Thursday, April 30, 2020

GONDAL - ANIVERSÁRIO





"As nuvens cobrem o horizonte
não deixando de pé pedra
ou arbusto a que a mão 
se agarre antes de se envolver
na corrente púrpura do precipício.
A tempestade apanhara-a 
no centro da linguagem
soltando emoções que colidem
com a turbulência de imagens
onde o fogo grassou sem deixar
sinais de vida que lhe permitam
um retorno feliz ao início."


[Fernando Guerreiro], Ventos Borrascosos, 100 Cabeças, 2019. 

Wednesday, April 29, 2020

CRENÇA



"Aquilo a que tantas vezes chamámos o paganismo da arte talvez seja a religião antiga e autêntica que ela encerra e que só encontramos na piedade da nossa infância e no deslumbramento da contemplação: na consciência de que o exterior e o interior são o mesmo e de que toda a fé assenta nessa unidade. Uma coisa parece-nos bela, acreditamos na sua beleza porque lhe damos toda a nossa alma. De igual modo, cremos na existência de Deus na vida porque damos à vida toda a nossa alma. Enquanto criaturas que os acolhem, cremos em ambos com humildade, embora sejamos nós a criá-los: mas apenas porque eles nos criaram a nós."

Lou Andréas-Salomé, Na Rússia com Rilke - Diário da Viagem com Rainer Maria Rilke em 1900, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 13. 

Tuesday, April 28, 2020

VIGOROSO



"Normalmente, seguia a sua fantasia e esculpia invariavelmente madonas: grandes madonas orgulhosas carregando nas pregas pesadas das suas mangas um Menino Jesus rechonchudo e vigoroso. Ou então senhoras insignificantes, desamparadas e desprotegidas, tão espantadas pela sua maternidade que pareciam prestes a pousar nalgum sítio, não se importava aonde, os seus minúsculos Salvadores num gesto de bênção. Outras ainda, envergando grandes coroas, estendiam as suas mãos numa dávida infinita de si próprias. Por vezes, em sinal de timidez e de confusão, cruzavam sobre o peito os seus braços cansados, e as suas pálpebras ficavam pesadas à força de estarem fechadas...
E finalmente, algumas delas tinham reclamado cor, um ar mais rosado nas suas faces, e mais rosado ainda nos seus lábios; e eis que a sua fisionomia se transformava e ficava com um ar muito mais são, mais vigoroso. Mas era a mesma expressão de gratidão em relação a Werner: deviam-lhe a vida. Teriam todas reunido os seus esforços para ajudar o rapaz a reencontrar o seu uso das pernas, paralisadas desde os seus dezasseis anos, se alguém ao menos se tivesse querido ajoelhar diante delas. Mas na sua maioria não tinham sido criadas sob encomenda. Era em vão que elas esperavam no sótão, uma ao lado das outras; nunca imaginariam que pudesse alguma vez chegar o dia em que todas elas se aliassem na mais profunda união a fim de conseguirem realizar o milagre. As pessoas da aldeia perguntavam-se muitas vezes como é que Werner não se cansava de esculpir essas virgens e os velhotes sacudiam as suas cabeças brancas num sinal simultâneo de admiração e reprovação. Sacrilégio! Quem é que poderia conhecer exactamente os traços da Virgem?
E Werner muito menos do que qualquer outro, já que a paralisia o tinha impedido desde sempre de ir à igreja."


Rainer Maria Rilke, "Traço Comum", in Histórias do Bom Deus e outros textos, trad. Maria Gabriela Cardote, Lisboa: Livros do Brasil, 1989, p. 27. 

Monday, April 27, 2020

ARRASTAR O MUNDO



"Sentou-se à espera que 
as últimas palavras
lhe indicassem o caminho
que o podia trazer de novo
à beira do precipício. 
Por várias vezes iniciou
o poema, mas, ao longe, 
um rumor levou-o a suspeitar
de uma presença que o parecia
sondar por entre os arbustos. 
Fizesse o que fizesse, era
sob o seu olhar que escrevia, 
elaborando cenários
a que depois as palavras
davam uma consistência
que no seu pensamento
ainda não possuíam:
escrevia para se inventar
uma saída para fora 
do poema, arrastando
o mundo para uma cerimónia
que só pelo Horror, 
no estertor dos signos, 
se sabia conseguida."

[Fernando Guerreiro], Ventos Borrascosos, 100 Cabeças, 2019. 

Sunday, April 26, 2020

O TEMPO DAS FLORES É DIFÍCIL




"O tempo das flores é difícil. Conhecemos 
agora o seu repouso, este rumor que desce
para as envolver. Tudo o que nos pertence 
é como a seiva desprendida: assim encontraremos
o que se afasta de nós. Talvez seja maior
a recordação que temos delas. Ficam mais simples 
à nossa volta. E seremos então o seu início."


Fernando Guimarães, "Fonte", in  Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 177. 

Saturday, April 25, 2020

A REVOLUÇÃO DAS FLORES




"Correspondendo a um apelo subterrâneo há vários dias que as dálias, as cinerárias, os gerânios e as hortências se recusam a florirem e os jasmineiros e as violetas a exalarem o seu aroma penetrante. De entre as rosas foram as vermelhas as primeiras a aderir. Comités de flores se formaram espontaneamente em todos os jardins reivindicam o direito de florir em qualquer estação do ano, medidas eficazes contra as arbitrariedades das floristas, a extinção pura e simples das estufas. 

Uma nuvem de pó cobre a cidade. Em vão a polícia controla os portos e as fronteiras. A exportação de bolbos e sementes foi suspensa entretanto. Na Madeira o movimento foi desencadeado pelas estrelícias. Tulipas que viajavam de avião e se destinavam a abastecer o mercado londrino murcharam colectivamente. No Extremo Oriente, crisântemos negros invadem as ruas de cidades como Tóquio e Pequim. Apanhadas e desprevenidas as borboletas, abelhas, vespas e outros insectos ensaiam agora perigosos voos sobre os transeuntes. Às dezasseis horas numa conferência de imprensa realizada no Jardim de S. Lázaro, um grupo não identificado de flores, mas entre as quais se podiam reconhecer alguns amores-perfeitos, proclamou o estado de felicidade permanente nos jardins."


Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 326. 

Friday, April 24, 2020

ASTRAL EXPERIÊNCIA





"Ainda é grande o silêncio
que temos dentro. Levamos
a sua lenta abóbada de tempo
cumprindo as estações e a rotação dos anos. 
Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo
a uma astral experiência. Vamos 
adquirindo essa tez translúcida dos velhos
que sabe à estrutura dos planaltos. 
E, um dia, iluminados, 
entraremos 
pelo portão sagrado, 
como quem deu por si em pensamento, 
com todo o seu silêncio iluminando."


Fernando Echevarría, "Figuras II", in Poesia, 1987-1991, Porto: Afrontamento, p. 122. 

Thursday, April 23, 2020

BIBLIOFILIA




"Mark-Alem esteve tentado a interrogá-lo sobre o que isto significava, mas não se atreveu. Ia atrás do arquivista que se insinuava nas estreitas passagens entre as estantes. O outro parou diante de uma prateleira que se arqueava sob o peso das pastas. 
- Temos aqui o fim do mundo segundo os povos que sofrem invernos muito ventosos."


Ismaïl Kadaré, O Palácio dos Sonhos, trad. Gemeniano Cascais Franco, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992, p. 121. 

Wednesday, April 22, 2020

TODO O SONO DO MUNDO



"Nestas pastas, encontrava-se todo o sono do mundo, esse medonho oceano, à superfície do qual eles se empenhavam em distinguir alguns indícios, alguns sinais perdidos. «Que desgraçados somos!» pensou de si para consigo."

Ismaïl Kadaré, O Palácio dos Sonhos, trad. Gemeniano Cascais Franco, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992, p. 76. 

Tuesday, April 21, 2020

O FUTURO


"Se a imagem é um sintoma - no sentido crítico e não clínico do termo -, se a imagem é um mal-estar na representação, é porque indica um futuro da representação, um futuro que ainda não sabemos ler, e nem sequer descrever."

Georges Didi-Huberman, Diante do Tempo, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2017, p. 266. 

Monday, April 20, 2020

HONROSO



"Deus não disse, como aconteceu relativamente às outras criaturas: «Faça-se o homem». Reconhece a tua dignidade. Tua origem não se encontra num mandamento. Deliberou Deus como viria à existência esse honroso ser vivo. «Façamos». Um sábio delibera, um artista raciocina. Acaso, a arte o abandonou, e ele, preocupado, quer dar a sua obra-prima trabalhado acabamento e perfeição? Ou busca te mostrar que és perfeito diante de Deus?"

Basílio de Cesareia, Primeira Homilia sobre a Origem do Homem, 3., trad. Roque Frangiotti, São Paulo: Paulus, 1998, p. 45. 

Sunday, April 19, 2020

TABIR SARRAIL




"Mas não se sentou. Limitou-se a tossicar, como quem se prepara para proferir uma alocução, após o que, olhando alternadamente para a porta e Mark-Alem, disse:
- Aqui no Tabir Sarrail não é a abertura, mas, muito pelo contrário, o fechamento às influências externas, não a abertura, mas o isolamento, e, por conseguinte, não a recomendação, mas justamente o seu oposto. Apesar de tudo, a partir deste dia, ficas nomeado para o nosso Palácio."


Ismaïl Kadaré, O Palácio dos Sonhos, trad. Gemeniano Cascais Franco, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992, p. 19. 

Saturday, April 18, 2020

ESPIRITUALISMO (para a memória do Divino Filipe Duarte)




"Como um vento de morte e de ruína, 
A Dúvida soprou sobre o Universo.
Fez-se noite de súbito, imerso
O mundo em densa e álgida neblina. 

Nem astro já reluz, nem ave trina, 
Nem flor sorri no seu aéreo berço. 
Um veneno sutil, vago, disperso, 
Empeçonhou a criação divina. 

E, no meio da noite monstruosa, 
Do silêncio glacial, que paira e estende
O seu sudário, donde a morte pende, 

Só uma flor humilde, misteriosa, 
Como um vago protesto da existência, 
Desabrocha no fundo da Consciência."


Antero de Quental, Sonetos Completos, Porto: Lello & Irmão, 1983, p. 148. 

Friday, April 17, 2020

A COMPREENSÃO




" - É preciso compreendê-las. Tu que és filósofo...
- Por isso mesmo: a tristeza está em compreender. Olha os animais, esses peixes que a ti dão tanta pena, recém-tirados dos anzóis, contraindo-se e saltando até morrer. Dói-lhes algum músculo, mas não estão tristes, porque nada lhes explicam ou tentam explicar. A angústia é compreender que nos falta algo e não sabemos o que é. Dentro de nós há um abismo sem fundo. Por vezes acreditamos ocupá-lo com algo muito desejado, mas que, uma vez conseguido, aumentou ainda mais o abismo. Assim é o homem."


José Luis Sampedro, La vieja sirena, 9.ª ed., Barcelona: Penguin Random House/De Bolsillo, 2019, p. 203 [trad. nossa]. 

Thursday, April 16, 2020

O HOMEM INTERIOR



"Conheço duas espécies de homens: uma, a visível, e a outra escondida sob o aspecto visível, mas em si é invisível, o homem interior. Temos, efetivamente, um homem interior, e de certo modo somos duplos. Ou antes, para falar mais exatamente, somos o homem interior. O eu é propriamente o homem interior. O exterior não constitui meu próprio eu, mas consta do que é meu. O eu não é minha mão, mas é a parte racional da minha alma. Todavia, a mão é parte integrante do homem. O corpo, contudo, é órgão do homem, órgão da alma, mas o que constitui o homem é propriamente a alma. «Façamos o homem à nossa imagem», isto é, dotemo-lo sobretudo da razão."

Basílio de Cesareia, Primeira Homilia sobre a Origem do Homem, 7., trad. Roque Frangiotti, São Paulo: Paulus, 1998, p. 48. 

Wednesday, April 15, 2020

A MODERNIDADE



"Mais estranho pareci eu ainda a este nosso acompanhante quando, em todos os pontos secos do rio, me punha à procura de pedras, levando comigo muitas variedades. Voltei a não conseguir fazer-lhe compreender que a melhor maneira de ficar com uma ideia de uma região montanhosa é analisar os tipos de rochas que os riachos arrastam, e que também a nossa tarefa é a de, através de ruínas e restos, chegar a reconstituir os momentos clássicos, de apogeu, de antiguidade da Terra."

Johann Wolfgang Goethe, Viagem a Itália, trad. João Barrento, Lisboa: Bertrand, 2016, pp. 259-260. 

Tuesday, April 14, 2020

O CÉU QUE NOS COBRE




"Do mesmo modo chega aos bois também muitas vezes
a pestilência, a doença às preguiçosas ovelhas que balem. 
E não interessa se somos nós que nos deslocamos
para lugares que nos são nocivos e mudamos o céu que nos cobre, 
ou se é a natureza que, por sua iniciativa nos traz um céu corrompido
ou algo a que não estávamos habituados, que nos possa
fazer adoecer com a sua chegada recente."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, VI, 1131-1137, trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 399. 

Monday, April 13, 2020

O ESPAÇO




"Olha para cima. Hoje o espaço da noite está sereno."


Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 157. 

Sunday, April 12, 2020

LONGÍNQUOS CANTOS




"Alto deus dos longínquos cantos primevos
por toda a parte te experimento profundamente
na ordenação livre de muitas encostas
os arbustos ainda estão como os chamaste"


Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 159. 

PASSAGEM



"Mas a verdade é que Cristo ressuscitou dos mortos, e é garantia de ressurreição para os que morreram. Assim, por meio dum homem começou a morte no mundo, e por outro homem começou a ressurreição dos mortos. Desde modo, unidos a Adão, todos estão sujeitos à morte e, unidos a Cristo, todos voltarão a receber a vida."

I Cor 15, 20-22. 

Saturday, April 11, 2020

WISSE DAS BILD




"Só ao que a lira já ergueu
também entre sombras, 
é permitido o louvor infinito, 
entrevendo-o, restituir. 

Só quem com mortos da papoula
comeu, da que deles é, 
não voltará a perder
o mais ténue som. 

Por mais que o espelhamento no tanque
possa confundir-se-nos:
Saberás a imagem

Só no território duplo
as vozes se tornarão
eternas e amenas."


Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, primeira parte, IX, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 29. 

Friday, April 10, 2020

SURREXERUNT



"Então, o véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo; a terra tremeu e as rochas fenderam-se; abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram, e, saindo, dos túmulos, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos. O centurião, e os que com ele guardavam Jesus, vendo o tremor de terra e o que estava a acontecer, ficaram apavorados, e disseram: «Este era verdadeiramente o filho de Deus»."

Mt 27, 51-54. 

MADEIRO




"Meu Deus, que estaes pendente em um madeiro, 
Em cuja lei protesto de viver, 
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro. 

Neste lance, por ser o derradeiro, 
Pois vejo a minha vida anoitecer, 
É, meu Jesus, a hora de se ver 
A brandura de um Pai, manso Cordeiro. 

Mui grande é vosso amor, e meu delicto, 
Porém póde ter fim todo o peccar, 
E não o vosso amor, que é infinito. 

Esta razão me obriga a confiar, 
Que por mais que pequei, neste conflicto
Espero em vosso amor de me salvar."


Gregório de Mattos, Antologia Poética, org. Gilberto Mendonça Teles, Lisboa: IN-CM, 1989, p. 41. 

ANIVERSÁRIO





"A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez."


Daniel Faria, Poesia, 2.ª ed. de Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 166. 

Thursday, April 9, 2020

NOVA



"Há uma grandíssima diferença entre a Arca da Aliança, com tudo o que ela continha, e o Vosso corpo puríssimo, com todas as graças e dons inefáveis de que é revestido. Grandíssima diferença existe entre os sacrifícios da Lei, que não eram mais do que uma figura das maravilhas futuras que devíeis fazer, e a verdadeira hóstia do Vosso corpo, que vem completar todos os sacrifícios antigos. Porque, pois, não me abraso no Vosso amor, à vista da Vossa adorável presença? Porque não me preparo com mais cuidado para receber os Vossos santos mistérios, considerando quanto os antigos patriarcas, profetas, reis e príncipes mostravam tanta paixão rendendo o culto que Vos é devido?"

Tomás de Kêmpis, Imitação de Cristo, L. IV, I, 6, trad. Frei António de Pádua e Belas (1791), Lisboa:Verbo, s.d., p. 161. 

Wednesday, April 8, 2020

QUIÈTATI




"Acalma-te erva doce
que cresces da terra, 
não toques a suave harmonia
das coisas vivas, 
morde a tua medida 
porque o meu coração está triste
não pode ter harmonia. 

Acalma-te, erva verde
não subas para os fossos
com o teu canto de luz, 
oh fica debaixo da terra
nua na tua semente
como eu faço e não dou
erva de uma palavra."


Alda Merini, A Terra Santa, trad. Clara Rowland, Lisboa: Cotovia, 2004, p. 51. 

Tuesday, April 7, 2020

O TEMPO CANSADO




"Coração cansado, num tempo cansado, 
Liberta-te das redes do mal e do bem; 
Ri de novo, coração, no crepúsculo cinzento, 
Suspira novamente no orvalho da manhã."


W. B. Yeats, Os Pássaros Brancos e Outros Poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães e Laureano Silveira, Lisboa: Relógio d'Água, 2012, p. 51. 

Monday, April 6, 2020

O PAPEL




"- Meu filho - retorquiu o velho, amedrontado - não reparas em que insultas os deuses?
- Ridículos deuses, por Hércules! - exclamou Lúcio. - Ridículo deus, esse Octávio, que tinha medo do calor, do frio, do trovão; que, chegado de Apolónia, se apresenta às velhas legiões de César coxeando como Vulcano; ridículo deus, cuja mão era tão fraca que, por vezes, não podia suportar o peso da pena; que viveu sem se atrever a ser uma única vez imperador e que morreu perguntando se desempenhara bem o seu papel!"


Alexandre Dumas, Nero, trad. Vasco Belmonte, Lisboa: Editorial Minerva, 1992, p. 18. 

Sunday, April 5, 2020

RAMOS



"Aparelha-te para combater, se queres sair vitorioso. Sem peleja não podes alcançar a coroa da paciência. Se rejeitas o sofrimento, é sinal de que não queres ser coroado. mas, se desejas essa coroa, combate varonilmente e sofre com paciência. O descanso é prémio do trabalho e a vitória é recompensa do combate."

Tomás de Kêmpis, Imitação de Cristo, L. III, XIX, 4, trad. Frei António de Pádua e Belas (1791), Lisboa:Verbo, s.d., p. 96. 

Saturday, April 4, 2020

PÁLIDA



"sopra um vento pelo peito do mareante - vento
cinzento capaz de apagar os gestos que restam e
de limpar os passos incertos pelas ruas do cais

vento
um vento que te sacode as veias os tendões
faz vibrar os músculos e a mastreação - como a árvore
que se desprende das entranhas do mar

corre 
corre um vento pelas fissuras da pele - vento
de pó enferrujado abrindo feridas nos animais vivos
colados à memória onde
uma serpente mergulhou no sangue e 
desata a fulgurar

sopra um vento pelo peito do mareante
desperta a florescência pálida do plâncton - varre
a noite e lava as mãos dos condenados à morte

corre um vento
vento de febre - sismo de orquídeas que acalma
quando acendes a luz e abres as asas
vibras e 
levantas voo"


Al Berto, Horto de Incêndio, 3.ª ed, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 55-56. 

Friday, April 3, 2020

AS DURAS PEDRAS




"Naqueles tempos, em que a escuridão dominava a terra, José de Arimateia acendeu uma tocha feita de pinho e desceu das colinas até ao vale. Tinha algo que fazer na sua própria casa. 
E viu, ajoelhando-se sobre as duras pedras do Vale da Desolação, um jovem nu que se lamentava. Os seus cabelos eram da cor do mel e o seu corpo como uma flor branca, mas tinha-se ferido e colocado cinzas no cabelo, como se de uma coroa se tratasse. 
Ele, o que tanto possuía, disse para o jovem que estava nu a chorar: «Não me surpreendo que o teu desgosto seja tão imenso, pois Ele era certamente um homem justo». 
Nesse instante, o rapaz respondeu: «Não é por Ele que choro mas por mim próprio. Eu também transformei água em vinho e curei o leproso e dei vista ao cego. Caminhei sobre as águas, e dos túmulos que tinham por esconderijos, expulsei demónios. Alimentei esfomeados em desertos onde nada existia que se pudesse comer, e ressuscitei mortos das suas estreitas habitações, e à minha ordem, diante de uma grande multidão, uma figueira estéril frutificou. Todas as coisas que esse homem fez, também eu as fiz. E, contudo, ninguém me crucificou.»"


Oscar Wilde, Poemas em Prosa, trad. Possidónio Cachapa, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2002, p. 19. 

Thursday, April 2, 2020

RECHERCHE


"Os deuses tinham-se dedicado a um jogo muito subtil, às escondidas dos seus últimos adoradores. Tinham-se mascarado; e Proust tinha de se servir do seu olhar de mosca para os descobrir nos salões que frequentava, em casa do seu amigo Reynaldo Hahn, ou disfarçados de marçanos, vendedores de fruta, leituras, costureiras, comerciantes de vinho, tal como Ovídio, muitos séculos antes, descobrira a marca dos seus passos no mundo quotidiano. Por vezes, era muito difícil descobri-los, porque havia alguns deuses que tinham sido destronados: irremediavelmente destronados; ou tinham enlouquecido, ou fingiam que tinham enlouquecido, como dizia ainda o seu amado Emerson. Proust não teve medo por tão pouco. O disfarce dos deuses fascinava-o. Não havia maior divertimento do que desmascará-los, e redescobrir o divino onde parecia reinar apenas o humano. Toda a Recherche não é mais do que uma caça aos deuses que continuam a povoar os tempos modernos: caça recheada de desilusões, ilusões, enganos, caminhos errados, mas coroada, apesar de tudo, por uma vitória paradoxal."


Pietro Citati, A Pomba Apunhalada, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa: Cotovia, 2000, pp. 22-23. 

Wednesday, April 1, 2020

APRIL'S FOOL




"Singelo, fresco e belo quando brota no fim do Inverno, 
como se nenhum artifício da moda, negócios, política, tivesse um
             dia existido. 
Surge do seu soalheiro recanto entre a erva abrigada - inocente, 
             dourado, sereno como a aurora, 
O primeiro dente-de-leão primaveril que mostra o seu rosto
             confiante."

Walt Whitman, Folhas de Erva, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 447.