Friday, July 26, 2024
NA PORTA
"Penso na porta onde deixei
passos alegres que não tenho
e nesse umbral vejo uma chaga
cheia de musgo e de silêncio."
Gabriela Mistral, Antologia Poética, trad. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Teorema, 2002, p. 54.
Thursday, July 25, 2024
SANCTÏAGO
Tuesday, July 23, 2024
COROA
Monday, July 22, 2024
MADALENA
"A corte dos celestes moradores
Da virtude da cruz hoje se espante,
Que entra uma pecadora triunfante
A dar posse da gloria a pecadores.
Quem das lagrimas fez conquistadores,
Bandeiras da vitoria no ceo plante;
E a gozar dos tesoures se levante,
De que os pés de Jesus foram penhores.
Dele tira o remedio eficaz,
Que o ceo, a terra, a vida, a morte, a culpa,
Abre, apura, reforma, vence, apaga.
Alquimia, que da ofensa fez desculpa,
Diluvio, em que se salva quem se alaga,
São milagres de amor, que só Deos faz."
Sunday, July 21, 2024
SALVAÇÃO
Saturday, July 20, 2024
MANIFESTO MÍNIMO
"Neste humanismo abafa-se - e não sem um tremor
armamo-nos dos verbos de um programa insubmisso:
calar e apagar, desconectar, desaparecer.
Manda a democracia que falemos? Nós calamos.
Exige o espectáculo mais brilho? Apagamo-nos.
Devemos estar em rede e ao serviço? Desligamo-nos.
A Coisa Absurda chama-nos? Ah, não comparecemos!
Friday, July 19, 2024
FOLHAS
"Recorda-te dos bosques de Academos
da sua arte antiga.
Mas hoje a suspeição não te permite
argumentar entre os acantos
eternizar por folhas de hera, concluir
junto aos abetos, subindo entre veredas
de sombras com as sombras pelas sombras.
Estás contaminado por saberes funestos:
que todo te agitas num vazio de electrões
e sem sentido arde qualquer coisa de passagem."
Thursday, July 18, 2024
DOS MILAGRES
" - Não perdi a razão, descansa - proferiu este com olhar fixo e quase solene. - Sei o que digo; creio nos milagres.
- Nos milagres?
- Nos milagres da Providência. Deus conhece o que se passa no meu coração, vê o meu desespero. Não deixará realizar-se semelhante horror. Creio nos milagres, Aliocha. Vai lá..."
Tuesday, July 16, 2024
DUELO
"Nós, Karamazov, somos todos assim. O insecto vive em ti, que és um anjo, e desencadeia tempestades. Porque a volúpia é uma tempestade, ou mais do que isso. A beleza é uma coisa terrível e assustadora. Terrível por ser indefinível, e não se pode defini-la porque Deus criou enigmas. Os extremos tocam-se, as contradições vivem a par. Sou pouco instruído, irmão, mas penso muito nestas coisas. Quantos mistérios! Por exemplo, a beleza. Não suporto que um homem comece pelo ideal da Madona e acabe no de Sodoma. Mas muito pior é trazer no coração o ideal de Sodoma e não repudiar o da Madona, sentindo por este o mesmo entusiasmo dos seus anos de inocência. Não, o espírito humano é muito vasto, gostaria de o reduzir. Como entendê-lo? O coração descobre a beleza na própria vergonha, no ideal de Sodoma, que é o da grande maioria. Percebes este mistério? É o duelo do Demónio e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha... Mas entremos no assunto."
Fedor Dostoievski, Os irmãos Karamazov, vol. I, trad. Maria Franco rev. M. J. Meco, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 119.
Monday, July 15, 2024
ANIVERSÁRIO
"Não é verdade
que Deus nos queira mal
mas nos seus caminhos
sempre são pisadas
sob amor
algumas ervas."
Carlos Poças Falcão, "Pequeno Livro Azul"(31), in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 372.
Sunday, July 14, 2024
A ARTE
EXISTÊNCIA ESCURA
"Já nada mais serei senão um homem:
engano por engano, esse me acalma.
Entretanto visto-me, abro o gavetão,
retiro de uma sombra roupa humana.
Forros, paramentos, a igualdade
do peito das camisas, essa falha
de qualquer filosofia. Aos pés da cama o sol
e terra nos sapatos: assim é o meu quarto,
lençóis ainda quentes, um modo de trocar
de temperatura. Ou a costura exacta
de outra respiração - fios, alinhavos,
pespontos de luz numa existência escura."
Saturday, July 13, 2024
JOELHOS
Friday, July 12, 2024
BRANDA
Thursday, July 11, 2024
BENEDICTUS
Wednesday, July 10, 2024
NOS DIAS DE CHUVA
"Nos dias de chuva não é tão simples ver
a orientação dos cumes, os movimentos altos
que se manifestam numa incerteza estranha.
Banha-nos a água, em sossego, como plantas.
Países inteiros deixam-se molhar, assentem
na precipitação. Mas tudo desconhecem
dos caules que estremecem, das ramificações.
Apenas ficam escuros, trabalham, ficam escuros.
Durante as estações tanta coisa quer morrer!
Um aguaceiro, porém, encanta as folhas,
perfuma as argilas, e um dia é consumado
para exemplo da alma, sem sombras, mas difuso."
Monday, July 8, 2024
SOBRE A MESA
"Disponho sobre a mesa os objectos. Eles sonham
uma fronte, cantam a voz que os nomeia:
frutos, água, o sal cujo fulgor é semelhante
a uma estrela. Agora é o silêncio convocado
para estas raridades: um traço de luz, uma corrente
soprada sobre o mundo. A mesa assenta
quatro colunas de freixo sobre a terra e as maravilhas
vêm ao meu rosto, sonho aqueles ritmos
talhados, aqueles nomes transformados
num assombro. E a ordem alastra sobre a mesa
como uma fragrância, um alimento.
Há uma força que não desliga a voz,
os elementos, esses objectos que me purificam.
E verto agora o vinho e distribuo o pão
segundo as direcções: esta é uma casa
onde vou dormir e acordar, é uma estância
junto dos segredos. Os números invadem
a tranquilidade com a sua permanência
tranquila. Os olhos pousam. As mãos
não fendem o ar. Porque o mundo está disposto
como uma palavra sagrada."
Carlos Poças Falcão, "Rotações", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 156.
Sunday, July 7, 2024
CLEMENTE
"Todos os caracteres nobres não adquirem, sem doloroso aprendizado, a desconsoladora ciência que se chama cepticismo. Cada ilusão que se desvanece é um golpe fundo no mais sensível da alma, e os conflitos da vida social deixam feridas que só lentamente cicatrizam."
Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, Porto: Livraria Civilização, 1972, p. 271.
Saturday, July 6, 2024
MORITUROS
"Eternidade:
os morituros te saúdam.
Valeu a pena farejar-te
na traça dos livros
e nos chamados instantes inesquecíveis.
Agónico
Em êxtase
em pânico
em paz
o mundo-de-cada-um dilata-se até às lindes
do acabamento perfeito.
Eternidade:
existe a palavra,
deixa-se possuir, na treva tensa.
Incomunicável
o que deciframos de ti
e nem a nós mesmos confessamos.
Teu sorriso não era de fraude.
Não cintilas como é costume dos astros.
Não és responsável pelo que bordam em tua corola
os passageiros da presiganga.
Eternidade,
os morituros te beijaram."
Friday, July 5, 2024
ÁRVORES
"Há sempre a laranjeira no quintal.
Ali a verde salsa. Além a hortelã.
Ao fundo o limoeiro. E um pardal.
Chove lentamente. Do caleiro
O marulhar da água. Sobre a casa
a sonolência. O gato a ronronar.
Abra-se a janela para me maravilhar.
Ainda sou pequeno. Estou ainda a acumular
tardes como essa, líquidas e verdes.
Passem muitos anos para aqui as inventar."
Thursday, July 4, 2024
ESMERILHADA
Tuesday, July 2, 2024
NAS CASAS
"Hei-de entrar nas casas
também
como o silêncio
A ver os retratos dos mortos
nas paredes
um bombeiro um menino
A ver os monogramas bordados nos lençóis
os vestidos virados
os vestidos tingidos
os diplomas de honra
as redomas
E a caderneta de Socorros Mútuos
e Fúnebres
em atraso"
António Reis, Poemas Quotidianos, Lisboa: Tinta da China, 2017, p. 35.
Monday, July 1, 2024
RANGIDO (para a memória de Ismaïl Kadaré)
CONTEMPLADORES
Sunday, June 30, 2024
PETRUS
"É preciso não tocar demasiado no mundo, na sua superfície resguardada. Deus cobre-nos de sinais, sepulta cidades inteiras que se atarefavam, gosta de silêncio, faz grandes vazios. Não podemos recusar esse manto que obscurece a terra e a protege, essa paciente calafetação que faz cada coisa navegar no meio de outras."
Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 37.
Friday, June 28, 2024
A MONTANHA E O VALE
«Sou profundo» - diz o Amor.
E lembram bem, na verdade,
Montanha e vale, ao sol-pôr,
Pois antes que o sol resvale
Ao pélago, onde se banha,
Já dorme em sombras o vale
E há ainda sol na montanha."
Thursday, June 27, 2024
DOMÍNIO
"Um dos maiores génios do século XVII, Hobbes, conhecia perfeitamente as leis naturais, embora, por vezes, fosse excessivamente longe. Montesquieu corrigiu o que havia de excessivo no sistema do filósofo inglês e, nas necessidades particulares de cada sociedade, encontrou a origem de todas as coisas. Tornou-nos, assim, confidentes dos legisladores ao descobrir as molas da sua política. Mas os esforços para iludir as leis da Natureza foram gerais e por isso, ainda hoje, as nossas leis, na sua maioria, são meras reminiscências do feudalismo. O desejo de dominar os povos gerou a aliança entre o sacerdócio e o império. Uma tal aliança poderia ter sido vantajosa para os povos se, por meio de uma religião sensata, a sua função se tivesse limitado a mantê-los obedientes à lei. Mas como o que se desejava era submetê-los a um despotismo arbitrário, recorreram a todas as alvitantes espécies de fanatismo. Viu-se então uma teocracia pregar um Deus feroz em vez de um Deus clemente - e o espírito das trevas turvou a claridade."
Giuseppe Gorani, Portugal - A Corte e o País nos anos de 1765 a 1767, trad. Castelo-Branco Chaves, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 61.
Monday, June 24, 2024
DAQUELE S. JOÃO
"Daquele que não tinha inda pisado
A terra com seus pés, quando saltava
As entranhas da mãi, donde alcançava
O Senhor nas da Virgem encarnado;
Daquele de quem Deus foi baptizado,
Daquele que foi voz do que clamava,
Daquele S. João, que tanto amava
A Deos, e que de Deos foi tão amado.
As graças infinitas, os favores,
As forças que lhe deu divino amor,
As novas liberdades, os poderes,
Mal os podem cantar os pecadores:
Basta, que deste só diz o Senhor:
«Que não nasceu maior entre as mulheres»."
Sunday, June 23, 2024
CONCILIAR
DANAIDE
Saturday, June 22, 2024
PRIMEIRO PLANO
"Convém, com efeito, distinguir entre a beleza do ideal e o sublime. No ideal, a interioridade penetra de de tal modo a realidade, que há, entre uma e outra, perfeita correspondência na qual reside, precisamente, a razão da sua interpenetração. No sublime, pelo contrário, o exterior em que a substância está incarnada, tem um lugar inferior, desempenha um papel subordinado à substância; esta inferioridade e subordinação são a única condição requerida para que Deus, desprovido de forma e cuja essência não permite que se exprima em nada de profano e de finito, possa encontrar uma expressão visível numa obra de arte. No sublime, a significação aparece em primeiro plano e é tal a sua independência que todo o exterior fica, perante ela, num estado de total subordinação, entendendo por isto que, em vez de implicar e revelar o interior, só o representa ultrapassando-o."
Hegel, Estética - A Arte Simbólica, trad. Orlando Vitorino, 2.ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1970, p. 132.
Friday, June 21, 2024
OBEDECE
"Poeta meu, obedece!
Às tuas ordens, Senhor.
Toma: estas são as mil canseiras que te quero hoje impor.
Alegremente as acolho, Senhor, pois tu sabes a medida das minhas
[forças e conheces o que é melhor para mim.
Não, antes te concedo um dia todo de levezas e esquecimentos.
Oh, Senhor, que eu consiga vencer tamanha prova!"
Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 95.
Thursday, June 20, 2024
BARROCO (para a memória de Donald Sutherland)
"O excesso, mesmo enquanto superação de um limite e de um confim, é decerto mais desestabilizador. De resto, qualquer acção, obra ou indivíduo excessivo quer pôr em causa uma ordem qualquer, talvez destruí-la, ou construir outra nova. E, por outro lado, qualquer sociedade ou sistema de ideias acusa de excesso aquele que não pode nem quer absorver. Toda a ordem produz um auto-isolamento e define, banindo-o, todo o excesso. O inimigo torna-se inimigo cultural, «bárbaro», grande invenção da civilização clássica."
Omar Calabrese, A Idade Neobarroca, trad. Carmen de Carvalho e Artur Morão, Lisboa: Edições 70, 1988, p. 72.
MASSA
"Noutros termos: graças à arquitectura, o inorgânico munto exterior é sujeito a uma purificação, é ordenado segundo as regras da simetria, aproxima-se do espírito, e o templo de Deus, a casa da sua comunidade, ergue-se acabada. Em seguida, Deus entra no templo, rasgando e penetrando a massa inerte com o relâmpago da individualidade, e a forma infinita, já não apenas simétrica, do espírito apodera-se da materialidade do templo e torna-a digna do seu verdadeiro destino."
Hegel, Estética - A Ideia e o Ideal, vol. I, trad. Orlando Vitorino, Lisboa: Guimarães Editores, 1952, p. 183.
Wednesday, June 19, 2024
INUMANO
"Se tocares no inumano para ele ressoar
fazendo-lhe a pergunta
não te deixes seduzir pelo canto que ele emite
pois todo desafina e a sua voz não é de paz
as circunvoluções são o esconderijo grato
dos que o coração expulsa
ir do coração ao cérebro parece uma subida
mas é um descentramento
quando hordas de ideias de gog e de magog
devastam os caminhos para devassar o centro
encontram só a cerne de um coração sangrento
entretanto a inteligência é um país harmonioso
e cheio de coragem
aí nenhuma voz espera pelo fruto - mas ele sempre vem
bastava um grão de pó para haver um universo
e o coração sagrado no peito soberano
pede o canto aos homens e aos pássaros o voo."
Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 73.
AS RELAÇÕES AMIGÁVEIS.
"A ideia possui, hoje, uma existência mais profunda que já se não presta à expressão sensível: é o conteúdo da nossa religião e da nossa cultura. Hoje, a arte apresenta um aspecto diferente do que teve em épocas anteriores. E esta ideia mais profunda, cujo ponto externo é representado pelo cristianismo, escapa inteiramente à expressão sensível. Nada tem de comum com o mundo da sensibilidade e em nada afecta as relações amigáveis. Na hierarquia dos meios que servem para exprimir o absoluto, a religião e a cultura provindas da razão, ocupam o grau mais elevado, muito superior ao da arte."
Hegel, Estética - A Ideia e o Ideal, vol. I, trad. Orlando Vitorino, Lisboa: Guimarães Editores, 1952, p. 47.
Monday, June 17, 2024
O DEUS
"Silencioso, último, sem préstimo, obscuro
assim anda entre nós. Atravessa as ruas
vai no movimento, o mundo é tão brilhante
que na verdade cega. Assim recolhe as provas
acerca de não vermos. Buscamos só imagens
que desprendam mais imagens, leques de escondermos
a nossa própria face - e assim anda entre nós
guardando o que perdemos, o que recusamos.
Passa entre ruídos, pára em velocidades
confirma a inversão das luzes e dos séculos.
Silencioso, último, sem préstimo, obscuro
aí vem, com seu sorriso, a face arcaica: o Deus."
Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 59.
Sunday, June 16, 2024
ÉCLOGA
Saturday, June 15, 2024
BEM-AVENTURADOS
"Bem-Aventurados os do Sono Profundo.
Na vigília os perdemos, sob a luz nos dissipamos
nossas forças abrem feridas pelo choque das vontades
em fuga e labirinto vão os túneis enredados
no que o tempo faz brilhar e o mesmo tempo apaga.
Sob estas galerias as ciências tumultuam
e povos confusos, a golpes, por rupturas
de cornos desejantes seguem os deuses mutantes.
Bem-aventurados os do Sono Profundo.
Mas em nós os primogénitos são mortos à nascença
perseguidos pelo rei que perverte o nosso peito.
E com velhos crimes começamos novos tempos."
Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães: Pedra Formosa, 2000, p. 47.
Thursday, June 13, 2024
ANGÚSTIA
"E o Santo, vindo a ela, consolou-a e legitimamente se escusou da culpa que lhe era atribuída. E depois foi ter com o moço que cortara o pé, e fazendo sua oração devotamente e com angústia, agarrou no pé decepado, ajuntou-o à perna, sobre ele fez o sinal da Cruz, e tacteando com suas benditas mãos como se estivera a soldar ou a ungir a ferida, logo o pé ficou tão bem pegado como antes fora."
Livro dos Milagres ou Florinhas de Santo António de Lisboa, 2.ª ed, trad. Frei Fernando Félix Lopes, OFM, Braga: Editorial Franciscana, 2019, XXIX, p. 82.
Wednesday, June 12, 2024
ORDEM DO INTENSO
"Quem ama é inquieto, um nostálgico do esforço. Na convocação da lonjura, o belo não entra em declínio. Amor e Poesia são da ordem do intenso."
Tuesday, June 11, 2024
DESMESURA
"As palavras mais serenas podem ser o esboço de um drama. O martírio da nostalgia está em cada poente. Dar-te a mão, sobrando o corpo, contém o já transposto. Sustém a ave desmesurada."
Ana Marques Gastão, Lápis Mínimo, Lisboa: Oceanos, 2008, p. 49.
Monday, June 10, 2024
VIVER
"Vivi: que me ficou da vida agora
Que baixo à sepultura? Não remorsos,
Vergonhas não. Para a corrida senda
Sem pejo os olhos de volver me é dado.
E tranquilo direi: vivi; - tranquilo
Direi: morro. Não dormem no jazigo
Os ossos do malvado? Não: contínuo,
Na inquieta campa, estão rangendo
Ao som das maldições, deixa de crimes,
Legado ímpio dos maus. Eu sossegado
Na terra de meus pais hei-de encostar-me..."
Sunday, June 9, 2024
QUERER
Saturday, June 8, 2024
AMANTE
"amante verdadeiro
é uma árvore
imóvel
inelutável
raízes
desprendendo
os frutos
soltando
para que voem
em sementes
no âmbar
oblíquo
da aurora"
Friday, June 7, 2024
LOUVARÁ
"Do Lima, donde vim já despedido,
Cavar cá nesta serra a sepultura,
Não sinto que louvor possa a brandura,
Sem me sentir turbar do meu sentido.
A lã de que me vem andar vestido,
Torcendo em várias partes a costura,
Os pés que nus se dão à pedra dura,
Nem me deixam ouvir, nem ser ouvido.
O povo cujo aplauso recebeste,
Vendo teu brando Lima dedicado
A príncipe real, claro, excelente,
Louvará muito mais quando escreveste.
De mim, meu caro irmão, menos louvado,
Louva comigo a Deos eternamente."
Wednesday, June 5, 2024
SUCESSÃO
"O nosso pensamento, à semelhança de um vaso metálico, ressoa por muito tempo, quando, embora de leve, percutido; como ondas sonoras, as nossas recordações, movidas por uma palavra, por um som, por uma flor, por um perfume, sucedem-se, dilatam-se cada vez mais vastas, cada vez mais suaves, até se desvanecerem numa confusa imagem do passado, de formas indefinidas e vagas, mas por isso mesmo mais bela, mais inebriante ainda, num quase sonho, delicioso e grato como um murmúrio que termina o som, como o crepúsculo em que desmaia o dia, como o Outono que sucede à estação dos florescentes verdores."
Júlio Dinis, "As apreensões de uma mãe", in Serões da Província, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 15.
Monday, June 3, 2024
TURIBULAÇÃO / TRIBULAÇÃO
"ouro para o rei
incenso para a turibulação do espírito
mirra para o refresco do morto."
Sunday, June 2, 2024
SUMPTUOSO ROSTO
"Queria ver por dentro das artérias
o sabor do teu sumptuoso rosto
que não vejo; ouvir a brancura
aguda d'uns olhos sanguíneos
que me não vêem; provar
a espaços d' um tenebroso corpo,
dúbio de impaciência, ansioso
e incontido, ramo por nós ardido
mas que me alumia em abundância
num movimento de exalação acre.
Insones, seríamos único silêncio,
corpo liso de alfinete e pensar
analógico, texto, de degrau e dedos
vestidos de brasa e medo, como se,
terrífica, a memória se tornasse
mosto que dói de cima para baixo.
Poisada sobre o destino de três
fendas de cratera, cerebrais e ocas,
assim a morte fosse uma janela
e nós uma constelação infinita."
Ana Marques Gastão, Adornos, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2011, p. 77.
Saturday, June 1, 2024
O QUE OUÇO