Friday, July 26, 2024

NA PORTA



"Penso na porta onde deixei
passos alegres que não tenho
e nesse umbral vejo uma chaga
cheia de musgo e de silêncio."



Gabriela Mistral, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Teorema, 2002, p. 54.

Thursday, July 25, 2024

SANCTÏAGO

 



"Si tú no li dissiesses que Sanctïago eras, 
tú no li demostrasses señal de mis veneras, 
non dañarié su cuerpo con sus mismes tiseras
nin yazdrié como yaze fuera por las carreras. 

Prisi muy grand superbia de la vuestra partida, 
tengo que la mi forma es de vós escarnida, 
matastes mi romeo con sus mismes tiseras
nin yazdrié como yaze fuera por las carreras."



Gonzalo de Berceo, Milagres de Nuestra Señora, ed. Vicente Beltrán, De Bolsillo/Área, 2002, p. 83. 

Tuesday, July 23, 2024

COROA

 



"A coroa do que ri, esta coroa de rosas, eu próprio ma coloquei a cabeça, santifiquei eu próprio o meu riso. Não encontrei ninguém que hoje fosse suficientemente forte para isso.
Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, o que faz sinal batendo as asas, pronto para o voo, saudando todos os pássaros, pronto e disponível, divinamente frívolo:
Zaratustra, que diz a verdade, Zaratustra, que ri a verdade, nem impaciente nem absoluto, alguém que ama os saltos e os afastamentos: a mim próprio coloquei esta coroa."


Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, IV, trad. M. de Campos,2.ª ed., Mem Martins: Publicações Europa-América, 1988, p. 294.

Monday, July 22, 2024

MADALENA

 


"A corte dos celestes moradores
Da virtude da cruz hoje se espante,
Que entra uma pecadora triunfante
A dar posse da gloria a pecadores.

Quem das lagrimas fez conquistadores,
Bandeiras da vitoria no ceo plante;
E a gozar dos tesoures se levante,
De que os pés de Jesus foram penhores.

Dele tira o remedio eficaz,
Que o ceo, a terra, a vida, a morte, a culpa,
Abre, apura, reforma, vence, apaga.

Alquimia, que da ofensa fez desculpa,
Diluvio, em que se salva quem se alaga,
São milagres de amor, que só Deos faz."


Frei Agostinho da Cruz, Sonetos e Elegias, ed. António Gil Rafael, Lisboa: Hiena Editora, 1994, p. 142.

Sunday, July 21, 2024

SALVAÇÃO

 



" - Compreendo muito bem. Também acho que se deve amar a vida acima de tudo.
- Amar a vida mais do que o sentido da vida?
- Certamente. Amá-la antes de raciocinar, sem lógica, como tu dizes. Só então se compreenderá o sentido. Eis o que entrevejo há muito tempo. Metade da tua missão já está realizada. Ivan: amas a vida. Ocupa-te da segunda parte, e encontrarás a salvação.
- Tens muita pressa em me salvar! Em que consiste essa segunda parte?
- Ressuscitar os teus mortos, que talvez ainda estejam vivos. Passa-me o chá, Ivan. Agrada-me esta nossa conversa..."



Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 243.

Saturday, July 20, 2024

MANIFESTO MÍNIMO

 




"Neste humanismo abafa-se - e não sem um tremor
armamo-nos dos verbos de um programa insubmisso:
calar e apagar, desconectar, desaparecer.
Manda a democracia que falemos? Nós calamos.
Exige o espectáculo mais brilho? Apagamo-nos.
Devemos estar em rede e ao serviço? Desligamo-nos.
A Coisa Absurda chama-nos? Ah, não comparecemos!


Carlos Poças Falcão, "Sombra Silêncio", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 499.

Friday, July 19, 2024

FOLHAS

 



"Recorda-te dos bosques de Academos
da sua arte antiga.
Mas hoje a suspeição não te permite
argumentar entre os acantos
eternizar por folhas de hera, concluir
junto aos abetos, subindo entre veredas
de sombras com as sombras pelas sombras.

Estás contaminado por saberes funestos:
que todo te agitas num vazio de electrões
e sem sentido arde qualquer coisa de passagem."



Carlos Poças Falcão, "Pequeno Livro Azul"(31), in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 386.

Thursday, July 18, 2024

DOS MILAGRES

 



" - Não perdi a razão, descansa - proferiu este com olhar fixo e quase solene. - Sei o que digo; creio nos milagres.
- Nos milagres?
- Nos milagres da Providência. Deus conhece o que se passa no meu coração, vê o meu desespero. Não deixará realizar-se semelhante horror. Creio nos milagres, Aliocha. Vai lá..."


Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 133.

Tuesday, July 16, 2024

DUELO

 


"Nós, Karamazov, somos todos assim. O insecto vive em ti, que és um anjo, e desencadeia tempestades. Porque a volúpia é uma tempestade, ou mais do que isso. A beleza é uma coisa terrível e assustadora. Terrível por ser indefinível, e não se pode defini-la porque Deus criou enigmas. Os extremos tocam-se, as contradições vivem a par. Sou pouco instruído, irmão, mas penso muito nestas coisas. Quantos mistérios! Por exemplo, a beleza. Não suporto que um homem comece pelo ideal da Madona e acabe no de Sodoma. Mas muito pior é trazer no coração o ideal de Sodoma e não repudiar o da Madona, sentindo por este o mesmo entusiasmo dos seus anos de inocência. Não, o espírito humano é muito vasto, gostaria de o reduzir. Como entendê-lo? O coração descobre a beleza na própria vergonha, no ideal de Sodoma, que é o da grande maioria. Percebes este mistério? É o duelo do Demónio e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha... Mas entremos no assunto."


Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 119. 

Monday, July 15, 2024

ANIVERSÁRIO


 



"Não é verdade
que Deus nos queira mal

mas nos seus caminhos
sempre são pisadas
sob amor
algumas ervas."


Carlos Poças Falcão, "Pequeno Livro Azul"(31), in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 372.

Sunday, July 14, 2024

A ARTE

 




"Faço descobertas que levam ao silêncio:
o esculpir das folhas, o burilar dos ramos, 
o canto do canteiro que lavra as cantarias.
Basta abrir rosáceas para que as pedras fiquem vivas
e o tempo abrase um pouco o espírito nos veios, 
o gesto nas matérias. Quando a mão se petrifica
alcança a maior arte, a arte do cantor
que se decanta. Talhar então as rosas
nessa textura branca, lavrar então os frisos
na petrificação: e fica-se a brilhar
da transparência encastoada - palavra
na palavra, a obra à mão, a face na portada."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 230.

EXISTÊNCIA ESCURA

 



"Já nada mais serei senão um homem:
engano por engano, esse me acalma.
Entretanto visto-me, abro o gavetão,
retiro de uma sombra roupa humana.
Forros, paramentos, a igualdade
do peito das camisas, essa falha
de qualquer filosofia. Aos pés da cama o sol
e terra nos sapatos: assim é o meu quarto,
lençóis ainda quentes, um modo de trocar
de temperatura. Ou a costura exacta
de outra respiração - fios, alinhavos,
pespontos de luz numa existência escura."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 215.

Saturday, July 13, 2024

JOELHOS

 



" - É a propósito de Diderot que Vossa Reverência diz isso?
- Não, não é a propósito de Diderot. Em especial, não minta a si mesmo. Quem mente a si mesmo e escuta a própria mentira acaba por não discernir a verdade, e perde o respeito por si e pelos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar, e para se ocupar e distrair, à falta de amor, abandona-se às paixões e aos prazeres grosseiros. Vai até à bestialidade dos vícios, e tudo originado pela mentira contínua. O que mente a si mesmo pode ser o primeiro a ultrajar-se. Às vezes sentimos certo deleite em nos insultarmos, não é assim? Um indivíduo sabe que ninguém o ofendeu, mas que ele próprio é que forjou uma ofensa, deturpando o sentido duma palavra, fazendo dum montículo uma montanha. Sabe-o, e no entanto é o primeiro a insultar-se até experimentar com isso grande satisfação; e por aí chega ao verdadeiro ódio... Mas não esteja de joelhos, vá sentar-se. Também essa atitude é falsa..."


Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 50. 

Friday, July 12, 2024

BRANDA



"Um movimento de incerteza move a alma:
posição ou velocidade, a voz as perde
por excessiva luz, ou porque é branda
a existência. Não pode ser predito
o movimento e mesmo o seu repouso
parece errar à morte, por decaimento.
Sobram os vestígios, as auras e os rastros, 
sistemas de ilusão. Memórias que desviam 
então todo o fulgor, aparecendo o mundo
sob o poder do tempo, cego de experiências.
Mas há conhecimento quando por exactidão
o exterior da terra visita a pedra oculta."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 219. 

Thursday, July 11, 2024

BENEDICTUS

 



"Perdida assim a ferramenta, o godo foi, a tremer, à procura do monge Mauro; contou-lhe o prejuízo que causara e penitenciou-se da culpa. Mauro tratou logo de comunicar o sucedido ao servo de Deus Bento. E Bento, homem de Deus, ouvida a narração, foi ao local, pegou da mão do godo no cabo e meteu-o na água. Imediatamente, o ferro veio à tona e se encaixou no cabo. E sem mais, Bento entregou-o ao godo com estas palavras:
- Aí tens! Trabalha, e não estejas triste!"


São Gregório Magno, Vida de S. Bento - II Livro dos Diálogos de S. Gregório, IX, Porto/Mosteiro de São Bento da Vitória: Edições Ora & Labora, 1993, p. 75.

Wednesday, July 10, 2024

NOS DIAS DE CHUVA

 



"Nos dias de chuva não é tão simples ver
a orientação dos cumes, os movimentos altos
que se manifestam numa incerteza estranha.
Banha-nos a água, em sossego, como plantas.
Países inteiros deixam-se molhar, assentem
na precipitação. Mas tudo desconhecem
dos caules que estremecem, das ramificações.
Apenas ficam escuros, trabalham, ficam escuros.
Durante as estações tanta coisa quer morrer!
Um aguaceiro, porém, encanta as folhas,
perfuma as argilas, e um dia é consumado
para exemplo da alma, sem sombras, mas difuso."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 217.

Monday, July 8, 2024

SOBRE A MESA

 



"Disponho sobre a mesa os objectos. Eles sonham
uma fronte, cantam a voz que os nomeia:
frutos, água, o sal cujo fulgor é semelhante
a uma estrela. Agora é o silêncio convocado
para estas raridades: um traço de luz, uma corrente
soprada sobre o mundo. A mesa assenta
quatro colunas de freixo sobre a terra e as maravilhas
vêm ao meu rosto, sonho aqueles ritmos
talhados, aqueles nomes transformados
num assombro. E a ordem alastra sobre a mesa
como uma fragrância, um alimento.
Há uma força que não desliga a voz,
os elementos, esses objectos que me purificam.
E verto agora o vinho e distribuo o pão
segundo as direcções: esta é uma casa
onde vou dormir e acordar, é uma estância
junto dos segredos. Os números invadem
a tranquilidade com a sua permanência
tranquila. Os olhos pousam. As mãos
não fendem o ar. Porque o mundo está disposto
como uma palavra sagrada."


Carlos Poças Falcão, "Rotações", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 156.

Sunday, July 7, 2024

CLEMENTE

 


"Todos os caracteres nobres não adquirem, sem doloroso aprendizado, a desconsoladora ciência que se chama cepticismo. Cada ilusão que se desvanece é um golpe fundo no mais sensível da alma, e os conflitos da vida social deixam feridas que só lentamente cicatrizam."


Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto: Livraria Civilização, 1972, p. 271. 

Saturday, July 6, 2024

MORITUROS

 


"Eternidade:
os morituros te saúdam.

Valeu a pena farejar-te
na traça dos livros
e nos chamados instantes inesquecíveis.

Agónico
Em êxtase
em pânico
em paz
o mundo-de-cada-um dilata-se até às lindes
do acabamento perfeito.
Eternidade:
existe a palavra,
deixa-se possuir, na treva tensa.

Incomunicável
o que deciframos de ti
e nem a nós mesmos confessamos.

Teu sorriso não era de fraude.
Não cintilas como é costume dos astros.
Não és responsável pelo que bordam em tua corola
os passageiros da presiganga.

Eternidade,
os morituros te beijaram."


Carlos Drummond de Andrade, 65 Anos de Poesia, 2.ª ed., org. Arnaldo Saraiva, Lisboa: Edições «O Jornal», 1989, p. 188.

Friday, July 5, 2024

ÁRVORES

 



"Há sempre a laranjeira no quintal.
Ali a verde salsa. Além a hortelã.
Ao fundo o limoeiro. E um pardal.
Chove lentamente. Do caleiro
O marulhar da água. Sobre a casa
a sonolência. O gato a ronronar.
Abra-se a janela para me maravilhar.
Ainda sou pequeno. Estou ainda a acumular
tardes como essa, líquidas e verdes.
Passem muitos anos para aqui as inventar."


Carlos Poças Falcão, "O Número Perfeito", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 49.

Thursday, July 4, 2024

ESMERILHADA

 



"O padre apelou para o fidalgo, que nisto porém decidiu a favor do filho.
Os convidados para o jantar eram todos da mais genuína fidalguia da província. Por muitas daquelas veias andava glóbulo de sangue, que já pertencera a Fuas Roupinho ou a Egas Moniz e que por um mistério fisiológico, que só se dá naquela ermerilhada casta, conseguira transmitir-se inteiro de veias para veias, através de vinte gerações, com o fim providencial de manter inabaláveis os brios da raça."


Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto: Livraria Civilização, 1972, p. 171.

Tuesday, July 2, 2024

NAS CASAS

 




"Hei-de entrar nas casas
também

como o silêncio

A ver os retratos dos mortos
nas paredes
um bombeiro um menino

A ver os monogramas bordados nos lençóis

os vestidos virados
os vestidos tingidos
os diplomas de honra
as redomas

E a caderneta de Socorros Mútuos
e Fúnebres

em atraso"



António Reis, Poemas Quotidianos, Lisboa: Tinta da China, 2017, p. 35.

Monday, July 1, 2024

RANGIDO (para a memória de Ismaïl Kadaré)

 



"A cada rangido da porta, Mark-Alem estremecia até à medula dos ossos.
- Os sonhos do primeiro período de servidão... - disse o arquivista apontando para as estantes correspondentes -, ou, como também se lhes chama, os sonhos da primeira servidão, a fim de os distinguir dos sonhos posteriores, ou seja, do cativeiro profundo. De facto, são muito diferentes uns dos outros. É tal qual como os primeiros amores, que diferem dos seguintes. E daqui até ao fundo desta sala são classificadas as pastas dos grandes delírios."


Ismaïl Kadaré, O Palácio dos Sonhos, trad. Gemeniano Cascais Franco, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992, p. 122.

CONTEMPLADORES

 



"Jorge sorria ao ouvir o irmão, e tornou placidamente:
- Que homem este! A poesia precisa de ter quem a entenda e quem a faça; e olha que nem sempre os que a entendem a fazem, nem os que a fazem a entendem. Esta pobre gente do campo é uma parte integrante dele; não o contemplam, contemplam-no. Que querias tu? Gostavas talvez mais de que em vez dessa gente indiferente, que trabalha, estivessem por aí os montes, os vales e as ribeiras povoadas de poetas contempladores como tu? Deves confessar que seria um campo bem ridículo esse. Se eu até, para que te diga a verdade, estou persuadido de que não encontraria encantos nos lugares muito visitados, que há por as quatro partes do mundo, onde, a cada momento, apreciadores ingleses, franceses, russos e alemães passeiam, soltando exclamações poliglotas, e onde o nosso entusiasmo nos é prescrito a páginas tantas do Guia do Viajante. O que torna os lavradores poéticos é a inconsciência com que eles o são."



Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto: Livraria Civilização, 1972, p. 21.

Sunday, June 30, 2024

PETRUS

 


"É preciso não tocar demasiado no mundo, na sua superfície resguardada. Deus cobre-nos de sinais, sepulta cidades inteiras que se atarefavam, gosta de silêncio, faz grandes vazios. Não podemos recusar esse manto que obscurece a terra e a protege, essa paciente calafetação que faz cada coisa navegar no meio de outras."


Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 37. 

Friday, June 28, 2024

A MONTANHA E O VALE

 



"«Sou alta» - diz a Amizade.
«Sou profundo» - diz o Amor.
E lembram bem, na verdade,
Montanha e vale, ao sol-pôr,
Pois antes que o sol resvale
Ao pélago, onde se banha,
Já dorme em sombras o vale
E há ainda sol na montanha."



João Saraiva, in Líricas Portuguesas - segunda série, seleç. Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália Editora, s.d., p. 59.

Thursday, June 27, 2024

DOMÍNIO

 


"Um dos maiores génios do século XVII, Hobbes, conhecia perfeitamente as leis naturais, embora, por vezes, fosse excessivamente longe. Montesquieu corrigiu o que havia de excessivo no sistema do filósofo inglês e, nas necessidades particulares de cada sociedade, encontrou a origem de todas as coisas. Tornou-nos, assim, confidentes dos legisladores ao descobrir as molas da sua política. Mas os esforços para iludir as leis da Natureza foram gerais e por isso, ainda hoje, as nossas leis, na sua maioria, são meras reminiscências do feudalismo. O desejo de dominar os povos gerou a aliança entre o sacerdócio e o império. Uma tal aliança poderia ter sido vantajosa para os povos se, por meio de uma religião sensata, a sua função se tivesse limitado a mantê-los obedientes à lei. Mas como o que se desejava era submetê-los a um despotismo arbitrário, recorreram a todas as alvitantes espécies de fanatismo. Viu-se então uma teocracia pregar um Deus feroz em vez de um Deus clemente - e o espírito das trevas turvou a claridade."


Giuseppe Gorani, Portugal - A Corte e o País nos anos de 1765 a 1767, trad. Castelo-Branco Chaves, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 61. 

Monday, June 24, 2024

DAQUELE S. JOÃO

 



"Daquele que não tinha inda pisado
A terra com seus pés, quando saltava
As entranhas da mãi, donde alcançava
O Senhor nas da Virgem encarnado;

Daquele de quem Deus foi baptizado,
Daquele que foi voz do que clamava,
Daquele S. João, que tanto amava
A Deos, e que de Deos foi tão amado.

As graças infinitas, os favores,
As forças que lhe deu divino amor,
As novas liberdades, os poderes,

Mal os podem cantar os pecadores:
Basta, que deste só diz o Senhor:
«Que não nasceu maior entre as mulheres»."



Frei Agostinho da Cruz, Sonetos e Elegias, ed. António Gil Rafael, Lisboa: Hiena Editora, 1994, p. 50.

Sunday, June 23, 2024

CONCILIAR


 

"À noite, depois de ter subido para o quarto, corrido a cortina e acendido a luz, experimentou de súbito uma sensação angustiosa de soledade e como que uma espécie de temor daqueles de quem quisera distanciar-se. Estivera até então habituado a achar-se com companhia a todas as horas, pronto a todo o momento a responder a quaisquer perguntas e tendo assegurado um ouvinte sempre que se sentisse com disposição para falar. Agora, pelo contrário, rodeava-o o silêncio, um silêncio tão absoluto que, à força de acostumado a coisa diversa, esperava a cada instante que alguém lhe dirigisse a palavra e parecia-lhe sentir vozes que, todavia, não existiam. A sua mente, que até à data expandira todo o pensamento em frases articuladas em voz alta, começou a congestionar-se de embriões de ideias que germinavam e rompiam o seu invólucro, lutando por abrirem passagem e determinando, assim, um mal-estar que o impedia de conciliar o sono."


August Strindberg, Gente de Hemsö, trad. livre César de Frias, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1972, p. 36. 

DANAIDE

 


"Possa eu tornar-me pedra, 
da pedra areia, da rocha
grão, do diamante brilho.

Endureça eu como concha
de água matricial, minério
de cobre, coração cristalino.

Seja eu alimento imperfeito
de clareza perfeita, mar denso, 
condensado, astral e puro. 

Seja eu mel coagulado
d'orvalho e ouro vivo."


Ana Marques Gastão, Adornos, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2011, p. 76. 

Saturday, June 22, 2024

PRIMEIRO PLANO

 


"Convém, com efeito, distinguir entre a beleza do ideal e o sublime. No ideal, a interioridade penetra de de tal modo a realidade, que há, entre uma e outra, perfeita correspondência na qual reside, precisamente, a razão da sua interpenetração. No sublime, pelo contrário, o exterior em que a substância está incarnada, tem um lugar inferior, desempenha um papel subordinado à substância; esta inferioridade e subordinação são a única condição requerida para que Deus, desprovido de forma e cuja essência não permite que se exprima em nada de profano e de finito, possa encontrar uma expressão visível numa obra de arte. No sublime, a significação aparece em primeiro plano e é tal a sua independência que todo o exterior fica, perante ela, num estado de total subordinação, entendendo por isto que, em vez de implicar e revelar o interior, só o representa ultrapassando-o."


Hegel, Estética - A Arte Simbólica, trad. Orlando Vitorino, 2.ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1970, p. 132. 

Friday, June 21, 2024

OBEDECE

 




"Poeta meu, obedece!
Às tuas ordens, Senhor.
Toma: estas são as mil canseiras que te quero hoje impor.
Alegremente as acolho, Senhor, pois tu sabes a medida das minhas
                                        [forças e conheces o que é melhor para mim.
Não, antes te concedo um dia todo de levezas e esquecimentos.
Oh, Senhor, que eu consiga vencer tamanha prova!"

Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 95. 

Thursday, June 20, 2024

BARROCO (para a memória de Donald Sutherland)

 


"O excesso, mesmo enquanto superação de um limite e de um confim, é decerto mais desestabilizador. De resto, qualquer acção, obra ou indivíduo excessivo quer pôr em causa uma ordem qualquer, talvez destruí-la, ou construir outra nova. E, por outro lado, qualquer sociedade ou sistema de ideias acusa de excesso aquele que não pode nem quer absorver. Toda a ordem produz um auto-isolamento e define, banindo-o, todo o excesso. O inimigo torna-se inimigo cultural, «bárbaro», grande invenção da civilização clássica."


Omar Calabrese, A Idade Neobarroca, trad. Carmen de Carvalho e Artur Morão, Lisboa: Edições 70, 1988, p. 72. 

MASSA

 


"Noutros termos: graças à arquitectura, o inorgânico munto exterior é sujeito a uma purificação, é ordenado segundo as regras da simetria, aproxima-se do espírito, e o templo de Deus, a casa da sua comunidade, ergue-se acabada. Em seguida, Deus entra no templo, rasgando e penetrando a massa inerte com o relâmpago da individualidade, e a forma infinita, já não apenas simétrica, do espírito apodera-se da materialidade do templo e torna-a digna do seu verdadeiro destino."


Hegel, Estética - A Ideia e o Ideal, vol. I, trad. Orlando Vitorino, Lisboa: Guimarães Editores, 1952, p. 183. 

Wednesday, June 19, 2024

INUMANO

 


"Se tocares no inumano para ele ressoar
fazendo-lhe a pergunta
não te deixes seduzir pelo canto que ele emite
pois todo desafina e a sua voz não é de paz

as circunvoluções são o esconderijo grato
dos que o coração expulsa
ir do coração ao cérebro parece uma subida
mas é um descentramento

quando hordas de ideias de gog e de magog
devastam os caminhos para devassar o centro
encontram só a cerne de um coração sangrento

entretanto a inteligência é um país harmonioso
e cheio de coragem
aí nenhuma voz espera pelo fruto - mas ele sempre vem
bastava um grão de pó para haver um universo
e o coração sagrado no peito soberano
pede o canto aos homens e aos pássaros o voo."



Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 73.

AS RELAÇÕES AMIGÁVEIS.

 


"A ideia possui, hoje, uma existência mais profunda que já se não presta à expressão sensível: é o conteúdo da nossa religião e da nossa cultura. Hoje, a arte apresenta um aspecto diferente do que teve em épocas anteriores. E esta ideia mais profunda, cujo ponto externo é representado pelo cristianismo, escapa inteiramente à expressão sensível. Nada tem de comum com o mundo da sensibilidade e em nada afecta as relações amigáveis. Na hierarquia dos meios que servem para exprimir o absoluto, a religião e a cultura provindas da razão, ocupam o grau mais elevado, muito superior ao da arte."


Hegel, Estética - A Ideia e o Ideal, vol. I, trad. Orlando Vitorino, Lisboa: Guimarães Editores, 1952, p. 47.   

Monday, June 17, 2024

O DEUS

 




"Silencioso, último, sem préstimo, obscuro
assim anda entre nós. Atravessa as ruas
vai no movimento, o mundo é tão brilhante

que na verdade cega. Assim recolhe as provas
acerca de não vermos. Buscamos só imagens
que desprendam mais imagens, leques de escondermos
a nossa própria face - e assim anda entre nós
guardando o que perdemos, o que recusamos.

Passa entre ruídos, pára em velocidades
confirma a inversão das luzes e dos séculos.
Silencioso, último, sem préstimo, obscuro
aí vem, com seu sorriso, a face arcaica: o Deus."


Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 59.

Sunday, June 16, 2024

ÉCLOGA


 

"Nestes dias de lançar a calda bordalesa às laranjeiras
é bom que vás até ao fundo dos quintais
à estrema dos campos onde sem perturbação
teceram seus silêncios e sussurros deuses rústicos.
É possível que haja ninhos sobre um musgo muito espesso
porque as tardes aí passaram feitas ao correr da aragem
por amenos ócios vivos e cheirosos tons de mortos. 

Um homem quando surge é um animal enorme
e de algum modo só as pedras ficam 
paradas de terror e tudo o resto foge
- aves divindades animaizinhos frutos.
É o próprio lugar que todo se esquiva
quando o homem se aproxima
- e por isso a solidão de quem visita os muros
a sua tristeza de não se achar em casa
e o esforço de muito nomear e a violência 
de forçar uma presença mexendo no repouso
movendo o intocado perdendo para sempre
Morada e Companhia. 

Com o coração ferido o seu tamanho aumenta
e todo o ser deserta com pavor à sua vinda
- aves divindades animaizinhos frutos
E até as pedras não fugindo são tropeços
e as árvores tão chegadas obstáculos. 

As laranjeiras recebem entretanto a sua calda
abrirão mais tarde em flor.
- Oh!, vai ao fundo dos quintais, à estrema dos campos
e demora-te, demora-te
senta-te e levanta-te mas sempre devagar
imita um grande herbívoro pois ele não assusta
aves divindades animaizinhos frutos
e sobretudo espera 
chama com os olhos aceita com os ouvidos
vive estes aromas e pólenes e zumbidos
tu que nada vês sabe que és visto
até ao coração. 

Se te alegrares sem teres porquê  verás
em breve as divindades a regressar das matas
afastando as sebes repovoando os muros
trazendo atrás de si os cantos e os voos
entre as laranjeiras agora já caiadas
 - e o sopro da passagem
num cintilar de teias no interior de arbustos."


Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, pp. 20-21. 

Saturday, June 15, 2024

BEM-AVENTURADOS

 




"Bem-Aventurados os do Sono Profundo.
Na vigília os perdemos, sob a luz nos dissipamos
nossas forças abrem feridas pelo choque das vontades
em fuga e labirinto vão os túneis enredados
no que o tempo faz brilhar e o mesmo tempo apaga.

Sob estas galerias as ciências tumultuam
e povos confusos, a golpes, por rupturas
de cornos desejantes seguem os deuses mutantes.

Bem-aventurados os do Sono Profundo.
Mas em nós os primogénitos são mortos à nascença
perseguidos pelo rei que perverte o nosso peito.
E com velhos crimes começamos novos tempos."



Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 47.

Thursday, June 13, 2024

ANGÚSTIA

 


"E o Santo, vindo a ela, consolou-a e legitimamente se escusou da culpa que lhe era atribuída. E depois foi ter com o moço que cortara o pé, e fazendo sua oração devotamente e com angústia, agarrou no pé decepado, ajuntou-o à perna, sobre ele fez o sinal da Cruz, e tacteando com suas benditas mãos como se estivera a soldar ou a ungir a ferida, logo o pé ficou tão bem pegado como antes fora."


Livro dos Milagres ou Florinhas de Santo António de Lisboa, 2.ª ed, trad. Frei Fernando Félix Lopes, OFM, Braga: Editorial Franciscana, 2019, XXIX, p. 82. 

Wednesday, June 12, 2024

ORDEM DO INTENSO

 



"Quem ama é inquieto, um nostálgico do esforço. Na convocação da lonjura, o belo não entra em declínio. Amor e Poesia são da ordem do intenso."


Ana Marques Gastão, Lápis Mínimo, Lisboa: Oceanos, 2008, p. 44.

Tuesday, June 11, 2024

DESMESURA

 


"As palavras mais serenas podem ser o esboço de um drama. O martírio da nostalgia está em cada poente. Dar-te a mão, sobrando o corpo, contém o já transposto. Sustém a ave desmesurada."


Ana Marques Gastão, Lápis Mínimo, Lisboa: Oceanos, 2008, p. 49. 

Monday, June 10, 2024

VIVER

 




"Vivi: que me ficou da vida agora
Que baixo à sepultura? Não remorsos,
Vergonhas não. Para a corrida senda
Sem pejo os olhos de volver me é dado.
E tranquilo direi: vivi; - tranquilo
Direi: morro. Não dormem no jazigo
Os ossos do malvado? Não: contínuo,
Na inquieta campa, estão rangendo
Ao som das maldições, deixa de crimes,
Legado ímpio dos maus. Eu sossegado
Na terra de meus pais hei-de encostar-me..."


Almeida Garrett, Camões, ed. Teresa de Sousa Almeida, Lisboa: Editorial Comunicação, 1986, pp. 190-191.

Sunday, June 9, 2024

QUERER



" Cada cidade acrescentou a minha fuga
E o desvio aproximou-me do perigo.
Além do que mereço, além, agora
Queria ser deserto e trabalhar nos campos
Abençoando a fome enquanto ceifo o trigo."


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 165. 

Saturday, June 8, 2024

AMANTE

 


"amante verdadeiro
é uma árvore

imóvel
inelutável

raízes
desprendendo
os frutos

soltando
para que voem
em sementes
no âmbar
oblíquo
da aurora"


Alexandra Soares Rodrigues, retábulo das perguntas, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2024, p. 144.

Friday, June 7, 2024

LOUVARÁ

 




"Do Lima, donde vim já despedido,
Cavar cá nesta serra a sepultura,
Não sinto que louvor possa a brandura,
Sem me sentir turbar do meu sentido.

A lã de que me vem andar vestido,
Torcendo em várias partes a costura,
Os pés que nus se dão à pedra dura,
Nem me deixam ouvir, nem ser ouvido.

O povo cujo aplauso recebeste,
Vendo teu brando Lima dedicado
A príncipe real, claro, excelente,

Louvará muito mais quando escreveste.
De mim, meu caro irmão, menos louvado,
Louva comigo a Deos eternamente."



Frei Agostinho da Cruz, Sonetos e Elegias, ed. António Gil Rafael, Lisboa: Hiena Editora, 1994, p. 151.

Wednesday, June 5, 2024

SUCESSÃO

 


"O nosso pensamento, à semelhança de um vaso metálico, ressoa por muito tempo, quando, embora de leve, percutido; como ondas sonoras, as nossas recordações, movidas por uma palavra, por um som, por uma flor, por um perfume, sucedem-se, dilatam-se cada vez mais vastas, cada vez mais suaves, até se desvanecerem numa confusa imagem do passado, de formas indefinidas e vagas, mas por isso mesmo mais bela, mais inebriante ainda, num quase sonho, delicioso e grato como um murmúrio que termina o som, como o crepúsculo em que desmaia o dia, como o Outono que sucede à estação dos florescentes verdores."


Júlio Dinis, "As apreensões de uma mãe", in Serões da Província, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 15. 

Monday, June 3, 2024

TURIBULAÇÃO / TRIBULAÇÃO

 



"ouro para o rei
incenso para a turibulação do espírito
mirra para o refresco do morto."


Alexandra Soares Rodrigues, retábulo das perguntas, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2024, p. 115.

Sunday, June 2, 2024

SUMPTUOSO ROSTO


 


"Queria ver por dentro das artérias
o sabor do teu sumptuoso rosto
que não vejo; ouvir a brancura
aguda d'uns olhos sanguíneos
que me não vêem; provar
a espaços d' um tenebroso corpo,
dúbio de impaciência, ansioso
e incontido, ramo por nós ardido
mas que me alumia em abundância
num movimento de exalação acre.

Insones, seríamos único silêncio,
corpo liso de alfinete e pensar
analógico, texto, de degrau e dedos
vestidos de brasa e medo, como se,
terrífica, a memória se tornasse
mosto que dói de cima para baixo.
Poisada sobre o destino de três
fendas de cratera, cerebrais e ocas,
assim a morte fosse uma janela
e nós uma constelação infinita."


Ana Marques Gastão, Adornos, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2011, p. 77.

Saturday, June 1, 2024

O QUE OUÇO

 



"O que ouço não é meu, 
o que é meu não é daqui, 
o que sinto faz-me ser, 
ergue-me d'um chão morto.

O que escuto ignoro, 
o que almejo não alcanço, 
sou apenas este centro
de tronos sonoros, 
nexo entre a matéria
e a figura, carência
de em ti vir a ser
possibilidade absoluta."


Ana Marques Gastão, Adornos, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2011, p. 49.