Friday, January 31, 2014

INVERNO



"O que nos visita, o modo súbito de se impor.
Crianças saem da escola, 
e do outro lado da rua
a figura parada de uma mulher, 
o seu olhar esgotado, suportado
no enigma que a prende à vida, 
ainda. 
A dramática procura
do que nos atravessa incessante, 
já sem espaço
para o dizermos. 

Nunca teve a solidão um nome, 
visível é ali o impronunciável
nome."


Luís Quintais, Verso Antigo, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 50. 

Thursday, January 30, 2014

IDA




"O que se foi se foi. 
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura. 

Se o que se foi regressa, 
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real. 

Portanto, o que se foi, 
se volta, é feito morte. 

Então por que me faz
o coração bater tão forte?"



Ferreira Gullar, Em Alguma Parte Alguma, Lisboa: Ulisseia/Babel, 2010, p. 43. 

Wednesday, January 29, 2014

CONTEMPTUS



"Couraçada de seda, esplêndida, gloriosa,
passaste, com desdém, por mim, flor de Judá. 
E eu disse, a suspirar, baixinho: Alma orgulhosa, 
- um verme te vestiu e outro te despirá!"


Gomes Leal, Fim de um Mundo - Sátiras Modernas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 288. 

Tuesday, January 28, 2014

LUGARANJO


"«Todo o Anjo é terrível
disse Rilke e eu
acrescento: tão terrível
que aprisiona ao Lugar"


António Barahona, Rizoma, Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 26. 

Sunday, January 26, 2014

RUÍNAS



"A tristeza das ruínas é uma tristeza particular, da qual nem todas as almas se magoam. Já observei vezes sem conto isto mesmo no semblante das pessoas que foram comigo visitar um palácio derrocado, ou as alpendradas dum convento, ou o lanço empenado de muro de castelo."


Camilo Castelo Branco, Romance dum Homem Rico, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 19. 

Saturday, January 25, 2014

ABRIR-SE



"Nos bancos, escondidos, à sombra recôndita de qualquer copa frondosa, repetem-se episódios do paraíso. 
A vida real desses lugares é verdadeiramente à noite. Os dias passam-se, radiosos, iriados, entregues ao sol e aos insectos; as noites correm no meio da escuridão ou dos luares, entregues a Vénus e ao silêncio."


Raul Pompeia, As Jóias da Coroa, s.l.: Estrofes & Versos, 2009, p. 27. 

Friday, January 24, 2014

PERGUNTAS



"Quem serão os meus futuros companheiros, onde decorrerão as nossas folias enlouquecidas? Que elegante repasto nos deleitará com vinho leve seleccionado e de sabor ático do qual nos possamos elevar para ouvir o alaúde bem tocado ou uma bela voz a gorjear as notas imortais sob o ar da Toscana? Que anseio louco? Que flautas e tamborins? Que êxtase selvagem?"

Flann O'Brien, Uma caneca de tinta irlandesa at Swim-Two-Birds, trad. Maria João Freire de Andrade, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2013, p. 25. 

Thursday, January 23, 2014

EUROPA




"Mas a alma?... Essa continua sempre ausente, como a madama Benoiton. - De resto: toda a Europa é um vasto museu de manequins e figuras de cera, dos quais a mola é sempre a mesma, o que os torna triviais, como palácios classe média, como leões de faiança."


Gomes Leal, Fim de um Mundo - Sátiras Modernas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 394. 

Wednesday, January 22, 2014

EPOCHÊ



"- Que estranha época! - disse Durtal enquanto o acompanhava até à porta. - No preciso momento em que o positivismo vai no auge, o misticismo desperta e as loucuras do oculto começam. 
- Mas sempre foi assim! As pontas de séculos são parecidas. Todas vacilam e todas são equívocas. Quando o materialismo faz estragos, a magia levanta-se. É um fenómeno que reaparece de cem em cem anos. Para não ir mais longe, vê o declínio do século passado. Tal como agora, ao lado dos racionalistas e dos ateus, encontras Saint-Germain, Cagliostro, Saint-Martin, Gabalis, Cazotte, as sociedades dos rosa-cruzes, os círculos infernais! E posto isto adeus, bom serão e boa sorte."


Joris-Karl Huysmans, Além, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 263. 

Monday, January 20, 2014

REPIQUE



"A propósito dos sinos, também me falou da interpretação dos sonhos. Segundo ele, quem vir em sonhos sinos a tocar está ameaçado de acidente; se o sino repicar, é presságio de maledicência; se cair, há certeza de ataxia; se estalar, há aflições e misérias garantidas. Julgo que ainda acrescentou o seguinte: se houver aves nocturnas a voar à volta de um sino iluminado pela lua, podemos estar certos de um roubo sacrílego na igreja e de que o padre corre risco de morte. 
Dá-se no entanto o caso de o Levítico proibir formalmente esta forma de lidar com os sinos; que se entre para dentro deles quando estão consagrados, que sejam metidos na interpretação dos sonhos. Por isso me desagradou e me fez pedir-lhe com alguma aspereza que acabasse com a brincadeira."


Joris-Karl Huysmans, Além, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 87. 

Sunday, January 19, 2014

NUDEZ



"Qual a origem do Bem? Qual a do Mal?
Em que profundidade existe a fonte
Das lágrimas salgadas? De que altura
Desce a asa luminosa dum sorriso
Para pousar, cantando, em nossos lábios?
Donde vem esta força escura e cega
Que mata, que destrói? Mas donde vem
Este ímpeto sagrado que nos leva
A sentir e a sofrer a dor alheia,
E que nos tira a túnica, vestindo
Com ela os corpos nus e miseráveis?
Donde vêm estas forças misteriosas? 
E os rastros de alegria ou de amargura
Que deixam, para sempre, em nossa alma?
São geradas em nós? Provêm de nós?
Ou são duma remota e estranha origem?
Ou descendem do nosso casamento
Com a sombra das cousas que nos cercam?"


Teixeira de Pascoaes, Regresso ao Paraíso, 2ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1923, p. 164. 

Saturday, January 18, 2014

MIL LÁGRIMAS



"Pois não há nada a que nos possamos habituar tão facilmente como aos milagres, quando estes acontecem duma forma sucessiva. Sim! A natureza do Homem é tal, que este se chega a tornar mau, quando não lhe é concedido ininterruptamente tudo aquilo que um destino casual e temporário lhe pareceu prometer. São assim os Homens - e podia esperar-se outra coisa de Andreas?"


Joseph Roth, Lenda do Santo Bebedor, trad. Álvaro Gonçalves, 1997, p. 46. 

Friday, January 17, 2014

SAMARDÃ



"A intenção não basta:
não é preciso acertar
porque se atinge sempre
o que nunca se chega a desejar."


José Guardado Moreira, Os Primeiros Anos, Lisboa: Caminho, 1990, p. 18. 

Thursday, January 16, 2014

SOLUÇOS



" - Porque é que os ciprestes entristecem?... Porque, para nós, são um soluço alongado e verde-escuro. É bem possível que eles sejam muito alegres... É por motivos destes que muitas coisas nos parecem tristes."


António Patrício, Serão Inquieto, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, pp. 118-119. 

Wednesday, January 15, 2014

TERRA




"Quanta beleza morta e sepultada!
Quantos sonhos dispersos em poeira, 
Antes de cair em pó quem os sonhou...
Dir-se-á que a noite triste
É como cinza de sorrisos murchos, 
Como um vapor de lágrimas extintas!
E a luz do luar, descendo sobre mim,
Traz consigo nas asas espectrais
Toda essa morte e solidão da lua...
Não há palmo de terra que não seja
Terra de sepultura... Eu vivo ainda;
Não é certo que vivo? E todavia
Já vejo o meu fantasma..."


Teixeira de Pascoaes, Regresso ao Paraíso, 2ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1923, p. 101. 

Tuesday, January 14, 2014

A FELICIDADE



" - Não tenha medo. Se ficar cansada, pelo menos terei aprendido alguma coisa. 
- Muito pouco, me parece. Minha irmã é que se assusta com a ideia de aprender seja o que for - disse Osmond. 
- Não faço segredo: não quero aprender mais nada. Já sei bastante. Quanto mais se sabe, mais infelicidade se adquire."


Henry James, Retrato de Uma Senhora, trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Relógio D' Água, 1996, p. 286. 

Monday, January 13, 2014

PAÍS DA NOITE




"Aqui, no País da Noite, 
Da Saudade da Vida, as criaturas
Sofrem a dor da sua imperfeição, 
- Imperfeição que a Morte não destrói, 
Que é anterior a tudo, e até parece
ter turvado a misteriosa fonte
Da Luz originária..."


Teixeira de Pascoaes, Regresso ao Paraíso, 2ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1923, p. 45. 

Sunday, January 12, 2014

JESSÉ



"Hoje és estátua branca transitória
a querer quebrar o espelho inacessível
desesperado beijo te perdeu nesse fugaz
fascínio. Ergues na sombra

o nome de teu nome. Ou talvez
vivas."


Laureano Silveira, Os Caprichos, Porto: Limiar, 1987, p. 66. 

Saturday, January 11, 2014

NAïVETÉ



"Havia em Ralph uma provisão secreta de indiferença, como o bolo suculento que a velha criada bondosa insinua no primeiro farnel que o menino leva para a escola, e que o ajudou a reconciliar-se com o sacrifício."

Henry James, Retrato de Uma Senhora, trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 60. 

Thursday, January 9, 2014

OLÍMPIA, NOVAMENTE




"Ah, devolvesse-me ele a angústia antiga
a adensar-me em fascínio o coração,
dos muros pendeu uma estriga
do pranto em flor dos olhos de Tristão.

Então sofrias tu, mas ressurgias,
morreste então, mas foi forte de amor,
a cada passo e volta hoje verias:
vazios estão os campos sem ardor.

É o vazio uma de tais oferendas
que o obscuro revelam na verdade:
recebes deste, angustiado, as prendas,
mas essa angústia é de outra qualidade."


Gottfried Benn, 50 Poemas, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 67. 

Wednesday, January 8, 2014

CIRCULAR




"Toda a viagem é circular. Eu tinha andado aos solavancos pela Ásia, fazendo uma parábola num dos hemisférios do planeta. Afinal, o grande circuito é apenas o modo de o homem inspirado se dirigir a casa."


Paul Theroux, O Grande Bazar Ferroviário, trad. José António Freitas e Silva, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 473. 

Tuesday, January 7, 2014

MISERERE



"A alma duma cousa é sua clara
E transcendente imagem; seu perfil
Isento de impurezas, reduzido
Ao íntimo cristal, à transparência:
É a presença dum ser sem o seu corpo. 

Aqui, no Inferno, neste sítio lúgubre, 
A criatura expia o velho crime
De se ter  entregado às mãos da Morte, 
Havendo sido dada à luz da Vida."


Teixeira de Pascoaes, Regresso ao Paraíso, 2ª ed., Porto: Renascença Portuguesa, 1923, p. 41. 

Monday, January 6, 2014

MERCÚRIO OU HOMENAGEM A EUSÉBIO NO PAÍS DO COMÉRCIO



"Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos o são, mesmo os melhores, às suas horas, 
e todos estão contentes de se saberem sacanas. 
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para fazer funcionar fraternalmente
a humidade da próstata ou das glândulas lacrimais, 
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam. 

Dizer-se que é de heróis e santos o país, 
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só os asnos, 
ingénuos e sacaneados é que foram disso?

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora. 
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice, 
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir. 
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois. 
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia. 
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma."


Jorge de Sena, 40 Anos de Servidão, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 136. 

VELHAS ÁRVORES


"As velhas árvores estendem a toda a altura das corporaturas gigantescas os braços folhudos que se entrelaçam em uma convivência pacata; por entre as sombras discretas alarga-se amorável um silêncio de selva, interrompido apenas pelos sussurros ramalhados - gratas palestras das velhas árvores na sua plácida convivência entre bons amigos que conversam confidentes sob a luz suave, temperada pelo abat-jour."


Júlio Lourenço Pinto, "A História da «Lavandisca»", in Esboços do Natural, Lisboa: IN-CM, 2006, p. 54. 

Sunday, January 5, 2014

MADALENA




"O viver que grita muito não diz nada. 
A morte ao dizer tudo é bem calada."


Jorge de Sena, 40 Anos de Servidão, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 22. 

Saturday, January 4, 2014

PATHS



"No sólo envueltos en las tinieblas, los espíritus de los que fueron en el mundo vuelven a él, sino también entre las transparentes burbujas del agua cristalina, en las alas de la brisa o de la ráfaga tempestuosa; en los átomos que voltejean a través del rayo de sol que penetra en nuesta estancia por algún pequeño resquicio, y hasta en el eco de la campana que vibra con armoniosa cadencia conmoviendo el alma; en todo están, y giran a nuestro alrededor de continuo, viviendo con nosotros en la luz que nos alumbra, en el aire que respiramos. Por qué se halla el hombre tan en paz y a gusto en la soledad? Precisamente porque en ella está menos solo que entre los que respiran todavía el aire terrenal que nos da vida prestada a los que aún tenemos de morir."


Rosalía de Castro, El primer loco - cuento estraño, Madrid: Editorial Eneida, 2008, p. 13. 

Wednesday, January 1, 2014

INTROIBO



"A ideia de origem representa um horizonte erguido, pelos nossos olhos, no mais longínquo do Passado...
Quem sabe se o Futuro contará da nossa época a origem da Humanidade?"


Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 81.