritemos e cantemos juntos para nos sentirmos viver!"


J. K. Jerome, Três homens num bote, trad. Raquel Queirós de Barros, Lisboa: Editores Associados, s.d., p. 67. 

BONDADE



"Se o acerbo fiel dos prantos 
corrói o coração, 
e ao desditoso tira
do choro a expansão
abençoada é a morte, 
se ao mártir Deus a envia;
abençoada é a ânsia 
da última agonia. 

Deus é bom. A esperança
renasce ao pé da cruz:
- aquém da campa, as trevas
e além, luz sobre luz, 
a luz da eternidade, 
o dia refulgente
do mártir que se dobra
chorando penitente."

Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 73. 

Saturday, November 17, 2018

OURO



"O homem sofre e geme. A existência
é agra, é fel servido em taça d'ouro.
O riso do feliz é a cal do túmulo:
há de vermes lá dentro um roer surdo. 
Tais júbilos não vêm ungidos d'alma. 
Do coração ao rosto o pensamento
de remorso que foi torna-se em riso. 
Não é o pobre só vítima do ouro:
primeiro, o rico geme escravo dele, 
escravo, sim, que eu perscrutei o fundo
de muitas almas vis, e contristado, 
ousei dizer a Deus - que extrema escória
devera o homem ser.
Quais os felizes?"

Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 109. 

Thursday, November 15, 2018

ENLEVOS



"Não sentes, não ouves um hino tão pulcro, 
sem letras, sem notas, sem voz conhecida, 
um hino, que é d'anjos, se os anjos descantam,
em salmos celestes, mistérios da vida?

Não vês, como eu vejo o céu bonançoso
por tardes estivas, no ermo a cismar, 
estranhas imagens de nuvens vestidas
Contando segredos às vagas do mar?

Não tens, como eu tenho, saudades dum tempo, 
fulgor instantâneo da infância... não tens?
Não vês que tão caros os gozos se compram?
Que penas em troca de tão raros bens!

Quiseras que um anjo te desse o destino?
Quiseras prever neste mundo um laurel?
Não queiras que os anjos eleitos da glória
Tem neste desterro o seu cálice de fel. 

A vaga tristeza, que ensombra o teu rosto, 
não sei se tormentos futuros prediz!
Tão bela, tão nobre, tão pura em desejos, 
quem pode no mundo fazer-te infeliz !?

Eu, não! que a virtude respeitos inspira
ao vício, que às vezes simula desdéns. 
Não creias que possam perversos... não podem
as rosas calcar da grinalda que tens. 

Não temas! Confia no céu que te manda
mostrar-me visível a imagem de Deus, 
na face, onde brilham esplêndidos traços
dos anjos que os homens namoram nos céus."


Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, pp. 62-63. 

Wednesday, November 14, 2018

LÁBIOS PULCROS



"Tenho pensado na morte, 
tenho-a visto leda e bela, 
como pálida donzela
engrinaldada de flores;
enamora-me a amizade
desta fada dos sepulcros:
ela só diz a verdade;
nunca o perjúrio, a mentira
maculou seus lábios pulcros. 
Morte! Eu dou-te a minha lira;
vem, doce esposa, vem ver, 
como em teus braços delira, 
com frenético prazer, 
o teu amante consorte;
vem colher o beijo extremo
sobre o lábio agonizante, 
de quem dá um riso à morte, 
como a um bem do céu supremo."


Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 37. 

Monday, November 12, 2018

TRANSPORTE


“Mas assim eu não transporto nada que tu não saibas. E a minha linguagem não foi feita para carrear todos já realizados, como pintar cor de rosa a flor, mas para construir, com a ajuda das palavras mais simples, operações que te liguem. A sua missão não é dizer que determinada flor é bonita, mas que ela te introduziu o silêncio no coração como por vezes, à tardinha, a água do repuxo.”

Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 177. 

Sunday, November 11, 2018

CENTENÁRIO




"Dói a vida, 
ri a vida, 
em quanto amor a abrasa.

Uma pomba sobe
ferida
nas flores da madrugada. 

O horizonte da verdade
é nos homens que se alarga."


Armindo Rodrigues, A Paz Inteira, Lisboa: Centro Bibliográfico, 1954, p. 13. 

Saturday, November 10, 2018

QUEDA


"Quantas vezes ainda verei eu cair
as pálidas leves folhas do outono?
- Não pode o homem vê-las 
cair e conseguir viver
(E cá estou também eu
cá estou eu incorrigivelmente a cantar 
as gastas folhas do outono
as mesmas das minhas mais antigas leituras
as primeiras e as últimas que tenho visto cair
Haverá outra poesia que não
a que cai nas tristes 
folhas do outono?)
- Não pode o homem ver 
cair as folhas e viver"

Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, 5.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 118. 

Friday, November 9, 2018

QUOTIDIE MORIOR


"Pensem no caso daqueles que recebem o baptismo pelos mortos. Se de facto os mortos não ressuscitam, por que é que se andam a baptizar por eles? E não estamos nós também em perigo a casa hora que passa? Irmãos, pela satisfação que sinto em vocês diante de Jesus Cristo, nosso Senhor, garanto-lhes que todos os dias vejo a morte à minha frente."

1Cor 15, 29-31.

Thursday, November 8, 2018

ESPAÇO



"Pouco é um homem e no entanto nele 
cabe tudo o que existe e fica ainda
espaço bastante para poder negá-lo."


Armindo Rodrigues, Beleza Prometida, Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950, p. 118. 

Wednesday, November 7, 2018

ACESSO



"Questão notável, a do lugar do Paraíso - (Lugar da alma).
O Paraíso está como que espalhado sobre toda a Terra - daí que se tenha tornado tão irreconhecível. Os seus traços dispersos podem ser reunidos - o seu esqueleto deve ser preenchido. Regeneração do Paraíso."


Novalis, Fragmentos, selec. e trad. de Rui Chafes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 103. 

Tuesday, November 6, 2018

ANJO FORTE



"Ontem e anteontem já passados
arredondemos os olhos à volta
daquela antiga realidade
alfa ómega primeira e última
que sempre diante na fronte trouxemos
Circundemo-la de um colar de palavras
sem pálpebras pobres pálidas de rosto
roubadas de esquinas eivadas
de arestas agrestes pontiagudas
Percamos palavras como folhas
perdem no outono as árvores, varridos
pelo contínuo apascentar de cuidados
Já se vão areando as praias de amanhã
desde ontem a morte morreu
E vamos e banhemo-nos no mar
que o anjo forte cúpula do tempo
se sente vir anunciar e fechar"


Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, 5ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 104. 

Monday, November 5, 2018

AQUÉM


"Havia vozes no jardim antigo, na escura tarde, no cemitério além da Porta. A vassoura de ramos de giesta, pousara-a sobre o que restava de uma pedra tumular. Encostou-se a uma lápide. Chorava. Há anos que não chorava. As silvas enredavam-se nele. Feriam-no até sangrar. A quem havia de se queixar da vã tarefa de cuidar de um gato? E também do vento que cirandava poeira e folhagem sobre as pedras que cobriam corpos em corrupção, ossos ordenados sob o governo físico da morte?"

João Miguel Fernandes Jorge e Pedro Calapez, O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012, p. 41. 

Sunday, November 4, 2018

PASSAR


"Uma manhã encontrou um gato tigrado no cemitério. Muito pequeno e muito magro. Recolheu-o. O abade autorizou-o a passar com ele a Porta dos Mortos. O gato seguia-o no interior da igreja. Não mais do que transpor o transepto em direção às celas dos monges. Era costume vê-lo na área de todo o mosteiro: ao sol no pátio interior ou num dos claustros, à espera de um bocado de carne que caísse de um dos pratos à horas das refeições, ronronando sob a comprida tábua da mesa e roçando-se nas pernas dos frades."

João Miguel Fernandes Jorge e Pedro Calapez, O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012, p. 40. 

Friday, November 2, 2018

A PORTA DOS MORTOS


"O monge velador do que estava (seria preferível dizer «do que está», pois tudo o que estava então lá continua preso ao confronto com o tempo passado e com o tempo que lhe foi futuro) além da Porta dos Mortos esperava que da sua compaixão (de que era um aprendiz, alguém que tentava aceder à libertação do absoluto domínio do amor por si mesmo) nascesse a capacidade de ser mais activo, isto é, que essa compaixão inicial, na qual progredia como qualquer artesão progride na sua arte, nascesse um varrer menos carregado de folhas secas e de emaranhados ramos de silvas, sangradores das suas mãos, rosto, braços e do corpo todo. Os espinhos das silvas, rosáceas que são de amargura, haveriam de despertar em si o espírito de um dos melhores mestres, ao modo de São Bernardo."


João Miguel Fernandes Jorge e Pedro Calapez, O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012, p. 38; 40. 

Thursday, November 1, 2018

O ESSENCIAL



"Como me tinha ficado a olhar para eles, o meu pai levantou a voz:
- Deves saber o que fica do jantar de casamento quando os convivas e os noivos abandonam a sala. A primeira luz da madrugada vem exibir a desordem que lá deixaram. Jarros quebrados, mesas de pernas para o ar, brasas apagadas, tudo conserva a marca de um tumulto que petrificou. Mas não penses que é a ler estas marcas que tu aprendes seja o que for sobre o amor. 
- O ignorante, ao sopesar e remirar de um lado e do outro o livro do Profeta, ao quedar-se no desenho dos caracteres ou no ouro das iluminuras, passa ao lado do essencial, que não reside no objecto vão, mas sim na sabedoria divina. O essencial do círio, por exemplo, não é a cera que deixa a marca, mas sim a luz que liberta."


Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, pp. 20-21.